
Calciopédia
·16 de outubro de 2023
Querido no Milan, Kevin-Prince Boateng foi voz importante contra o racismo na Itália

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Chegar a um gigante sem muito alarde e se transformar em um dos protagonistas de campanha de título é para poucos. Kevin-Prince Boateng foi capaz de obter este feito no Milan do início da década de 2010 e se tornou um jogador bastante estimado pela torcida rossonera devido a seu desempenho superior ao esperado inicialmente. O ganês, que ainda defendeu outros três clubes do futebol italiano, também ocupou o posto de grande porta-voz da luta contra o racismo no esporte da Velha Bota.
Kevin-Prince nasceu em 1987, nos últimos anos de uma Berlim separada por um muro que simbolizava as diferenças políticas entre a Alemanha Ocidental e a Oriental, que se reunificariam em 1990. A oeste da muralha, sua família multicultural era uma representação de mudanças que estavam para se consolidar na sociedade alemã. Ademais, o futebol corria nas veias de sua linhagem, tanto por parte do pai, Prince, oriundo de Gana, quanto da mãe, Christine, germânica: o futuro meia é sobrinho de Robert Boateng, atacante que jogou pelos Estrelas Negras, e bisneto de Helmut Rahn, campeão mundial em 1954. Jérôme, seu meio-irmão, fruto de um segundo casamento do genitor, também ficaria famoso nos gramados e viria a chegar ao topo do planeta pela Nationalmannschaft, em 2014.
Boateng entrou nas categorias de base do Hertha Berlim em 1994, quando ainda era apenas uma criança, e se profissionalizou pelo clube da capital alemã na temporada 2004-05. O meio-campista se dividiu entre o time reserva bicolor e o titular até o fim de sua passagem, em 2007: por lá, ganhou uma Copa Intertoto e entrou no radar das seleções juvenis da Alemanha.
Considerado como um jovem bastante promissor, Boateng foi contratado pelo Tottenham por 5,4 milhões de libras esterlinas. Entretanto, o meia viveu um período bastante turbulento nos anos seguintes, nos quais obteve pouco espaço nos Spurs, apesar de ter participado da conquista de um raro título pelos Lilywhites – o da Copa da Liga Inglesa. Prince não vingou num empréstimo ao Borussia Dortmund, em 2009, e virou manchete por casos de indisciplina.
O temperamento forte foi um dos motivos que o fizeram ser pouco aproveitado pelas seleções de base da Alemanha, não obstante tenha recebido a Medalha Fritz Walter como melhor jogador sub-19 do país, em 2006. Três anos depois, Boateng comunicou à DFB, a Federação Alemã de Futebol, que não desejava mais representar os germânicos em nível internacional. Acabaria optando por Gana, país cujo mapa e nome tatuou na pele.
Boateng chegou ao Milan para compor elenco, mas se tornou uma peça importante no time que ganhou a Serie A, em 2011 (Getty)
Forte, rápido, técnico e dotado de um chute potente e de boa chegada ao ataque, Boateng se encontrou no Portsmouth, que o comprou junto ao Tottenham em 2009. No time do sul da Inglaterra, recebeu atribuições um pouco mais ofensivas às que estava acostumado e reeditou o sucesso do compatriota Sulley Muntari, que atuou mais ou menos na mesma faixa do gramado.
Boateng quase sempre integrou o onze inicial do técnico Avram Grant, tendo ficado de fora de partidas apenas por suspensões e por uma lesão no tornozelo. O Portsmouth segurou a lanterna da Premier League e terminou rebaixado para a segundona inglesa, apesar de ter feito ótima campanha na Copa da Inglaterra. Na final, perdida para o Chelsea, Prince foi hipnotizado por Petr Cech e desperdiçou um pênalti. Além disso, fez uma falta dura sobre o alemão Michael Ballack, pouco depois de ter sido agredido pelo adversário, e o tirou da Copa do Mundo de 2010. O meia foi criticado pela imprensa germânica, mas não se abalou com o que chamou de “hipocrisia”.
