Trivela
·20 de setembro de 2022
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A imponente fotografia registra Haile Selassie, imperador da Etiópia e histórico líder africano, com o troféu da Copa Africana de Nações em suas mãos. À frente, pronto para receber o prêmio, aparece o capitão da seleção etíope na conquista do torneio em 1962. A história de Luciano Vassallo, no entanto, vai muito além da maior façanha já registrada pelos Walia Ibex. O chamado “Di Stéfano Etíope” era um verdadeiro craque, considerado pela CAF como um dos 50 maiores jogadores do continente de 1956 a 2006. Ao mesmo tempo, também era um sobrevivente, vítima da discriminação de diferentes lados por ser um ítalo-eritreu mestiço que cresceu em meio a guerras e ao processo de colonização. Apesar das rasteiras sofridas ao longo da vida, e não foram poucas, Vassallo gravou seu nome como um gigante do futebol. Assim merece ser recordado, diante da notícia de sua morte aos 87 anos de idade, os últimos 44 acolhido pela mesma Itália que o marginalizou na infância.
A história de vida de Luciano Vassallo reflete diretamente a história política do chamado Chifre da África. A influência italiana na região se ampliou principalmente na segunda metade do Século XIX, a partir de interesses comerciais. Em 1890, a ocupação italiana resultou no estabelecimento da colônia da Eritreia – o nome latino para Mar Vermelho. E o território se tornou estratégico sobretudo na década de 1920, com as pretensões expansionistas da ditadura fascista de Benito Mussolini. A presença italiana se tornou maior, inclusive para servir de base ao exército rumo à conquista da soberana e vizinha Etiópia.
Em meados da década de 1930, milhares de militares italianos foram deslocados para Asmara, capital da colônia da Eritreia. Esses homens estavam sendo preparados para a invasão da Etiópia nos meses seguintes. Muitos deles tiveram relações com mulheres nativas. Entre eles estava Vittorio Vassallo, oficial que engravidou Mebrak Abraham. O filho do casal, Luciano, nasceu em agosto de 1935. Menos de um ano depois, a Etiópia foi anexada pela Itália e passou a fazer parte do território da África Oriental Italiana. Já em 1937, Vittorio Vassallo seria enviado a Addis Abeba. Seu paradeiro depois disso jamais seria conhecido.
Luciano Vassallo
Luciano Vassallo, assim, cresceu como uma criança mestiça num território controlado pelos fascistas. Sua mãe tentou realizar um aborto, mas o feto sobreviveu. “Sou o filho, como tantas crianças da minha geração, de relações que se estabeleceram entre italianos e eritreus. Era um inferno para pessoas como nós. Quando eu tinha apenas dois anos, meu pai foi transferido para Addis Abeba e não sabíamos mais nada sobre ele. Ele pode ter morrido na guerra ou sobrevivido, nunca saberemos”, relembraria Vassallo, em sua autobiografia. “Minha mãe dizia que eu, loiro e com a pele clara, era filho de Satã, porque apenas um demônio teria sobrevivido a todas as poções que ela tomou esperando abortar. Ela gritava comigo e me batia sem razão”.
Se as relações entre soldados italianos e mulheres eritreias de início eram tratadas sob vistas grossas, a partir de 1937 elas se tornaram ilegais por decreto, dentro das leis racistas do fascismo italiano. As nativas poderiam ser presas de um a cinco anos, sob acusação de “madamato”. Já em 1940, a adoção e a afiliação de crianças nativas ou mestiças se tornaram proibidas para italianos que viviam na África Oriental Italiana. Assim, o menino de cinco anos vivia à margem da lei, como um pária unicamente por ter nascido de uma relação proibida.
“Lidávamos com a vergonha das leis raciais. Eu me refiro, em particular, à lei sobre mestiços aprovada em 1940 por Mussolini, com a qual fomos oficialmente considerados como uma raça inferior, fraca, que não merecia os mesmos direitos que os outros”, recontaria Vassallo. “Fomos desprezados por todos. Os italianos nos consideravam uma raça inferior e nos tratavam como tal. Mas as coisas eram ainda piores com os eritreus. Para eles éramos bastardos, filhos de ninguém, como se não fôssemos nem mesmo filhos de prostitutas. Uma situação muito pesada para nós mestiços que prevalece ainda hoje”.
