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·28 October 2024

A pandemia das lesões no joelho: «Estamos a exigir de mais dos atletas»

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A discussão pública do excesso de jogos nos calendários, trazida à praça pelos jogadores e treinadores, divide opiniões entre os adeptos do futebol e agentes desportivos.

À parte das opiniões, tentamos aprofundar a problemática e perceber o essencial: afinal, que impacto está a ter este aumento do número de jogos na saúde dos atletas? Será que este crescimento recente do número de lesões graves nos joelhos e tornozelos é uma coincidência?


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Os recentes problemas de Nuno Santos e Thierry Correia agudizaram a necessidade de falar abertamente sobre o tema.

As respostas são dadas ao zerozero pelo doutor Helder Pereira, cirurgião português que é reconhecido entre os pares como um dos melhores na Europa na especialidade destas lesões específicas.

Operou grandes nomes do futebol internacional, como Keylor Navas, Pepe, Postiga, Danilo, ou Bailly, e acumulou cargos internacionais na área da medicina desportiva: oito anos no board da sociedade europeia de artroscopia e traumatologia desportiva, presidente da secção do tornozelo dessa mesma sociedade, membro do Achilles Tendon Study Group e membro do board de vários jornais dedicados a esta área.

Recentemente nomeado presidente da Sociedade Portuguesa de Artroscopia e Traumatologia Desportiva, o doutor Helder Pereira deu-nos algumas respostas importantes para percebermos os dados que a ciência nos oferece no debate sobre a saúde dos jogadores.

São ou não os calendários inimigos da saúde dos atletas?

zerozero - Doutor, tem-se mesmo verificado o aumento do número de lesões graves no joelho ou é só uma sensação?

Dr. Hélder Pereira - No futebol, temos mesmo verificado o aumento das lesões no joelho, e é um aumento que se tem vindo a notar no mundo todo. Há um grupo na UEFA que se tem dedicado a estudar essas lesões na última década.

Com a alteração de algumas leis de jogo, penalizando as entradas mais fortes, isso levou a uma diminuição importante no número das lesões de contacto. Agora, as lesões mais graves a que temos assistido são as lesões de não contacto. E aí há vários fatores que estão a influenciar essas lesões, entre elas a condição física e mental dos atletas, e a relação da possibilidade de exaustão e sobrecargas.

São lesões que acontecem, geralmente, no final de cada uma das partes dos jogos de futebol e que são indicadores que nos levam a pensar que estamos a exigir um bocadinho de mais aos atletas de alto nível.

Há vários fatores em avaliação e nós, médicos, cientistas, ainda não temos todos os dados disponíveis, mas há um paralelismo entre o aumento das lesões e o aumento da exigência: a diminuição dos tempos de recuperação, da pressão competitiva, da pressão comercial sobre os clubes. Uma coisa que sabemos é que estas lesões graves acontecem mais em competição, o risco aí é maior do que em treino.

ZZ - Falou na questão mental e psicológica como fator de influência nas lesões. Tem assim tanta influência?

HP - A pressão não sei, mas a fadiga ou o estado de exaustão não é uma coisa de que o atleta tenha perceção. O atleta não entra em campo cansado, mas os tempos de reação e a capacidade de adaptação está condicionada.

ZZ- Sobretudo para jogar, um jogador nunca está cansado.

HP - No desporto de elite, esta gente nunca tem limitações para competir, porque é essa a sua vida, é esse o seu drive, são feras competitivas e esquecem tudo dentro do campo.

ZZ - Focando no futebol e no desporto de elite, acha que os jogadores têm razão quando alertam para o facto de estarem a ser tão expostos a calendários loucos?

HP - Há um paralelismo entre o aumento de carga competitiva e o aumento de lesões. E isto não é uma coisa deste ano. Isto atinge de uma forma transversal todas as grandes ligas, desde a inglesa à portuguesa, espanhola, francesa, italiana, e está a crescer cada vez mais. Com certeza, algo se está a passar, porque quem o sente mais na pele e acompanha mais de perto este fenómeno, sobretudo treinadores e jogadores, sentem que alguma coisa tem de acontecer.

