Calciopédia
·28 de outubro de 2021
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Vincenzo Matarrese foi, segundo suas próprias palavras, responsável por levar a mentalidade dos canteiros de obras para o futebol. O mais longevo presidente da história do Bari acreditava que poderia atingir o sucesso ao replicar o exemplo de humildade dado por operários que acordam muito cedo para atuarem em jornadas de trabalho estafantes no intuito de obterem um salário para sobreviverem. As robustas construções planejadas pelo engenheiro, contudo, terminaram inacabadas: apesar de ter vivido alguns dos melhores momentos e sua existência, o clube nunca deu o prometido e esperado salto de qualidade.
Terceiro de seis irmãos, Vincenzo trabalhou desde menino na construtora que leva o nome de seu pai, a Salvatore Matarrese Costruzioni. Foi no negócio da família que ele desenvolveu a mentalidade que levou ao esporte a partir do momento em que a sua poderosa linhagem decidiu expandir a sua influência para o futebol, no final do anos 1970.
Presente no melhor dos dois mundos, Don Vincenzo, como era chamado por seus empregados, ficou quase três décadas à frente do comando dos galletti, de 1983 a 2011. Nesse período, o Bari não obteve títulos expressivos, mas virou alvo dos holofotes por conta de algumas boas campanhas e também pela revelação ou pelo amadurecimento de alguns talentos como os brasileiros João Paulo e Gérson Caçapa, ou ainda de Igor Protti, Gianluca Zambrotta, Simone Perrotta, Antonio Cassano e Leonardo Bonucci. Ao mesmo tempo, a valorização desses jogadores e a gestão dos recursos oriundos de suas vendas gerou polêmica e lhe fez cair em desgraça com a fanática torcida biancorossa.
Don Vincenzo e Platt: o inglês foi o jogador mais caro contratado pelo Bari em toda a história (Quotidiano)
Salvatore Matarrese começou a trabalhar ainda jovem, como pedreiro, e erigiu um império no pós-Segunda Guerra Mundial. O patriarca abriu sua construtora em Andria, cidade em que nasceu, a cerca de 60 quilômetros de Bari, mas foi na capital da Apúlia que a firma cresceu. O empresário desfrutou das boas relações que tinha com políticos do diretório barês da Democracia Cristã e, assim, ficou encarregado de executar diversas obras públicas.
Com as receitas advindas da empreiteira ao longo dos anos, o patriarca dos Matarrese expandiu os negócios para áreas afins ao ramo: passou a operar no comércio de materiais de construção, nas indústrias siderúrgica, plástica e cimenteira, e no setor imobiliário. Em 1976, meses antes de falecer, transmitiu o conglomerado aos filhos Michele, Vincenzo, Antonio e Amato. Giuseppe, por ser padre, e Carmela, casada com o juiz Mario Greco, não podiam tomar parte na divisão.
No mesmo ano em que Salvatore deixou os herdeiros à frente de sua sociedade, foi agraciado, por seu destaque na indústria, com o título de Cavaleiro do Trabalho – empresários como Gianni Agnelli, Angelo Moratti e Silvio Berlusconi também receberam tal honraria. A condecoração do chefe da família simbolizava a influência de sua estirpe, que só aumentou exponencialmente com o passar do tempo.
Giuseppe, o pároco, seria nomeado bispo de Frascati, na região metropolitana de Roma – e, pela proximidade ao Vaticano, também foi tesoureiro da Confederação dos Bispos da Itália. Carmela viu o marido juiz se tornar senador e Salvatore, um dos filhos, exercer o cargo de deputado. Michele, o primogênito, assumiu o posto de líder do grupo empresarial e foi presidente da associação industrial de Bari, enquanto o engenheiro Amato, mais discreto, “só” ocupa a posição de sócio e membro do conselho de administração do conglomerado familiar.