Luciano Vassallo
Mebrak Abraham teve mais dois filhos de outra relação. Nasceram Ítalo e Lina, que acabaram carregando também o sobrenome Vassallo. Sem poder ingressar nas escolas italianas por causa das leis raciais, Luciano iniciou os seus estudos formais num colégio mantido por religiosos, mas preferiu abandonar as aulas quando tinha apenas oito anos, diante das discriminações e dos abusos – chamado muitas vezes de “filho da culpa”. Cresceu nas ruas, precisando se virar para conseguir o sustento. Desde muito cedo trabalhou nos mais diferentes bicos – como vendedor de jornais, flanelinha, varredor.
A África Oriental Italiana existiu até 1944, quando os fascistas foram derrotados e deixaram o continente às vésperas do fim da Segunda Guerra Mundial. Capturada pelos aliados ainda em 1941, a Eritreia permaneceu sob administração britânica até 1952, quando recuperou sua soberania. A nação, de qualquer maneira, passaria a compor um só estado com a Etiópia a partir daquele momento. Era nesse contexto que Luciano Vassallo crescia, ainda num território com fortes influências das mais de cinco décadas de colonização italiana. Como consequência, o futebol tinha raízes mais profundas nas cidades eritreias do que nas etíopes.
Luciano Vassallo foi apresentado ao futebol na periferia de Asmara, quando jogava nas ruas com outras crianças. Moldado pela dureza da vida, costumava ser valente não apenas dentro de campo. Impunha seu respeito. “Eu tinha a personalidade do meu lado. Era impulsivo e não pensava duas vezes para reagir, mesmo fisicamente, quando recebia um xingamento. Eu era temido e por isso me deixavam em paz”, recontou ao L’Équipe.
Luciano Vassallo
A partir dos 15 anos, Vassallo acabou convidado para fazer parte do Stella Asmarina, equipe estudantil de uma escola católica no centro de Asmara. A camisa bianconera, com listras brancas e pretas, transmitia diretamente a identidade do time: ele era dedicado especificamente a garotos mestiços, filhos das relações entre brancos italianos e negras eritreias. Era um projeto social para promover a integração desses jovens, discriminados de diferentes maneiras, por vários lados. Foi quando a vida do futuro craque começou a se transformar.
Fazer parte do Stella Asmarina não afastava os jogadores da rejeição e do preconceito. Os xingamentos de “fascistas” e “bastardos” vindos dos eritreus ou dos italianos eram constantes, enquanto torcedores presentes jogavam até mesmo pedra nos garotos. Não à toa, muitos treinos aconteciam às escondidas, durante a madrugada. Apesar disso, Vassallo desabrochou como um talentoso lateral esquerdo. Logo passou a atrair a atenção de outros clubes. Aprendiz de mecânico, chegou a flertar com a equipe da companhia ferroviária italiana, mas não fecharam o acordo. A oportunidade de verdade veio através do Gejeret, uma equipe modesta, mas que concentrava suas forças apenas em atletas eritreus de origens humildes (e não dos italianos que povoavam a liga) e se mostrava mais competitiva no âmbito local que o Stella Asmarina.
Contratado pelo Gejeret em 1953, aos 18 anos, Luciano Vassallo passou a se colocar na elite do futebol etíope – que absorvia os clubes eritreus. Pela equipe, o prodígio conquistou o acesso à primeira divisão nacional e ganhou as primeiras convocações à seleção em 1956, aos 21 anos. Nem isso evitava que fosse desprezado por suas origens. “A situação também era difícil na seleção. Eu era constantemente insultado e humilhado. Até que um dia, quando um companheiro me chamou de bastardo, eu o tranquei em um quarto e dei uma surra nele. Ninguém teve coragem de dizer nada. Desde então, fui respeitado por todos e me tornei líder da seleção. Comecei a participar de todas as competições internacionais”, recordou ao L’Équipe.