Nesse meio tempo, Boateng foi liberado pela Fifa para defender a seleção de Gana, que tentava persuadi-lo desde 2006. Após estrear pelos Estrelas Negras, em maio de 2010, foi convocado para representar a equipe nacional na Copa, que teria a África do Sul como palco. Titularíssimo, Prince atuou nos cinco jogos dos ganeses na competição e, além de ter enfrentado o irmão Jérôme no duelo com a Alemanha, na fase de grupos, chegou a marcar nas oitavas, sobre os Estados Unidos. Os africanos acabariam eliminados nos pênaltis pelo Uruguai, nas quartas, numa das partidas mais malucas da história dos Mundiais.
Depois da Copa, a carreira do ganês deu uma grande guinada já que o Milan, numa manobra com o Genoa, o levou para a Itália. Em 17 de agosto de 2010 foi anunciado que o time rossoblù recompensaria o Portsmouth 5,7 milhões de euros mais o passe do belga Anthony Vanden Borre, que já estava no clube inglês – esta transação, porém, caiu por terra. No dia seguinte, Boateng foi cedido ao Diavolo, que efetuou o pagamento em duas etapas: 1 milhão pela copropriedade e, em 2011, mais 7 mi pelo passe completo.
Por ser casado com uma alemã de pai natural da Apúlia, no sul da Itália, Prince tinha certo grau de conhecimento do país, o que facilitou sua adaptação – ainda que logo em 2011 o casal tenha se separado e o meia tenha iniciado uma longa relação com a modelo Melissa Satta, ex-namorada de Christian Vieri. Vida pessoal à parte, o jovem de 23 anos chegou ao Milan como peça para compor o elenco rossonero, mas rapidamente ganhou outro papel no time do recém-contratado Massimiliano Allegri.
A segunda passagem de Prince pelo Milan não foi marcante (Getty)
Inicialmente, Allegri chegou a escalar um Milan ultraofensivo, com um meio-campo formado por Boateng, Andrea Pirlo e Clarence Seedorf às costas de Ronaldinho, centralizado, e dos atacantes Zlatan Ibrahimovic e Filippo Inzaghi. Em variações táticas, quando o treinador deixava o 4-3-1-2 de lado e optava pelo 4-3-3, Prince atuava como ponta pela direita. O ganês até foi bem nessas funções, mas deu um salto depois que as relações entre o treinador e o brasileiro se deterioraram, o que levou à transferência do craque para o Flamengo e a sua promoção ao posto de trequartista.
Apesar de ter ficado afastado um mês e meio para tratar uma lesão nos adutores da coxa, Prince fez um ótimo returno da Serie A 2010-11 e foi importante para a conquista do scudetto pelo Milan, com três gols marcados e duas assistências fornecidas. Na festa do título Boateng simplesmente se fantasiou de Michael Jackson e fez até o famoso moonwalk.
O camisa 27 ganharia ainda mais relevância no time em 2011-12, apesar de mais contusões – que, inclusive, lhe fizeram decretar precoce aposentadoria da seleção ganesa no intuito de que pudesse se dedicar integralmente ao clube. Curiosamente, as lesões musculares, relacionadas a uma pubalgia, foram atribuídas à frequência e à intensidade com que ele faria sexo com sua namorada da época.
No campo, que é o que interessa, Boateng começou a temporada 2011-12 muito bem: no primeiro jogo da época, foi o autor do gol da virada por 2 a 1 sobre a Inter, que fez o Milan faturar a Supercopa Italiana. Na sequência, apesar de uma lesão e de expulsões em duelos com Juventus e Roma, num frenético 4 a 3 sobre o Lecce, o ganês se tornou o segundo jogador da história da Serie A, após Pietro Anastasi, a anotar uma tripletta depois de sair do banco de reservas – Josip Ilicic, Andreas Cornelius e Andrea Belotti igualariam o feito posteriormente, sem falar em Lautaro Martínez, autor de quatro tentos nessa condição. Prince também emendou uma sequência de quatro rodadas com participações em tentos.
No fim das contas, Boateng se tornou o termômetro do Milan de Allegri, que dependia muito da participação dos meias na construção e finalização das jogadas – Prince, a propósito, marcou nove gols ao longo de 2011-12. As tais lesões, entretanto, fizeram o ganês atuar em apenas 27 das 53 partidas do Diavolo na temporada e minaram o rendimento do time rossonero, que terminou sendo vice-campeão da Serie A, apenas quatro pontos atrás da Juventus, e eliminado nas semifinais da Coppa Italia e nas quartas da Champions League.