Vincenzo, como sabemos, virou sinônimo de futebol em Bari. Mas não foi o único da família a ingressar no esporte: Antonio, o mais ambicioso de todos os filhos de Salvatore, também fez carreira no ramo. Antes, usou de sua influência nos negócios para se eleger deputado pela Democracia Cristã e encadeou mandatos por cinco legislaturas. Logo após vencer o primeiro pleito, no fim a década de 1970, foi presidente dos biancorossi e, na sequência, comandou Lega Calcio, a organizadora dos campeonatos profissionais na época, e FIGC, a federação nacional da modalidade. Tonino, como é conhecido, ainda foi vice-presidente da Uefa, de 1992 a 2002, e da Fifa, de 1994 a 2002.
O enlace com o poder, em seus mais variados âmbitos, fez com que os Matarrese ficassem conhecidos pela megalomaníaca alcunha de os “Kennedy de Andria”, primeiramente, e, depois, como os “Kennedy da Apúlia”. A referência é à família Kennedy, que também começou de baixo e galgou patamares até passar a frequentar núcleos de prestígio nos Estados Unidos – o que acontece há seis gerações, tendo como ápice a eleição de John Fitzgerald à presidência, em 1961. No entanto, os italianos passaram por mais perrengues do que seu análogos norte-americanos e sofreram a derrocada, ao menos no âmbito futebolístico.
Terceiro filho do magnata Salvatore Matarrese, Vincenzo teve quase três décadas dedicadas ao futebol (Quotidiano)
A família Matarrese chegou ao comando do Bari em agosto de 1977, quando Antonio virou presidente após a morte do cartola Angelo De Palo. Como sempre aconteceu no clube, o novo proprietário não precisou desembolsar um centavo sequer para obter as cotas do antecessor: somente herdou as dívidas e despesas correntes da agremiação.
Tonino assumiu o clube na Serie B e investiu bastante para tentar levá-lo à elite. No entanto, os melhores resultados foram obtidos com um time jovem e cheio de pratas da casa: o “Bari dos bareses”, de 1981-82, foi quarto colocado na segundona e não subiu por apenas três pontos. Inexperiente, a equipe foi rebaixada à terceira divisão no ano seguinte, o que abriu caminho para a escalada de Don Vincenzo à presidência.
Depois da queda, Antonio percebeu que estava com dificuldades de conciliar as obrigações de presidente do Bari e da Lega Calcio, além do mandato como deputado. Atarefado, confiou a Vincenzo a cadeira de dirigente máximo do clube. E a primeira temporada já foi agitada… positivamente, pois os biancorossi bateram um recorde.
Matarrese decidiu fazer uma reformulação no Bari ao contratar o diretor esportivo Franco Janich e dar o comando técnico da equipe a Bruno Bolchi, além de trocar muitas peças no elenco. As decisões se mostraram acertadas, pois os galletti lograram o acesso à segundona e chegaram às semifinais da Coppa Italia, após terem superado Juventus e Fiorentina. Foi a primeira vez na história do futebol italiano que um time da terceira divisão conseguiu chegar a essa fase do torneio.
Entre promoções e rebaixamentos, Matarrese revelou jogadores e técnicos, como Conte (LaPresse)
No certame seguinte, o time apuliano conquistou o acesso à Serie A, competição de que não participava havia 15 anos. O feito era um recorde ao clube, pois representava a primeira vez na história que o Bari conseguia duas promoções consecutivas. Em somente duas temporadas, Vincenzo superava Tonino.
Em 1985-86, o Bari experimentou o efeito ioiô – que terminaria por se repetir em outras ocasiões e marcar negativamente a era Matarrese. Os galletti mantiveram o artilheiro Edi Bivi e ainda foram buscar os ingleses Gordon Cowans e Paul Rideout, mas os investimentos não foram suficientes e o time voltou para a segunda divisão. A equipe permaneceu lá até 1989, quando, treinada por Gaetano Salvemini, obteve o acesso – aquele elenco tinha atletas como o defensor Massimo Carrera, o atacante Paolo Monelli e os meias Antonio Di Gennaro, Pietro Maiellaro e Angelo Carbone.
Reforçado pelos brasileiros João Paulo e Gérson Caçapa, o time apuliano fez uma grande campanha em 1989-90, permanecendo na elite com sobras e ficando a três pontos de uma vaga na Copa Uefa. A temporada ainda teve a conquista da Copa Mitropa, a única taça internacional do clube. Por outro lado, os grandes feitos foram combustível para o início das polêmicas que tinham como foco as decisões de Matarrese.