Luciano Vassallo com a braçadeira
Já em 1958, Luciano partiu para defender o Grupo Sportivo Asmara, um clube importante da comunidade italiana. Por tabela, ainda recebeu um emprego na Imperial Highway Authority, para trabalhar como mecânico nas linhas ferroviárias. O jovem poderia oferecer condições melhores à sua mãe, bem como aos irmãos – por mais que Ítalo, cinco anos mais jovem, também desse seus primeiros passos como atleta do Hamasien, primeiro clube da comunidade eritreia na antiga colônia italiana e que servia como símbolo nacionalista.
O GS Asmara demarca uma transformação na carreira de Luciano Vassallo, ainda que tenha permanecido apenas dois anos no time. Foi por lá que ele deixou a lateral e, depois de um período como zagueiro, se tornou um camisa 10 cerebral. Era um armador de chutes ferozes e cobranças de falta magníficas. Além disso, a capacidade física permitia que preenchesse todo o campo, tal qual fazia Alfredo Di Stéfano no Real Madrid. Vassallo era o único mestiço numa equipe composta por italianos étnicos, incluindo Massimo Fenili, multicampeão em diferentes modalidades que chegou a passar brevemente pelo Bologna. E os rossoneri, embora perseguidos por serem ligados aos antigos colonizadores e prejudicados sistematicamente pelas arbitragens, registravam grandes resultados. Ganharam inclusive da seleção etíope na preparação à Copa Africana de Nações, em 1960.
Não era um momento em que Luciano Vassallo podia desfrutar plenamente da seleção da Etiópia, porém, mesmo acumulando aparições e usando a braçadeira de capitão. No campo político, existiam movimentos que visavam a independência da Eritreia. Assim, com a federação nas mãos dos etíopes, eritreus não eram totalmente bem-vindos na equipe nacional. O preconceito também imperava por lá. Pesava contra ainda o fato de Vassallo atuar num clube italiano, visto como “traidor”. Embora a Etiópia tenha participado da fundação da Confederação Africana de Futebol, o camisa 10 não esteve presente nas duas primeiras edições da Copa Africana de Nações. Em 1957, com um elenco dividido entre jogadores de clubes etíopes e eritreus, os Walia Ibex perderam na decisão para o Egito. Já em 1959, foram batidos na semifinal pela República Árabe Unida – território que compreendia, além do Egito, também a Síria.
Luciano Vassallo e Mengistu Worku
O sucesso de Luciano Vassallo se tornou inquestionável a partir de 1960, quando ele se transferiu para o Cotton Factory Club. A equipe de Dire Dawa, cidade etíope próxima da fronteira com a Somália, era a atual campeã do Campeonato Etíope e visava montar um elenco ainda mais forte. Por isso mesmo, foi até Asmara contratar não apenas Luciano para vestir a camisa 10, mas também Ítalo Vassallo, ponta de lança que virou a nova referência no ataque. Pela primeira vez, os irmãos teriam a oportunidade de atuar juntos, enquanto ganhavam empregos no cotonifício que administrava o time. E a parceria rendeu novas taças, com outros três títulos na liga nacional até 1965.
Tornava-se impossível renegar o talento de Luciano Vassallo às vésperas da Copa Africana de Nações de 1962. Pela primeira vez, a Etiópia receberia o torneio. Mais do que isso, o país ganhava um destaque esportivo internacional maior desde 1960, graças à participação do lendário Abebe Bikila nos Jogos Olímpicos de Roma. Membro da guarda pessoal do imperador Haile Selassie, o fundista se tornou o primeiro etíope a conquistar o ouro olímpico, com um desempenho tão incrível na maratona que, mesmo descalço, estabeleceu o recorde mundial da prova. Em meio a essa onda positiva, paralelamente o governo etíope tentava suprimir insurgências pela independência eritreia. Transmitir a imagem de um país unido era importante.