Atuando como falso nove no Sassuolo de De Zerbi, Boateng atraiu o interesse do Barcelona (Getty)
Após dois excelentes anos vestindo vermelho e preto, o meio-campista trocou o número de camisa, passando a usar a 10, que herdou por conta da saída de Seedorf para o Botafogo. A partir daí, o seu desempenho degringolou, juntamente ao do time como um todo – o Diavolo foi terceiro colocado da Serie A e eliminado nas quartas da Coppa e nas oitavas da Liga dos Campeões.
Naquela época, chamou mais atenção a sua reação contra atos racistas de um grupo de torcedores da Pro Patria, num amistoso de intertemporada, realizado em janeiro de 2013. Prince pegou a bola nas mãos, a chutou em direção aos criminosos e se retirou do gramado, motivando as duas formações a se dirigirem aos vestiários, sob aplausos de parte considerável do público presente no estádio Carlo Speroni. A partir da interrupção daquele jogo, ainda no primeiro tempo, o ganês se tornou um ícone na luta contra o racismo nos campos italianos.
Boateng, porém, teve pouco tempo para desempenhar essa função em sua primeira passagem pela Itália. No início da temporada 2013-14, após marcar dois gols contra o PSV Eindhoven nos play-offs da Liga dos Campeões e levar o Milan para a fase de grupos do torneio, foi negociado por 10 milhões de euros com o Schalke 04, tornando à Alemanha num contrato de três anos.
A primeira temporada de Prince em Gelsenkirchen foi boa, visto que o Schalke 04 foi terceiro colocado da Bundesliga e chegou até as oitavas da Champions League. Nesse período, Boateng até aceitou voltar a jogar por Gana e atuou na Copa do Mundo de 2014 – competição em que tornou a encarar a Alemanha e o irmão Jérôme, o que ocorreu em sua despedida dos Estrelas Negras. Porém, na gestão do italiano Roberto Di Matteo, em 2014-15, seu desempenho caiu e ele chegou a ser barrado por comportamento pouco profissional. Afastado, o meia viu transferências para Sporting e Al-Ittihad melarem e ficou parado até janeiro de 2016, quando regressou ao Milan gratuitamente.
Boateng chegou a um Milan oscilante, que foi treinado por Sinisa Mihajlovic, até meados de abril, e por Cristian Brocchi, dali até o fim da temporada. Com ambos os treinadores, contudo, o ganês, que vestiu a camisa 72, encontrou oportunidades proporcionais ao seu pouco ritmo de jogo e somou escassos minutos num time que amargou o vice-campeonato da Coppa Italia e ficou fora das competições europeias devido ao sétimo posto na Serie A. Assim, Prince deu adeus aos rossoneri pela segunda vez em junho de 2016, totalizando 114 aparições e 18 gols pelo Diavolo.
O ganês recebeu até a 10 da Fiorentina, mas não repetiu os seus melhores momentos em Florença (Getty)
Aos 29 anos, o ganês parecia entrar na descendente da carreira e ter assinado a custo zero com o Las Palmas era um indicativo disso. Entretanto, Prince passou a ser atacante nas mãos do técnico Quique Setién e, com 10 gols, foi o artilheiro dos amarillos numa campanha de meio de tabela em La Liga – com isso, Boateng pode acrescentar a seu currículo o fato de ter marcado nos quatro maiores campeonatos europeus.
Boateng até renovou o seu contrato com o Las Palmas, mas o rescindiu por motivos pessoais pouco antes do início da temporada 2017-18. Em seguida, acertou com o Eintracht Frankfurt e foi um curinga do técnico Niko Kovac, que o utilizou em diversas funções – mais como meia central, é verdade. Prince ajudou o seu time a faturar a Copa da Alemanha e, no verão de 2018, retornou à Itália através de uma insólita porta de entrada: o Sassuolo, acostumado a contratar promessas.