Quando as pessoas veem uma lesão, só olham pela perspetiva do atleta, da estrela. Nós, médicos, lidamos com o pai, a mãe, a esposa, os filhos, toda essa pressão familiar, porque cada um deles está inserido num contexto fora do futebol.

Temos de entender que se os jogadores se queixam e se há um paralelismo entre estas curvas, com certeza temos de dar atenção a isso. Há todo um conhecimento acumulado sobre a influência que tem a preparação e os tempos de recuperação na saúde dos jogadores, mas depois verificamos que esses tempos não são respeitados porque a pressão competitiva é muito alta.

Também é importante dizer que o número de recidivas de lesões está a aumentar e tem a ver também com a pressão competitiva para a retoma precoce que, consequentemente, também está a aumentar. Porque a indústria assim o exige. E os jogadores, podendo, vão a jogo.

Quem lida com estes atletas e conversa com eles, sabe que é constante a pressão que fazem.

- «Mas há algum risco se eu voltar?»

- «Sim, há riscos.»

- «Mas e se eu fizer determinada coisa, posso voltar? É que eu agora não posso perder o comboio.»

A nova era da exigência nos Sub21: a comparação de Bellingham e Beckham

Não são só os calendários competitivos que estão mais exigentes, há também uma nova realidade no futebol. Os grandes talentos parecem emergir cada vez mais cedo e nessas idades precoces são expostos a um elevadíssimo número de jogos e pressão competitiva.

A FifPro divulgou uma comparação feita em Inglaterra entre dois grandes ídolos de gerações diferentes, mas de posições e características parecidas: David Beckham e Jude Bellingham.

Antes dos 21 anos, David Beckham fez 54 jogos oficiais como sénior. Jude Bellingham, no mesmo período, já fez mais de 251!

Enquanto Beckham só chegou à elite com 20 anos, Jude já está na alta roda desde os 16 anos.

zerozero - Haverá alguma relação desta exigência em idades precoces e o aumento de lesões?

Dr. Helder Pereira - Não, não tenho notado essa relação. A ciência do treino também tem vindo a evoluir. Nós falamos em departamentos clínicos muito completos, com fisiologistas, preparadores físicos, treinadores cada vez mais competentes e mais sensíveis para essas situações.

Se for comparar outros jogadores nessas idades encontrará o mesmo padrão. Se avaliarmos os números do seu contexto global, o número de jogos na UEFA, FIFA, campeonatos, jogos olímpicos, os seus tempos de preparação e as pré-temporadas condicionadas por compromissos comerciais dos grandes clubes, eles vão criar stresses maiores nos atletas.

Não acho que tenhamos atletas pior preparados, acho que até estão cada vez melhor preparados. Estamos, se calhar, a esticar a corda e a ir para níveis que antes não se atingiam.

zz - Mas a ciência também está mais desenvolvida nas cirurgias e nas recuperações?

HP - Cada vez temos mais atletas que aos 15, 16, 17 anos já estão a jogar em grandes clube e grandes Ligas. Mas, ao contrário do que se pensa, uma lesão de um ligamento cruzado nesta idade não tem o mesmo prognóstico do que um atleta com 25, 26 ou 27 anos.

Em todo o mundo, o tempo de recuperação é mais prolongado nos atletas mais jovens. É preciso mais atenção ao futebol de formação e ao aumento de praticantes com imaturidade esquelética, nomeadamente crianças e adolescentes.

Mulheres vs Homens: na recuperação, não existe igualdade de género

zerozero - E nas mulheres, também há diferenças na recuperação?

HP -  As mulheres, por várias razões - anatómicas, fisiológicas, percentagem de massa muscular, hormonais -, têm fatores de risco aumentados para este tipo de lesão.  Tratar uma mulher por comparação a um atleta do sexo masculino não é a mesma coisa, o prognostico não é igual, o tempo de recuperação não é igual.

