«O isolamento é o pior que pode acontecer»: o drama da saúde mental no futebol | OneFootball

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·24 de abril de 2024

«O isolamento é o pior que pode acontecer»: o drama da saúde mental no futebol

Imagem do artigo:«O isolamento é o pior que pode acontecer»: o drama da saúde mental no futebol

«Eu não aguento mais, eu não aguento mais, eu não aguento mais. Ajuda-me, por amor de Deus! Eu quero matar-me. Eu preciso de me matar». Eis as palavras arrepiantes de Matheus Pereira, jogador do Cruzeiro e ex-Sporting e Chaves, sobre os problemas de saúde mental que abalaram, com estrondo, a sua pacata vida. Infelizmente, este não é um caso isolado, sendo cada vez mais comum ouvirmos este tipo de desabafos.

Daniel Osvaldo, jogador que atuou no FC Porto, revelou que tem dificuldades em reconhecer a pessoa em que se tornou após passar por uma depressão, realçando a importância de pedir ajuda em situações tão críticas como a que vive. A verdade é que a problemática estende-se bem além do desporto-rei: Simone Biles, Naomi Osaka e Vanessa Fernandes, por exemplo, já vieram a público relatar os respetivos pesadelos interiores.


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Miguel Garcia também já atravessou um período mais atribulado, vivendo, temporariamente, numa prisão psicológica onde não conseguia tirar as algemas. Contudo, depois de todo o sofrimento, o antigo futebolista encontrou a Saída de Emergência, voltando a ganhar vontade de apresentar um sorriso. Quebrado o Muro do Silêncio, o interveniente não mostrou qualquer receio em partilhar a sua história, numa conversa honesta com o zerozero.

Poucos golos? O nascimento do Herói de Alkmaar

'Herói de Alkmaar'. Um rótulo que nunca ninguém conseguirá retirar a Miguel Garcia. Por ironia do destino, o seu primeiro tento enquanto profissional acabou por simbolizar um capítulo muito bonito na história do Sporting. Já ao cair do pano, na sequência de um canto, o camisola 15 apareceu de rompante ao primeiro poste e, com um cabeceamento certeiro, carimbou a passagem dos leões à final da Taça UEFA 2004/05.

«Foi, sem dúvida, o momento mais importante da minha carreira. Uma noite muito especial. Levar o Sporting a uma final europeia é algo que me enche de orgulho», referiu, visivelmente nostálgico.

«Quando a bola entra, não se tem bem a noção da importância do golo ou até mesmo do jogo. Só após o apito final é que há um momento de maior reflexão e onde nos focamos mais nos sentimentos associados», acrescentou.

No entanto, com o decorrer das temporadas, o lateral acabou por perder espaço no plantel leonino, fenómeno que levou a uma mudança de ares. Em 2007, o Reggina, emblema que militava no primeiro escalão italiano, chegou-se à frente, para alento do jogador.

«Era um clube no qual eu depositava grandes expectativas. Eu via-me a fazer grandes épocas na Serie A porque as minhas valências encaixavam-se bem em campeonatos mais físicos e táticos», afirmou. Porém, quando os índices de motivação estavam no cume, o azar bateu à porta...

Sfortuna: a lesão que pôs fim ao sonho italiano

Depois de poucos jogos na pré-época, o atleta lusitano começou a sentir uma dor acentuada. A causa para o sofrimento? Uma inflamação no tendão rotuliano. A lesão obrigou Miguel Garcia a afastar-se dos relvados por tempo indeterminado: «A dada altura, eu quase não conseguia andar

Em conversa com o nosso portal, a psicóloga Liliana Pitacho, doutorada em Ciências Sociais, na especialidade de Comportamento Organizacional, destacou as complicações que os condicionamentos físicos podem trazer à parte mental, abordando, ainda, as respetivas correlações com outro tipo de desenvolvimentos.

«Quanto maior for a lesão ou a perceção que o atleta tem sobre a mesma, maior serão os eventuais níveis de tristeza e ansiedade. Durante este período, os desportistas acabam por não conseguir competir. Logo, começa a haver uma rotura com os respetivos objetivos, levando a que haja uma substancial perda de identidade e uma acentuada quebra na rotina. Desta forma, episódios de depressão e stress são mais suscetíveis de aparecerem, podendo dificultar a própria recuperação, devido às transformações químicas que provocam no organismo», explicou-nos.

«Não estava a 100 por cento, mas queriam que eu jogasse»

A formação de Reggio Calabria deu autorização ao seu comandado para viajar para o país que viu crescer, de forma a realizar uma tão necessária operação. O problema é que um mal nunca vem só, com a recuperação a ir de encontro com o esperado. Após alguns meses, o defesa foi submetido a uma nova intervenção cirúrgica, desta feita na Alemanha.

No entanto, para piorar a situação, o clube começava a perder a paciência ao contemplar a constante indisponibilidade do seu alto investimento: «Eu ainda não estava a 100 por cento, mas queriam que eu treinasse e jogasse. A equipa não estava a ter os resultados esperados. Eu acabei mesmo por retornar aos trabalhos, mas acabei por ter uma nova recaída

Face ao incidente, só existia uma decisão benéfica para as duas partes: a rescisão amigável. Porém, os messina não se mostraram plenamente interessados nesta solução, procurando fazer braço de ferro sobre a quantia monetária que deviam ao experiente jogador. Assim, a instituição procurou afastar qualquer culpa no cartório.

«Diziam que eu vinha lesionado do Sporting. Fizeram algumas ameaças sem sentido algum para tentar justificar a falta de pagamento. No final, chegou tudo a bom porto, mas tive que estar firme e aguentar a pressão psicológica. Estava noutro país e não conseguia falar bem a língua. Foi bastante complicado», referiu.