A seleção da Etiópia era comandada na época por Yidnekatchew Tessema, grande lenda do futebol local nos anos 1940 e 1950, que participou da fundação da CAF e se tornaria posteriormente presidente da confederação por 15 anos. Confrontado pela segregação dos italianos no auge de sua carreira, todavia, o treinador era um dos tantos que não se satisfazia com a presença de Luciano Vassallo. Até aceitou convocá-lo à CAN 1962 ao lado do irmão, Ítalo. Em compensação, ao lado de outros cartolas, tentou tirar a braçadeira do camisa 10 e até pediu para mudar seu sobrenome – algo logicamente refutado pelo craque. Luciano seria confirmado como capitão somente depois da intervenção dos companheiros etíopes, mais explicitamente de Mengistu Worku. O atacante, considerado o maior jogador da história da Etiópia, despontava como ídolo do Saint George, clube mais importante do país e também visto como uma bandeira nacionalista etíope nos tempos de colonização italiana. Teria influência direta para garantir a estabilidade nos Walia Ibex.
Luciano Vassallo e Mengistu Worku
“Eu era um jogador dedicado. Tinha 27 anos e era capitão da seleção. No início da competição, porém, aconteceu algo que me enfureceu. Os dirigentes sabiam que tinham uma equipe forte e que poderíamos levar o título. Muitos consideravam impróprio que, em caso de vitória, a taça fosse recebida por um mestiço de sobrenome italiano. Mais discriminação, mais racismo! No começo eles até pediram para mudar meu nome, para que um ‘verdadeiro etíope’ capitaneasse a seleção. Eu fiquei irritado e ameacei desistir da competição. Então eles voltaram atrás, mas o treinador informou nos vestiários que a braçadeira iria para o goleiro. Houve tumulto e Mengistu Worku, meu grande amigo e outro carismático líder do grupo, disse que isso não era possível e exigiu que eu continuasse como capitão”, disse Vassallo, ao L’Équipe.
Com a presença do Imperador Haile Selassie nas arquibancadas, a Etiópia registrou sua melhor campanha na história da Copa Africana de Nações. Em tempos nos quais o continente atravessava o processo de descolonização, apenas quatro seleções participaram do torneio. Os Walia Ibex estrearam já nas semifinais, em duelo contra a estreante Tunísia. Venceram por 4 a 2, com show de Luciano Vassallo. O atacante marcou dois gols e iniciou a reação dos etíopes, que começaram perdendo por dois tentos de diferença. Tekle Kidane e Mengistu Worku completaram o placar. A decisão em Addis Abeba, então, teria a revanche contra a República Árabe Unida, algoz nas duas edições anteriores da competição.
Os Faraós fecharam o primeiro tempo em vantagem, com um gol de Badawi Abdel Fattah. O empate da Etiópia saiu a 15 minutos do fim, com Tekle Kidane, mas Badawi marcou de novo no minuto seguinte. A igualdade seria retomada pelos Walia Ibex aos 39 do segundo tempo. O herói? Luciano Vassallo, estufando o barbante. A partida entrou na prorrogação, quando enfim Ítalo Vassallo e Mengistu Worku selaram a vitória dos anfitriões por 4 a 2. Caberia a Luciano Vassallo, eleito o melhor jogador do torneio, subir à tribuna de honra e receber das mãos do imperador Haile Selassie o troféu de campeão da Copa Africana de Nações. Um feito que os Walia Ibex nunca mais repetiriam. O armador ainda ganhou um carro de luxo de presente de Selassie, embora a federação tenha reduzido sua premiação em dinheiro por ser “mestiço”.
Luciano Vassallo com o troféu
“Aquela foi a maior satisfação da minha vida: receber a taça diretamente das mãos do imperador! Um mestiço que representava toda a Etiópia. Eu podia receber a taça de cabeça erguida, não como certos companheiros, que costumavam se prostrar diante do imperador. Naquele momento, foi a vingança de todos os mestiços. Essa vitória representou muito a nível pessoal. Desde então me tornei um símbolo para muitas pessoas, desfrutei do respeito geral, fui respeitado e elogiado por todos. Em nível técnico, muitos começaram a me comparar com Di Stéfano e outros grandes craques do meu tempo. Sem falsa modéstia, devo admitir que eu era muito bom”, contaria Vassallo.