Atento ao rendimento de Boateng como atacante na Espanha, Roberto De Zerbi o utilizou como falso nove e obteve bons resultados, visto que o ganês balançou as redes cinco vezes em 15 aparições pelo time neroverde, que frequentava o meio da tabela – poderiam ter sido mais, não fosse uma lesão pélvica. O seu desempenho foi tão positivo que Prince chamou a atenção do Barcelona, que o levou para a Catalunha por empréstimo. É verdade que totalizou somente quatro presenças pelos blaugrana. Entretanto, apesar de quase não ter entrado em campo, pode comemorar o título de La Liga.
Após o fim da cessão, Prince voltou à Emília-Romanha, mas por pouco tempo: em julho de 2019, a Fiorentina o adquiriu em definitivo. Recém-comprada pelo norte-americano de origem italiana Rocco Commisso, a equipe violeta sonhava alto e também buscou outros nomes de peso, como Franck Ribéry, naquele mercado. Os gigliati não decolaram (terminariam na 10ª posição da Serie A) e Boateng, que vestia a camisa 10, também não. Foram 15 aparições e apenas um gol, na estreia, em derrota por 4 a 3 para o Napoli.
Em janeiro de 2020, o ganês foi emprestado ao Besiktas, da Turquia, e não conseguiu jogar bem. Prince, então, foi dispensado pela Fiorentina e ficou sem clube até o fim de setembro, quando as boas relações que cultivou no Milan lhe permitiram encontrar uma nova casa: o Monza, presidido por Silvio Berlusconi e administrado pelo executivo Adriano Galliani, que haviam sido seus chefes no Diavolo. Boateng ainda se reuniu a Brocchi e, a partir de dezembro, a Mario Balotelli, colega e amigo de Milanello.
Na reta final da carreira, Boateng reencontrou diversos milanistas no Monza, então na Serie B (imago/Buzzi)
Desde que Berlusconi adquirira o Monza, em 2019, o clube buscava retomar a sua história como uma das forças da Serie B e, principalmente, ter a chance de estrear na elite. Os bagai haviam chegado à segundona logo de cara e, nesse percurso de ascensão, Boateng e Balotelli apareciam como figuras de relevo. Ambos foram muito bem ao longo de 2020-21, já que marcaram cinco gols cada e ajudaram os brianzoli a ficarem na terceira colocação do certame. A briga pelo acesso, contudo, foi interrompida nos playoffs.
Após somar 25 jogos pelo Monza, Boateng não renovou o seu contrato com o clube italiano por um único motivo: o Hertha Berlim, que o formara, lhe deu uma chance de atuar novamente na Bundesliga. Prince retornou à capital alemã no intuito de ajudar os bicolores, que viviam período de dificuldade, e contribuiu para a fuga do rebaixamento na primeira temporada. Na segunda, contudo, o time segurou a lanterna do certame e não escapou da queda. Na sequência, o ganês anunciou a sua aposentadoria, aos 36 anos.
Dentro dos campos, o temperamento de Boateng sempre falou alto. A sua personalidade forte o fez naufragar em determinadas ocasiões, mas foi o que lhe permitiu ter sucesso no Milan, por exemplo. E também o motivo que o levou a ser uma voz ativa contra o racismo ao qual ele e vários colegas foram submetidos enquanto exerciam suas profissões. Não à toa, participou de uma força-tarefa da Fifa contra a discriminação racial e se tornou embaixador das Nações Unidas para o tema.
Kevin-Prince Boateng Nascimento: 6 de março de 1987, em Berlim, Alemanha Posição: meia-atacante Clubes: Hertha Berlim (2004-07 e 2021-23), Tottenham (2007-08 e 2009), Borussia Dortmund (2009), Portsmouth (2009-10), Milan (2010-13 e 2016), Schalke 04 (2013-15), Las Palmas (2016-17), Eintracht Frankfurt (2017-18), Sassuolo (2018-19), Barcelona (2019), Fiorentina (2019-20), Besiktas (2020) e Monza (2020-21) Títulos: Copa Intertoto (2006), Copa da Liga Inglesa (2008), Serie A (2011), Supercopa Italiana (2011), Copa da Alemanha (2018) e La Liga (2019) Seleção ganesa: 15 jogos e 2 gols