Trivela
·29 de setembro de 2022
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Disputar duas Copas do Mundo com o Brasil, faturar Champions e Premier League com o Chelsea, conquistar o carinho em clubes tradicionais como Cruzeiro e Benfica. Ramires construiu uma carreira excelente, com pontos altos que preenchem as ambições de qualquer jogador de futebol. Graças à sua postura incansável dentro de campo, o meio-campista se tornou herói a muitos torcedores. Fez jogos grandes o suficiente para se tornar um símbolo até na Champions e escreveu seu nome em alto nível, mesmo sem ser necessariamente um craque. Aos 35 anos, o fluminense anunciou sua aposentadoria do futebol nesta quarta-feira. Já fazia um tempo que tinha se distanciado dos grandes palcos, entre a ida para o Campeonato Chinês e os problemas físicos que atrapalharam seu retorno ao Palmeiras. Nada que diminua o que construiu e o papel importante que teve no esporte.
Nascido em Barra do Piraí, Ramires foi um dos tantos garotos que precisou driblar o destino para vingar na carreira. De origem humilde, o menino foi criado pela avó e dormia numa casa cheia, em que dividia uma cama de casal com a mãe e três irmãos. Estudou apenas até a quinta série e trabalhava como ajudante de pedreiro ao lado de um tio, enquanto fazia o seu nome em competições amadoras de sua cidade. O América de Barra do Piraí foi a sua primeira casa. Terminava o expediente em que carregava sacos de areia, pegava a bicicleta e ia treinar. O futebol era um caminho, mas longe de parecer tão aberto quando tinha 15 anos.
A sorte bateu na porta da Ramires aos 17 anos. Num amistoso contra as categorias de base do Joinville, acabou atraindo atenção e ganhou o convite para se testar no clube catarinense. Agradou no período de experimentação, mudou-se para outro estado e por lá iniciou sua carreira como profissional. Sua estreia aconteceu quando tinha apenas 18 anos. Da lateral direita foi adiantado para o meio-campo e, como uma peça versátil, não demorou a se destacar no Tricolor. A partir de então, tudo aconteceria bastante rápido ao jovem – mais rápido que suas próprias arrancadas.
O Cruzeiro fez uma pechincha ao contratar Ramires em julho de 2007, por R$350 mil. Logo o garoto de 20 anos recém-completados caiu nas graças da torcida celeste, com sua postura aguerrida e o fôlego que conferia ao meio-campo. Já virou titular absoluto no Brasileirão de 2007. Na ascendente, Ramires viveria um ano ainda mais marcante em 2008. Disputou a Libertadores pela primeira vez e acabou eleito como um dos melhores volantes da Série A, o que rendeu a Bola de Prata da revista Placar. Entre uma competição e outra, ainda participou das Olimpíadas de 2008, quando a Seleção levou o bronze. Seria o anúncio de passos maiores.
Pelo Cruzeiro, Ramires conquistou o Campeonato Mineiro em 2008 e 2009, mas lamentou não erguer o principal título que almejou. O meio-campista era uma das principais figuras na Libertadores de 2009, na qual a taça escapou na decisão contra o Estudiantes. Apesar da frustração, o fluminense ganhou suas primeiras chances na seleção principal no mesmo período. Estreou na goleada sobre o Uruguai pelas Eliminatórias e logo participou da Copa das Confederações de 2009. Titular com Dunga, levou seu primeiro caneco com a equipe nacional. Tornaria-se nome cada vez mais forte para a Copa do Mundo.
Antes de pensar na África do Sul, Ramires faria uma parada na Europa. O meio-campista acabou contratado pelo Benfica e se mudou para Lisboa logo depois da Copa das Confederações. Nem parece que o brasileiro defendeu os encarnados por apenas um ano, tamanha sua identificação. Ramires, afinal, teve participação decisiva na conquista do Campeonato Português 2009/10, que encerrava um jejum de cinco anos e um tetra do rival Porto. Numa equipe cheia de sul-americanos na qual também brilhavam Luisão, David Luiz, Ángel Di María, Pablo Aimar, Javier Saviola, Maxi Pereira e Óscar Cardozo, Ramires oferecia um ótimo escape. Foram quatro gols e seis assistências, numa temporada em que o time de Jorge Jesus também comemorou a Taça da Liga.
