Fabio Enzo foi herói da Roma, mas ‘só’ por um dérbi | OneFootball

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Calciopédia

·30 de junho de 2022

Fabio Enzo foi herói da Roma, mas ‘só’ por um dérbi

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Heróis improváveis escreveram inúmeros capítulos emocionantes na história do futebol, e na dramática existência da Roma certamente haveria espaço para alguns deles. Nesse sentido, uma das páginas mais interessantes é de autoria de Fabio Enzo, atacante que foi contratado junto a um time amador e, aos 20 anos, marcou o seu primeiro – e decisivo – gol num Derby della Capitale, contra a Lazio. O tento, porém, não impulsionou a carreira do garoto, que era um bad boy dentro de campo e um doce fora dele.

Enzo nasceu em Cavallino, cidadezinha litorânea próxima a Veneza, numa família humilde: seu pai trabalhava num armazém e sua mãe era dona de casa. Ainda garoto, Fabio começou a jogar futebol e foi descoberto por Nerio Tonon, um olheiro local que tinha trânsito em clubes da região. Depois de colocar o pupilo no time amador do município, o observador lhe arrumou um teste no Venezia. O jovem foi aprovado e se profissionalizou em 1963, aos 17 anos.


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O atacante não chegou a estrear pelos vênetos e teve suas primeiras chances entre os adultos no sul da Itália: em 1964-65, fez seis partidas pela Salernitana, na Serie C. Para conseguir mais espaço, Enzo optou por descer mais um degrau e assinou com a Tevere Roma, da quarta divisão.

As atuações de Enzo e os nove gols marcados pela Serie D chamaram a atenção de Walter Cruciani, olheiro da Roma, que indicou o atacante ao técnico Oronzo Pugliese. O pitoresco treinador, que fizera carreira nas categorias inferiores e tinha o hábito de trabalhar com jogadores sem grife, aceitou a sugestão e o garoto vêneto, de apenas 20 anos, fechou com a Loba. Como vivia momento modesto, com pouco dinheiro e sucessivas campanhas de meio de tabela, a equipe giallorossa precisava fazer apostas.

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Com apenas 20 anos, o grandalhão encerrou incômodo jejum giallorosso no Derby della Capitale (Arquivo/AS Roma)

Dessa forma, Enzo estreou pela Roma na quarta rodada da Serie A 1966-67, numa vitória contra o Vicenza. De forma meteórica, Fabio atingiu o seu ápice pela equipe, o que veio a ocorrer já no terceiro jogo em que vestiu giallorosso: justamente o Derby della Capitale, contra a Lazio, pela sexta jornada. Como as duas agremiações não conseguiam ir além de posições intermediárias nos campeonatos da época, vencer o clássico era equivalente a conquistar um título.

Naquele dia 23 de outubro de 1966, Pugliese confiou em Enzo como centroavante da Roma, escalando os veteranos Joaquín Peiró e Paolo Barison para assessorá-lo, nas pontas. A escolha deu resultado logo aos 15 minutos, quando Peiró fez boa jogada pela direita e cruzou na cabeça de Fabio, que venceu o arqueiro Idilio Cei com uma cabeçada potente. O primeiro gol do atacante vêneto foi o único do dérbi e fez os giallorossi voltarem a bater a rival após oito confrontos, distribuídos ao longo de seis anos.

“Decidir um Dérbi de Roma é algo indescritível. Dominamos o jogo, e Cei até defendeu um pênalti de Barison. Mas ficou o meu gol, com uma cabeçada central. Uma lembrança que não se apaga, assim como os meus anos romanos… No dia seguinte, um jornalista da Gazzetta [dello Sport] escreveu uma reportagem de página inteira sobre mim, que guardo até hoje. Sabe, uma folha só para um cara que se chama Enzo, e não para um [Omar] Sívori, um [Gianni] Rivera, um [Luigi] Riva“, contou, numa entrevista concedida ao próprio jornal italiano, em 1998.