Hoje vivemos um período em que o futebol feminino está a crescer, o futebol de elite e o futsal estão a crescer nessa vertente, e o tipo de lesões, quando é o mesmo, não tem a mesma forma de ser tratado e os prognósticos não são os mesmos.

zz- Mas quando diz «atenção ao futebol de formação e ao futebol feminino», está a pensar em alguma forma de prevenção?

HP - O risco é real, não tem a ver com fatores de empenho ou desempenho. O alerta é apenas porque, se no futebol de elite temos equipas multidisciplinares, cheias de meios para executar planos de prevenção e recuperação, no contexto do futebol de formação e do futebol feminino as condições não são as mesmas.

A pressão de operar atletas de elite

zerozero - Lida bem com a pressão de ter de operar grandes atletas, que dependem do corpo para trabalhar?

HP - Para um clínico, uma vida é uma vida. Não fazemos esse tipo de distinções. Mas não posso esconder que a exposição é diferente. Lembro-me, quando operei o Danilo e o Keylor Navas, do que foi sair do hospital e ter a pressão de toda a gente. Não há forma de fugir a essa exposição. Quantas vezes alguns atletas são vistos em minha casa, ou na clínica à porta fechada, com o objetivo de os proteger?

Às vezes lesões que não são nada, mas que bastam acontecer num momento crítico de competição, passam para a opinião pública as desconfianças, os debates, a especulação nos media. Isso exige que tenhamos de lidar com os atletas de elite de forma diferente, porque a profissão deles assim o exige.

zz - Que jogadores é que já operou e que nos pode divulgar? Pepe, Navas, Danilo...

HP - Vou mencionar apenas alguns que já não estão a competir, como o Helder Postiga, Eric Bailly,  a «besta», com quem mantenho uma excelente relação. Foram muitos. O essencial não é o mediatismo do atleta que tratamos, mas é servir cada um pelos seus objetivos. E quando preciso deles para fazer eco das mensagens importantes para a sociedade e para os jovens, eles são sempre os primeiros a fazê-lo com generosidade.

zz- Em que patamar estão os médicos, cirurgiões, clínicos portugueses neste campo das lesões desportivas?

HP - Eu fiz a minha carreira de fora para dentro, ao contrário do habitual. Exerci cargos de grande prestígio, em termos de ciência, a nível internacional, e em Portugal ninguém me conhecia. Se quer exemplos disso, nos nossos clubes de elite, Portugal domina de longe essas áreas. E veja quantos têm saído para o estrangeiro, quantos de nós têm sido chamados para prestar apoio no estrangeiro e tratar deste e daquele atleta de outras ligas. Isso é cada vez mais comum. Tal como temos fantásticos reabilitadores, fisioterapeutas, e que volta e meia os vêm buscar para prestarem apoio e exercerem funções lá fora, porque de facto estamos ao nível dos melhores.

Os portugueses têm tido uma participação relevante nas grandes sociedades científicas, cada vez mais nas publicações cientificas e com um impacto crescente.

zz- Agora que está na presidência da Sociedade Portuguesa de Artroscopia e Traumatologia Desportiva, quais as suas preocupações e missão?

HP - Na área dos clínicos, o meu maior empenho é promover a formação de excelência e a internacionalização. Porque quando comecei nesta vida, a realidade não era exatamente a mesma e agora temos condições para abrir portas a esta nova geração, absolutamente fantástica, ao nível das melhores em todo o mundo.

A minha missão passa muito por aumentar a nossa ação social. Tornar a mensagem mais percetível à sociedade civil, para ter um impacto real na promoção da saúde. Temos de ensinar as pessoas que praticam desporto a promover a sua saúde e a ter menos lesões. O que fazer quando têm lesões, evitar esquemas menos éticos, tentar que a prestação de cuidados seja equitativa no acesso aos cuidados de excelência.

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