Dunga manteve Ramires como um nome certo da Seleção às vésperas da Copa do Mundo e, no último amistoso antes da estreia, o meio-campista anotou dois gols contra a Tanzânia. Porém, relegado ao banco de reservas, entrou apenas nos minutos finais dos jogos da fase de grupos. Existia um clamor para que Ramires se tornasse titular e isso se tornou possível nas oitavas de final, contra o Chile, quando Felipe Melo era desfalque por lesão. O jovem de 23 anos esteve entre os melhores em campo e puxou até contra-ataque para o último gol nos 3 a 0, mas tomou seu segundo amarelo no Mundial. De fora, seria uma ausência sentida na eliminação diante da Holanda na fase seguinte.
Aquele era o auge de Ramires, que mudou de clube novamente após a Copa do Mundo. Se o Benfica tinha desembolsado €7,5 milhões para levar o jogador do Cruzeiro, o Chelsea triplicou esse valor nos €22 milhões pagos em agosto de 2010. Os Blues não se arrependeriam. Ramires chegou num time que havia conquistado a Premier League na temporada anterior, mas já se tornou uma peça frequente nas mãos de Carlo Ancelotti. Virou o “Rambo”, apelido pela maneira como ia para as divididas. Entretanto, o segundo lugar na tabela do Campeonato Inglês não satisfazia. Já seu segundo ano começou conturbado, com a aposta frustrada em André Villas-Boas e a promoção de Roberto Di Matteo ao comando dos londrinos. Individualmente, em compensação, o brasileiro teve seu melhor ano pelo clube e se tornaria herói na Champions.
O Chelsea, afinal, atravessava o período derradeiro sob a batuta de seus senadores. O desgaste ao redor de Petr Cech, John Terry, Frank Lampard e Didier Drogba se notava, e o rendimento no geral não seria tão alto. Contudo, o time mostrou força quando importava e se impôs nos mata-matas da Champions. Ramires já tinha marcado gols vitais na fase de grupos, contra Genk e Valencia, para auxiliar na classificação. Também deu assistência na suada passagem contra o Napoli nas oitavas, antes de superar os antigos companheiros do Benfica nas quartas. O auge daquele Chelsea e o ápice da carreira do fluminense aconteceram nas semifinais diante do badalado Barcelona de Pep Guardiola.
A vitória em Stamford Bridge teve participação direta de Ramires. Lançado por Lampard, o camisa 7 matou no peito e partiu em velocidade. Dentro da área, executou um difícil passe rasteiro para a conclusão de Drogba, que sacramentou o placar por 1 a 0. Entretanto, a memória mais viva é a do épico no Camp Nou, por todo o esforço do Chelsea e pelo brilhantismo de Ramires. O Barça já vencia por dois gols de vantagem quando, nos acréscimos do primeiro tempo, o brasileiro acelerou e deu seu toque magistral por cobertura diante de Victor Valdés. O gol mais especial de sua carreira. Os blaugranas não conseguiram marcar novamente e ruíram no fim, quando Fernando Torres fechou a conta em 2 a 2. O milagre acontecia.
Foi uma pena Ramires, novamente suspenso, não ter disputado a final da Champions contra o Bayern. Porém, o brasileiro não é menos campeão por isso – pelo contrário, seu gol continua como o mais lembrado da campanha que valeu o inédito troféu ao Chelsea. Acabou eleito o melhor jogador do clube na temporada 2011/12 pelos próprios companheiros. A sequência de títulos continuou na temporada seguinte, mesmo que a Liga Europa estivesse um patamar abaixo. O meio-campista permanecia como uma figura central dos Blues, independentemente das instabilidades internas e das mudanças de treinadores. O que também garantia o seu lugar cativo na Seleção.
Depois da fracassada campanha na Copa América de 2011, Ramires se ausentou das listas nos tempos de Mano Menezes. O meio-campista recobrou o prestígio após a conquista da Champions, embora a chegada de Felipão também tenha afastado o jogador por um período nos meses seguintes, perdendo inclusive a Copa das Confederações. Todavia, no segundo semestre de 2013, Ramires voltou a participar ativamente dos jogos do Brasil e virou nome fixo para o segundo tempo. Disputaria o seu segundo Mundial, como um curinga entre os volantes ou mais aberto pelo lado direito.