Apesar de ter sido utilizado como centroavante contra a Lazio e medir 1,87m, o atacante canhoto era escalado normalmente na ponta direita por Pugliese. O intuito era desfrutar de sua opulência física, que lhe valia o apelido de Bulldozer – “escavadeira”, em português. Afinal, além de dinâmico e voluntarioso, Fabio costumava centralizar as jogadas para efetuar potentes arremates. A propósito, o lendário goleiro Dino Zoff, que fez parte do mesmo batalhão de Enzo no exército, costumava dizer que o colega tinha um chute mais poderoso do que o de Riva, maior artilheiro da história da seleção italiana.

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Na Roma, Enzo abraça o veterano Angelillo, da Inter (Il Messaggero)

Em sua primeira temporada pela Roma, Enzo balançou as redes mais cinco vezes e ajudou o time a ficar num modesto 10º lugar. O destaque obtido no clássico contra a Lazio não voltou a se repetir, mas o atacante ainda guardou uma doppietta num 4 a 0 sobre o Torino e garantiu um empate por 2 a 2 com a Fiorentina. Em 1967-68, a Loba repetiu a campanha na Serie A, mas Fabio jogou muito menos, pois perdeu espaço para os reforços Jair da Costa e Giuliano Taccola. Ele até tornou a anotar cinco tentos, mas três deles foram realizados na Copa Mitropa e na Copa dos Alpes, competições de menor prestígio.

Naquele período, à exceção do gol contra a Lazio, as memórias mais interessantes de Enzo foram construídas bem longe dos gramados: as longas conversas com Fabio Capello, companheiro de quarto, sobre cinema (em especial, a obra de Pier Paolo Pasolini), e as viagens a Nova York durante o inverno e as pausas para jogos das seleções. O atacante dizia para os diretores do clube que passaria uns dias em sua terra natal, mas na verdade embarcava para os Estados Unidos para encontrar uma garota norte-americana que havia conhecido numa de suas aventuras. “Não ganhava muito, mas gastava tudo. Era jovem, jogador de Serie A e aproveitava a vida”, contou à Gazzetta.

No verão de 1968, a Roma sofreu uma pequena revolução. O presidente Franco Evangelisti deixou o cargo e, por escolha da nova diretoria, Pugliese foi substituído por Helenio Herrera. Com isso, Enzo terminou emprestado ao Mantova, recém-rebaixado para a Serie B. O seu desempenho pelos biancorossi até foi razoável (com oito gols, se sagrou artilheiro do time na categoria inferior), mas a passagem pela Lombardia seria apenas o início de sua jornada como andarilho pela Bota.

Enzo retornou para a Roma em 1969, mas somou apenas seis presenças antes de ser vendido ao Cesena, em novembro daquele mesmo ano. Em mais uma experiência em time da Serie B, teve rendimento razoável (17 gols em 62 aparições) e ficou lembrado por um fato insólito. Certa feita, os bianconeri venciam por placar elástico e, nos minutos finais, tiveram pênalti a favor. Designado para a cobrança, Fabio lembrou de uma aposta que fizera com o companheiro Paolo Ferrario e resolveu cumprir o trato: surpreendendo o estádio, bateu a penalidade com o calcanhar. A ousadia não foi recompensada, já que o grandalhão acertou a trave e terminou multado pelo presidente Dino Manuzzi. Se ele se arrependeu? Claro que não.

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Pelo Novara, o atacante foi artilheiro da Serie B (Novara Siamo Noi)

O futebol mostrado com a camisa do Cesena fez com que Enzo tivesse suas últimas chances na Serie A ao longo da temporada 1970-71. O atacante foi contratado pelo Napoli e, depois de ser emprestado ao Bologna para uma turnê de amistosos no Canadá, fez três jogos com a camisa azzurra. Na janela de transferências de outono, terminou vendido ao Verona, também militante na elite italiana, mas fracassou. Fabio não balançou as redes nas 10 partidas em que atuou pelo Hellas e passou os dois meses e meio finais da campanha relegado às tribunas.