«Eu compreendo a parte dos clubes. Se um jogador não está a jogar, as equipas querem que este se vá embora para contratarem outro, sem pagar mais nada. No entanto, as coisas não funcionam assim...», disse ainda, mostrando estar bastante consciente com todo o episódio e diferentes posições.

Da Porta do Desemprego ao auxílio do Sindicato

Após os diferendos estarem finalmente resolvidos, tudo parecia estar encaminhado para o jovem Miguel voltar a encontrar prazer na modalidade. Todavia, a solidão acabou por atirar o protagonista para um buraco de negatividade. Sem emblema, era muita a ansiedade e incerteza. O desempregado corria sozinho na zona da Expo, aguardando por uma chamada que o levasse a ter uma oportunidade numa nova paragem.

Contudo, uma simples conversa acabaria por mudar o rumo dos acontecimentos e a cabeça do próprio jogador. O atleta oriundo de Moura falou diretamente com os responsáveis pelo Sindicato de Jogadores, organismo conhecido por dar voz aos futebolistas e acabou por ir treinar regularmente com colegas de profissão que passavam por situações idênticas.

«Foi muito importante estar com outros jogadores, competir com eles. Conviver faz toda a diferença, não só em termos físicos como emocionais. Para além disso, o Sindicato deu-me visibilidade e abriu-me portas para outros contextos. O 'Estágio do Jogador' deu-me a chance de ir treinar ao Olhanense, onde acabei por ficar», assegurou.

Miguel Garcia não ficou por aqui: «Descobri que o isolamento é a pior coisa que pode acontecer. Basta estar com um amigo a falar no departamento médico para ajudar na recuperação. O importante é estar rodeado com pessoas positivas. Não há lesões irrecuperáveis.»

A psicóloga entrevistada também valorizou as relações interpessoais como um dos principais antídotos para contornar fragilidades emocionais: «Todos nós precisamos de viver em sociedade. Um ambiente social positivo ajuda a servir de suporte emocional. Não significa que trate ou resolva a problemática, mas ameniza as crises individuais. Deve-se investir bastante num bom ambiente de balneário, com team buildings a serem fundamentais para potenciar este equilíbrio.»

O imobiliário amparou a queda: «Já tinha o meu futuro pensado»

Colocar o ponto final na carreira. Assunto tabu para muitos desportistas. É difícil dizer 'adeus' a algo que se fez durante toda a vida. É difícil dizer 'adeus' a uma rotina onde estão guardadas excelentes memórias. Quais são então os pressupostos necessários para que a saudação final seja mais ténue?

Miguel Garcia viu no ramo imobiliário a resposta certa, uma grande paixão que desenvolveu paralelamente ao futebol. Antes de pendurar as botas, o jogador já tinha alguns negócios e investimentos que ampararam o expectável fim: «A minha paragem foi bastante suave por causa deste setor. Tive muitas formações para estar pronto para enfrentar a área. Já tinha o meu futuro pensado. Porém, no meu primeiro ano fora dos relvados, foi difícil ver jogadores no ativo.»

«É importante que os jogadores, antes de terminarem a carreira, já saibam o que querem fazer. Devem tirar, antecipadamente, uma formação ou um curso e investir neles próprios para que a expectável queda não seja tão difícil. Não ter um plano B pode ser alarmante», concluiu.

Por seu lado, Liliana Pitacho corrobora com esta opinião: «É mesmo muito importante que haja uma opção alternativa. Se não existir um plano B de carreira, a probabilidade de surgirem casos de depressão é bem maior. Muitos desportistas, a nível nacional e internacional, já vieram a público expressar as suas dificuldades neste âmbito, confessando estarem a seguir a via dos consumos de substâncias psicoativas ou dos jogos de casino. Estas atividades servem de refúgio ao sofrimento.»

Exemplo a seguir: Norwich City e o vídeo comovente

A consciencialização sobre esta problemática tem estado na agenda das instituições desportivas de forma cada vez mais regular. Em outubro do ano passado, o Norwich City, conjunto que atua na segunda divisão do futebol inglês, publicou um vídeo sobre a saúde mental que acabou por mexer com os corações de uma grande escala populacional.

A história dos canaries correu mundo, mostrando as dificuldades relacionadas com a perceção do mal-estar alheio. O mote da publicação passou por explicar que os comportamentos físicos e superficiais podem estar a esconder uma dor interior bastante acesa, num fenómeno difícil de ser contrariado.

Para Liliana Pitacho, «quanto mais se falar no assunto, maior a probabilidade deste paradigma se alterar»: «É importante que os atletas tenham disponibilidade para mostrar este seu lado mais vulnerável, que todos temos. Necessitam de despir as capas de super-herói. Para quem vê de fora, a vida deles é fácil, quando na verdade não é.  As pressões a que estão submetidos são enormes e é algo que leva a um grande desgaste emocional

A psicóloga realçou ainda que existe «cada vez mais abertura» para os profissionais exporem as suas inquietações e abrirem o livro sobre os obstáculos extracampo. Contudo, a entrevistada afirmou que o medo de represálias continua bem patente.

«Muitas vezes não estamos disponíveis para que as nossas chefias saibam que nós não estamos tão bem. Os desportistas sentem o mesmo. Existe o receio de que se disserem que não estão tão motivados para o próximo duelo não sejam chamados. Têm medo que estas questões psicológicas possam ser usadas contra si, embora seja bem mais fácil trabalhar com uma pessoa que está consciente com a sua situação», concluiu.

«A saúde mental é um direito, não um privilégio». Uma mera citação de Franco Basaglia, ilustre psiquiatra italiano, que marca pela sua simplicidade. Numa era onde a tecnologia e as plataformas digitais conseguem camuflar emoções e estados de espírito, alertar para esta problemática nunca é demais.

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