Na temporada seguinte, o Bari teve mais dificuldades para se salvar do rebaixamento e ficou distante da Copa Uefa. Matarrese havia prometido à torcida a classificação para um torneio continental para abrilhantar o estádio San Nicola, um gigante de quase 60 mil lugares construído para a Copa do Mundo de 1990, mas passava a ser contestado. “Ma quale presidente, ma quale costruttore, sei solo un muratore”, entoavam os torcedores, num cântico que poderia ser traduzido como “Que presidente, que construtor? Você é só um pedreiro”.
Don Vincenzo, então, fez algo que não costumava fazer: investiu pesado. Entretanto, só dois jogos de competições continentais aconteceram na arena apuliana. O San Nicola recebeu a final da Copa dos Campeões de 1991, entre o vitorioso Estrela Vermelha e o Marseille, e uma partida da Copa Uefa de 1998-99, com mando da Fiorentina – a Viola teve de atuar em campo neutro contra o Hajduk Split. Nem o Bari nem Matarrese viveram noites europeias.
No início da carreira como treinador, Conte foi um dos últimos acertos da gestão Matarrese (LaPresse)
Os investimentos feitos pelo empresário foram por água abaixo. Matarrese desembolsou 12 bilhões de velhas liras para, na maior contratação da história do clube, chegar até David Platt. Além do craque de nível internacional, que brilhara na Copa de 1990, o cartola ainda buscou Robert Jarni e, por empréstimo junto ao Milan, Zvonimir Boban. O inglês e o ala croata tiveram boas atuações, mas o Bari sucumbiu à hepatite de Zvone e a uma fratura na perna sofrida por João Paulo. Assim, após três anos consecutivos na elite, o time foi rebaixado. Don Vincenzo atribuiu o declínio à tentativa de salto de qualidade impulsionada pela robusta campanha de reforços. Crente de que tomara uma decisão equivocada, o presidente voltou a encarnar a sua persona habitual: a de um paizão afetuoso com a sua cria, mas avarento.
Na temporada seguinte, o clube biancorosso deixou de querer dar passos maiores que suas pernas e tornou a apostar no desenvolvimento das categorias de base. Para esse projeto, Matarrese repatriou Carlo Regalia, especialista no conhecimento de jovens jogadores. O dirigente trabalhara com Tonino e foi figura ativa na construção do famoso “Bari dos bareses”. Com Regalia nos bastidores, o time apuliano teve um grande desempenho no setor juvenil, faturando o Campeonato Allievi Nazionali (sub-17) em 1994 e 2000, e conquistando diversos títulos sub-19 – a Copa Viareggio, em 1997, a Coppa Italia Primavera, em 1998, e o Campeonato Primavera, em 2000.
O Bari voltou à Serie A em 1994 e teve bons momentos com gente como Alberto Fontana, Lorenzo Amoruso, Klas Ingesson, Caçapa, Protti, Miguel Ángel Guerrero, Nicola Ventola, Sandro Tovalieri e Kennet Andersson no elenco. Rebaixado em 1996, o clube retornou à elite de imediato e permaneceu lá de 1997 a 2001, no segundo período mais extenso de sua história na primeira divisão. Parte dos méritos ficam com o técnico toscano Eugenio Fascetti, que comandou os galletti por seis temporadas.
Como era de se esperar, as polêmicas não cessaram. Aliás, se intensificaram: dali em diante, a torcida entrou em estado de guerra aberta com Matarrese. Em 1999, o Bari, 10º colocado na Serie A, obteve a qualificação para a Copa Intertoto, mas se recusou a participar da competição, porque teria de antecipar o trabalho de pré-temporada. Don Vincenzo, então, desconversou, usando um mote ambicioso: “vamos entrar na Europa pela porta da frente”, disse. Se o objetivo declarado era a participação nas competições continentais, a realidade do clube, infelizmente, era outra: no intuito de evitar o descenso do biancorossi, a diretoria era conservadora e optava sempre por não arriscar. Como, por exemplo, não reinvestiu os 60 bilhões de liras da venda de Cassano à Roma, em 2001.