Dali em diante, o grandalhão foi descendo degraus na pirâmide do futebol italiano. Entre 1972 e 1974, Enzo teve anos positivos pelo Novara, que lutava para ficar no meio da tabela da Serie B. Com rendimento constante, o atacante vêneto guardou 30 gols em 74 partidas, sendo artilheiro da segundona em 1972-73, com 15. Mesmo assim, nenhum time da elite se interessou por seus serviços. Além de irregular, o Bulldozer tinha um hábito pouco louvável: discutir insistentemente com a arbitragem. Por esse motivo, colecionou expulsões e, ao longo da carreira, perdeu 64 jogos só por causa dos ganchos.

Enzo atribuía o mau comportamento em campo a uma estratégia para causar impacto nos adversários. “Na época, havia marcadores duríssimos. Um atacante precisava dar um jeito [de não ser intimidado]. Era necessário mostrar os dentes”, afirmou à Gazzetta dello Sport. Fora das quatro linhas, contudo, ele era outra pessoa: um tipo capaz de tirar o próprio casaco e agasalhar um mendigo que tremia de frio. Isso ocorreu em frente a um hotel em que a delegação da Roma se hospedaria, numa partida fora de casa.

Em termos futebolísticos, Enzo não teve mais grandes momentos de destaque a partir de sua saída do Novara. O atacante ainda defenderia, com números modestos ou apenas regulares, o Foggia nas séries B e C1, e Reggina, Venezia, Omegna e Biellese na terceirona. Fabio também representou o time de Biella na quinta divisão e se despediu dos gramados após contribuir com sua promoção à quarta categoria, em 1983. Se aposentou aos 37 anos.

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Enzo jamais conseguiu atingir as expectativas geradas no início de carreira e passou muito tempo nas divisões inferiores (Arquivo/Novara Calcio)

Depois de pendurar as chuteiras, Enzo revelou – ou intensificou – algumas de suas facetas. Primeiramente, o apego a sua terra natal e a sua família. O ex-atacante jamais deixou de falar o dialeto local e, devido à viuvez de Venerina, sua mãe, voltou a viver em Cavallino: passou a morar com a matriarca juntamente com a filha Daria e a esposa Patrizia, que conhecera em Cesena. Na residência, a poucos metros da praia, peixes e frutos do mar frescos eram frequentes no cardápio. Mas Fabio não parou de frequentar a osteria de Nerio Tonon, o homem que lhe lançou no futebol. O apreço era recíproco: o taverneiro guardava consigo um álbum de recordações do jogador que descobriu. Na coleção, o pupilo aparecia até ao lado de Pelé, em fotografia tirada num amistoso entre Roma e Santos.

Comunista e avesso a acumular dinheiro, Enzo teve de arrumar trabalho em Cavallino para manter a família. Diretores do Novara haviam lhe oferecido um emprego como auxiliar administrativo num banco do Piemonte, mas ele preferia ficar longe de escritórios. Assim, foi contratado como responsável por cuidar de quadras de tênis de um camping da região e, na sequência, aceitou o convite de um amigo para ser o solucionador de problemas de seu hotel. Já bigodudo e careca, o grandalhão ocupou o posto de braço direito do camarada até os últimos momentos de sua própria vida. Em janeiro de 2021, aos 74 anos, o herói do Derby della Capitale de outubro de 1966 se despediu de maneira triste, como uma das milhares de vítimas da covid-19 na Itália.

Fabio Enzo Nascimento: 22 de junho de 1946, em Cavallino, Itália Morte: 11 de janeiro de 2021, em San Donà di Piave, Itália Posição: atacante Clubes: Venezia (1963-64 e 1976-77), Salernitana (1964-65), Tevere Roma (1965-66), Roma (1966-68 e 1969), Mantova (1968-69), Cesena (1969-71), Napoli (1971), Verona (1971-72), Novara (1972-74), Foggia (1974-75 e 1979-80), Reggina (1975-76), Omegna (1977-78) e Biellese (1978-79 e 1981-83) Títulos: Campeonato Interregionale (1982)

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