Luciano Vassallo permaneceu como uma figura onipresente na década dourada da Etiópia no futebol de seleções, por mais que a Eritreia concomitantemente perdesse sua autonomia e se tornasse uma mera província no plano administrativo. O camisa 10 disputou outras quatro edições da Copa Africana de Nações, de 1963 a 1970, sem que os Walia Ibex passassem da quarta colocação. As contas pessoais computam 99 gols em 104 aparições do craque pela equipe nacional, mas tais números não são considerados oficiais. Ele era uma liderança ao lado de Worku e do irmão Ítalo. Já por clubes, Luciano continuava envergando a camisa do Cotton Factory, mesmo que os sucessos na liga tenham cessado em 1965.
A influência expressa de Luciano Vassallo também encurtou seu caminho à casamata. O camisa 10 se tornou treinador do Cotton Factory enquanto ainda atuava, e conciliou a função dupla por cinco anos, até a aposentadoria dos gramados em 1973. Àquela altura, o veterano retomava suas origens como mecânico e administrava uma oficina autorizada da Volkswagen em Addis Abeba. As origens italianas também o auxiliaram a realizar sua formação como técnico na famosa escola de Coverciano. Era da mesma turma que reuniu outras lendas do Calcio, incluindo Cesare Maldini, Armando Picchi e Luís Vinício. Levou métodos modernos à Etiópia, pautados na preparação física e no detalhamento tático. Mas, num momento em que combinava o comando dos Walia Ibex com o do Saint George, viu a situação do país transformar sua realidade mais uma vez.
Luciano Vassallo
Em setembro de 1974, um golpe tirou Haile Selassie do poder. Iniciaram-se os anos do proclamado Terror Vermelho, com o genocídio promovido por grupos militares comunistas apoiados pela União Soviética no contexto da Guerra Fria. Como figura pública, Luciano Vassallo ainda tinha certa proteção, mas também sofreu com a perseguição por ser eritreu e mestiço. Em 1976, seria despedido pela seleção, para a chegada do alemão-oriental Peter Schnittger. E quando Vassallo denunciou um esquema de doping nos Walia Ibex, implementado pelo novo técnico, logo se tornou inimigo declarado do regime. Seria detido em sua oficina mecânica e levado para a cadeia, sob alegação de “cumplicidade com o antigo império”. Por sorte, um coronel responsável pelo local era fã do antigo camisa 10 e facilitou sua libertação. Posteriormente, o veterano ainda reassumiu a equipe nacional e liderou uma histórica vitória sobre a Alemanha Oriental. Seria seu último jogo à frente dos Walia Ibex.
Àquela altura, já temendo por sua vida, Luciano Vassallo tinha enviado sua família para a Itália. Duas semanas depois do jogo contra os alemães-orientais, ele mesmo deixaria tudo o que construiu na Etiópia para trás e abandonaria o país. A fuga através do Djibuti quase deu errado, com o veterano pego quando tentava atravessar as montanhas. De novo seu passado no futebol o salvou e ele teve inclusive auxílio para seguir até o Egito. De lá, embarcou para a Itália, onde teve problemas de visto até ser liberado. Roma seria o seu novo lar.
“Eu tive sorte quando cruzei as montanhas e cheguei ao Djibuti. Os guardas me pararam com os fuzis apontados, mas um deles me encarou por alguns instantes e me perguntou: ‘Você não é o Luciano?’ Ele me apresentou aos colegas, que me cumprimentaram e, quatro dias depois, eu estava num voo para o Cairo”, recontou, à Gazzetta dello Sport. “Na Etiópia, eu tinha um centro de serviços automotivos. O regime tomou todos os meus bens e eu ainda lutei para recuperá-los. Não tinha nada no meu bolso, mas saí com minhas habilidades. Sempre trabalhei e a Itália me deu o que me pertencia”.