Chamado pela torcida de “mendicante” e “irmão idiota” da família Matarrese, Vincenzo sempre se disse disposto a vender o clube para satisfazer a cidade, mas nunca achou algum comprador que considerasse digno de assumir a agremiação: tentativas frustradas de venda do Bari ocorreram a partir de 2001 e apenas em 2009 uma transação teve êxito, quando 10% das cotas da sociedade foram negociados com os De Bartolomeo, também da nata apuliana.
Considerado sovina, Matarrese entrou em rota de colisão com a torcida do Bari na década final de sua presidência (imago/Gribaudi/IPA)
As escolhas feitas pelo cartola refletiram em campo e ele passou a ser mais lembrado pelo seu lado folclórico, cujo repertório incluiu entrevistas dadas no dialeto barês e até a acalorada discussão com Luciano Gaucci, após vitória sobre o Perugia, em 1999. Revoltado pela não expulsão de Duccio Innocenti por uma entrada que ocasionou a substituição de Renato Olive, o mandatário tentou invadir o ônibus dos apulianos enquanto bradava que a família Matarrese roubara os grifoni – na ocasião, Antonio já deixara as cúpulas da Lega Calcio e da FIGC, e acumulava os postos de vice-presidente da Uefa e da Fifa. “Somos de Serie A”, provocou Don Vincenzo, rebatendo o colega. Bom, a partir de 2001, não mais.
Após ser rebaixado naquele ano, o Bari passou oito temporadas consecutivas nas divisões inferiores, com direito a queda para a Serie C1 em 2003-04, quando já estava separado de Fascetti e Regalia. O time perdeu o playout para o Venezia, mas se safaria da terceirona por causa das falências de Ancona e Napoli. Além de atravessar um longo período na segunda categoria, o clube viu o número de torcedores em seus jogos diminuir drasticamente, em paralelo com a crescente degradação do estádio San Nicola. Criou-se um clima de “o último que sair apaga a luz”.
Os galletti tiveram um alento somente no fim da presidência de Matarrese, no biênio 2008-2010. Sob o comando de Antonio Conte, o Bari foi campeão da Serie B e retornou à elite após oito temporadas de ausência. Na primeira divisão, mesmo com elenco modesto, o time dirigido por Gian Piero Ventura ficou a apenas seis pontos de uma vaga na Liga Europa e ainda foi apreciado pelo estilo de jogo ofensivo. Novamente, ao invés de investir de maneira sábia e manter o nível da equipe, Don Vincenzo fechou a torneira: em 2010-11, no 12º ano da gestão na máxima categoria, os biancorossi seguraram a lanterna do campeonato e somaram 17 pontos a menos que a adversária que abria o pelotão que se manteve na categoria.
Foi a gota d’água: após nova onda de revolta popular, Don Vincenzo e o conselho administrativo entregaram uma carta de renúncia em junho de 2011. Ainda que não mais administrasse diretamente o Bari, o grupo Matarrese continuou a ser seu dono, enquanto seguia à espera de um comprador. Sem novo aporte de capital, o clube sucumbiu às dívidas e, numa tentativa de agilizar a passagem de bastão, declarou falência no primeiro semestre de 2014. Uma nova diretoria assumiu a agremiação e resolveu parte dos problemas, mas uma segunda bancarrota acometeu a instituição quatro anos depois, abrindo espaço para que a família De Laurentiis se tornasse sua proprietária.
Enquanto o Bari vivia uma montanha-russa, Matarrese estava afastado dos holofotes. Sem que o ex-presidente se manifestasse, muito se discutia sobre o início próspero e de grandes perspectivas de sua gestão de 28 anos, que tomou um caminho marcado por equívocos de planejamento e pela discrepância entre os objetivos comunicados à torcida e aqueles realmente desejados pelo cartola. Ao passo que o tradicional time do sul da Itália seguia um rumo abominado por qualquer torcedor, Don Vincenzo faleceu, em junho de 2016, aos 79. Com ele, perecia a ideia de que a mentalidade dos canteiros de obras pudesse funcionar no contexto futebolístico.