Ramires figurou em todos os jogos do Brasil na Copa do Mundo de 2014, mas com pouca influência nos resultados, exceção feita à assistência para o gol de Oscar contra a Croácia. Quase sempre saía do banco de reservas, sem impactar diretamente nas dramáticas classificações diante de Chile e Colômbia. E quando entrou diante da Alemanha, substituindo Hulk no intervalo, a vaca já tinha ido para o brejo. Sua única aparição como titular foi na decisão do terceiro lugar contra a Holanda, quando o moral dos brasileiros estava no chão. Acabou um pouco chamuscado pela decepção, mas não tanto quanto outros pivôs do vexaminoso 7 a 1. Só apareceria nas convocações mais uma vez, na volta de Dunga, titular em amistosos contra Colômbia e Equador. Encerrou sua passagem pela Seleção com 27 anos, somando 51 jogos e quatro gols nos cinco anos em que envergou a amarelinha.
A perda de espaço de Ramires na Seleção é mais explicada até pela maneira como deixou de aparecer no time titular do Chelsea. O meio-campista teve problemas de lesão no início com José Mourinho e não conseguiria mais se encaixar na equipe durante a sequência da temporada 2014/15. Virou um reserva de luxo, com 14 aparições como titular nos 26 jogos que disputou pela Premier League, mas ainda assim campeão pela primeira vez. E se a situação com Mou não era das melhores, ela piorou depois que o treinador foi demitido em 2015/16. Ramires jogou ainda menos sob as ordens de Guus Hiddink. Seu ciclo em Stamford Bridge chegaria ao fim.
Em cinco temporadas e meia pelo Chelsea, Ramires disputou 251 jogos. Anotou 34 gols e deu 25 assistências. Marcou uma era entre os brasileiros que passaram pelo clube, dividindo o campo com David Luiz, Oscar, Willian e outras figuras de destaque. Entretanto, o fluminense é daqueles que merecem o rótulo de “ídolo cult”. Tinha muito carisma pela maneira como se desdobrava em campo e potencializava um time de medalhões. E fez, é claro, um dos gols mais fantásticos já comemorados pela torcida azul. Seu lugar na história estava garantido. Ainda deu lucro para o clube, ao ser vendido para o Jiangsu Suning por €28 milhões em janeiro de 2016.
Ramires ganhou um bom dinheiro em seus quatro anos na China, assim como virou um dos rostos principais no projeto ambicioso de seu time. Mas não que tenha deixado marcas tão profundas. Depois de ir bem em seus dois primeiros anos, sofreu com os problemas físicos e com atritos internos ao tentar sua volta para a Europa. Passou os dois anos seguintes no estaleiro, treinando inclusive com o segundo quadro, e perdeu muito de seu ritmo de jogo. Já em 2019, conseguiu retornar ao Brasil. Tinha uma história respaldada o suficiente para se transformar em reforço de peso do Palmeiras, em meio ao período vitorioso dos alviverdes.
Porém, Ramires nunca conseguiu justificar as esperanças no Allianz Parque. É uma passagem agridoce, com títulos importantes, mas pouca participação de fato. O meio-campista claramente não tinha condições físicas e sequer se firmou como titular. Conquistou o Paulistão, bem como disputou jogos no início das campanhas vitoriosas na Libertadores e na Copa do Brasil de 2020. Mas sequer apareceu no pôster e dificilmente será mencionado de cor quando esses feitos forem recordados pelos torcedores alviverdes. Seria um final de carreira melancólico, com o contrato rescindido em novembro de 2020.
Durante quase dois anos, Ramires ficou sem clube. Até que a decisão de oficializar a aposentadoria acontecesse nesta quinta-feira. “Depois de algum tempo refletindo, gostaria de comunicar que decidi encerrar oficialmente a minha carreira como jogador de futebol profissional. Nesse momento, só me resta agradecer primeiramente a Deus por Ele ter me capacitado e me conduzido aos patamares mais altos que o esporte pode oferecer. Muito obrigado também a todos os clubes pelos quais passei. Sempre levarei vocês e seus torcedores em meu coração. Gratidão também à Seleção Brasileira de Futebol por ter me proporcionado o prazer de disputar duas Copas do Mundo, o que foi a realização de um sonho”, escreveu, em suas redes sociais.
De certa maneira, o sucesso de Ramires se interrompeu de maneira abrupta e relativamente cedo, antes dos 30 anos. Foi algo correspondente às suas escolhas, ao optar pelo futebol chinês, e também pela perda da capacidade física que sempre foi o forte de seu jogo. Mas o tempo no auge da forma serviu para o meio-campista gravar seu nome. Conseguiu ser ídolo, ser imprescindível, ser salvador. Vai ter sempre um cumprimento especial de cruzeirenses e benfiquistas, as portas abertas em Stamford Bridge, as lembranças de qualquer brasileiro que o viu em Copas do Mundo. Tem muitos motivos para se orgulhar.