Luciano Vassallo e Mengistu Worku
Diferentes autoridades tentaram apagar o nome dos Vassallo da história do futebol etíope. Ítalo continuou em Addis Abeba, onde tinha um restaurante, mas seria deportado para a Eritreia já independente em 1998, em consequência da guerra travada entre seu país de origem e a Etiópia. Enquanto isso, Luciano nunca mais voltou a residir no Chifre da África. Conseguiu o passaporte italiano, décadas depois de ser renegado pelos fascistas. Após trabalhar como mecânico nas ruas, atendendo de casa em casa, montou sua oficina em Ostia, distrito costeiro nos arredores de Roma.
E o futebol também nunca deixou de fazer parte da vida de Luciano Vassallo. Ele fundou uma escolinha, o Olimpia Ostia, para ensinar crianças locais. Certamente tinha muitos ensinamentos a transmitir, numa vida dedicada aos gramados e transformada tantas vezes pela bola. Igualmente comparecia em torneios destinados a comunidades de imigrantes e refugiados da Etiópia e da Eritreia em outros países. Certa vez, se sentiu como “Totti em Roma” quando foi recebido com festa pelos filhos da diáspora em Estocolmo. Foi de lá que saiu o principal jogador de origem eritreia da atualidade, Alexander Isak, nascido em Solna.
“Sempre quis fazer o bem na vida, é por isso que amo o esporte: acho que é uma ferramenta educacional excepcional”, analisou o veterano, também à Gazzetta dello Sport. “Eu jogava por meus companheiros, por meus irmãos. Sempre tive o defeito de detestar a arrogância: sofri muitas desgraças, mas posso dizer que consegui escrever meu nome”.
Luciano Vassallo
Ao longo das últimas duas décadas, Luciano Vassallo ganhou um respaldo maior através de suas memórias, registradas em sua autobiografia. Também se tornou uma figura constante em reportagens da imprensa europeia, sobretudo a italiana. Já a maior prova de sua grandeza veio em 2006, quando a Confederação Africana de Futebol escolheu os 50 maiores jogadores do continente nos 50 anos da entidade. Vassallo era um dos únicos dois etíopes da lista, ao lado do amigo Mengistu Worku, e especificamente o único eritreu. Era sua resposta às identidades negadas ao longo de sua vida.
Tal reconhecimento, todavia, não impedia o ressentimento: “Tenho que ser honesto: tenho um sentimento de rejeição pelo futebol africano, não estou muito interessado. Também porque sei que nada mudou. O ambiente é sempre o mesmo, com os mesmos defeitos. O futebol para mim sempre foi uma arte que me interessa como tal, independentemente do que um único time representa. Não torço por nenhum time e menos ainda pela Etiópia. Esse país sempre me recompensou mal. Dei prestígio à seleção, fui o único a levantar uma Copa Africana de Nações, nenhum etíope teve mais sucesso do que eu. E como eles me pagaram? Tirando todos os meus bens! Como posso torcer pela Etiópia?”.
Nos últimos anos, Luciano Vassallo viveu com o apoio dos quatro filhos. Tentou reaver seus bens na Etiópia, sobretudo a oficina mecânica confiscada em Addis Abeba, o que não conseguiu. Tinha uma vida modesta, distante dos tempos de fama no futebol. Caminhos diferentes o guiaram, mas o orgulho por tudo o que construiu permanecia intacto. Seria assim até a despedida na última semana, aos 87 anos, com o nome presente em diferentes livros da história do esporte. Por mais que muitos tenham se recusado a aclamar o camisa 10, seu talento permitiu que ele se colocasse entre os maiores do futebol africano em todos os tempos.
* Além dos veículos mencionados ao longo do texto, outra fonte importante para esta matéria foi a reportagem “Citizen of Nowhere”, da revista The Blizzard, que reconstrói a história de Luciano Vassallo, do futebol na Etiópia / Eritreia e das transformações políticas na região.