Trivela
·20 de janeiro de 2022
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Franz Beckenbauer inspira um respeito que transcende no futebol, em especial na Alemanha. E só mesmo a comparação com o Kaiser para dimensionar a importância que Hans-Jürgen Dörner teve do outro lado do muro. A alcunha de “Beckenbauer da Alemanha Oriental” era uma forma de traduzir a grandeza do camisa 3 – por mais que ele não gostasse, desejoso por um reconhecimento próprio. Como Franz, Hans-Jürgen também exibia uma qualidade técnica muito acima da média na posição de líbero e evidente liderança. Dörner foi capitão da seleção alemã-oriental, com 100 partidas disputadas e um ouro olímpico no peito. Também se erigiu como lenda no Dynamo Dresden, pelo qual conquistou cinco títulos nacionais e quase impediu o início do tri da Champions do Beckenbauer de verdade. Dixie era daqueles craques que nem a Guerra Fria impedia a admiração nas duas partes da fronteira. E que se despede como um grande, falecido aos 70 anos, após batalhar nos últimos anos contra uma doença crônica.
Nascido em 25 de janeiro de 1951, em Görlitz (então distrito de Dresden), Dörner cresceu numa família que se unia através do futebol. O garoto atuava no Energie Görlitz, um clube local, e era treinado pelo próprio pai. Outros três irmãos também faziam parte do time. Dixie, como era conhecido na infância, permaneceu por lá dos nove aos 14 anos. Defenderia brevemente o Motor Görlitz e, aos 16 anos, o prodígio ingressou nas categorias de base do Dynamo Dresden.
Como os demais garotos da base do Dynamo, Dörner precisava conciliar os treinos com as atividades como aprendiz de torneiro mecânico. Mas desde já ficava claro como a bola abriria caminhos ao novato e ele brilharia nas conquistas dos juniores do clube. Tanto é que, aos 17 anos, o então atacante passou a fazer parte das seleções menores da Alemanha Oriental. Em 1969, seria um dos destaques no Campeonato Europeu de Juniores, no qual os alemães-orientais foram vice-campeões – perdendo o título para a Bulgária na moedinha, já que a disputa por pênaltis não era regulamentada após empate. De qualquer maneira, ficava claro o futuro do adolescente, que ganhou destaque ao ser adaptado como líbero.
Dörner já tinha ingressado no primeiro time do Dynamo Dresden pouco antes, em 1968. Os aurinegros eram uma força nos primórdios do Campeonato Alemão-Oriental, mas precisaram se reconstruir a partir dos anos 1950. Pouco depois de conquistar a Oberliga em 1952/53, o Dynamo Dresden foi desmantelado para que seu elenco formasse o Dynamo Berlim na capital. Com isso, o time precisou se reconstruir na segundona e chegou a cair inclusive à quarta divisão, até se retornar à elite em 1962. Quando Dixie fez suas primeiras aparições, o Dynamo ainda não era uma equipe estável e tinha acabado de ser rebaixado para a segunda divisão. Seria o novato, então, uma das gratas novidades em busca do acesso.
A estreia de Dörner aconteceu em setembro de 1968, numa vitória por 4 a 0 sobre o Kali Werra Tiefenort. Para tornar tudo mais simbólico, naquele jogo o Dynamo Dresden vestiu pela primeira vez seu tradicional uniforme em amarelo e preto, depois de 15 anos usando branco e grená. Dixie ainda era escalado no ataque naquele momento. Disputou apenas oito partidas na segundona de 1968/69, mas contribuiu com cinco gols e pôde comemorar o acesso. A partir de então, os aurinegros não deixariam mais a primeira divisão da Oberliga e a torcida em Dresden descobriria um novo símbolo da bonança do clube.
Dörner estreou na Oberliga com gol na vitória por 2 a 0 sobre o Hansa Rostock, mas ainda assim o promissor centroavante veria sua carreira mudar naquela mesma temporada. Após a lesão de Wolfgang Haustein, o garoto seria deslocado de vez à posição de líbero. Daria tão certo que nunca mais saiu de lá. Seu estilo era um tanto quanto arriscado, pela forma como se lançava ao ataque, mas a qualidade na condução e a leitura de jogo o favoreciam. Dörner sequer era muito alto, com 1,75 m, mas compensava na defesa por seu senso de posicionamento. E o mais importante eram os muitos gols que marcava, também como um exímio finalizador, que assumia até as cobranças de faltas da equipe. Craque e completo.
Naquela campanha de reestreia na Oberliga, em 1969/70, o Dynamo Dresden já teria um desempenho digno na terceira colocação. Era só uma pequena mostra do sucesso que os aurinegros desfrutariam nos anos 1970, com Dörner servindo logo cedo de protagonista. Em 1970/71, o Dynamo se sagrou campeão. Os aurinegros encerraram um jejum de 18 anos, que compreendia o reerguimento da agremiação. Aquela equipe contava com grandes nomes do futebol nacional, como o atacante Hans-Jürgen Kreische e o zagueiro Klaus Sammer – sim, o pai de Matthias Sammer. Num elenco essencialmente jovem, Dörner já teria sua ponta de destaque aos 20 anos, com três gols em 20 partidas na campanha. O Dynamo voltaria a ser terceiro colocado em 1971/72, antes de levar a taça mais uma vez em 1972/73. Dörner permanecia como uma figura de relevo, num elenco que também ganhou o meio-campista Reinhard Häfner entre seus novos protagonistas.
Um sinal do respeito conquistado pelo Dynamo Dresden nesse período se notava nas copas europeias. Desde o início dos anos 1970 os aurinegros já vinham com campanhas relevantes. Chegaram a eliminar clubes como Partizan Belgrado e Porto na Copa da Uefa, além de dificultarem a vida do Ajax na Champions. A participação mais lembrada, ainda assim, aconteceu na Copa dos Campeões de 1973/74. Foi neste momento que Dixie recebeu o apelido de “Beckenbauer da Alemanha Oriental” pelos jornalistas alemães-ocidentais.
O Dynamo eliminou uma forte equipe da Juventus logo nos 16-avos de final. E, apesar da queda nas oitavas, os alemães-orientais venderam caríssimo a eliminação para o esquadrão do Bayern de Munique, num duelo de amplos contornos geopolíticos. Os bávaros sofreram para vencer por 4 a 3 no Estádio Olímpico, numa noite de três viradas no placar. O troco quase veio no Estádio Rudolf Harbig, onde o Dynamo chegou a virar o placar depois de tomar os dois primeiros gols. No entanto, Gerd Müller buscou o empate por 3 a 3 no fim e abriu caminho ao inédito título do Bayern na Champions. Dörner foi um dos melhores de sua equipe, o que valeu a reputação do outro lado da fronteira.
Nessa mesma época, a carreira de Dörner pela seleção principal já desabrochava. O prodígio das equipes de base tinha feito sua estreia no time de cima em 1969, mas levou um tempo para ganhar sequência. Suas aparições se tornaram mais constantes em 1972 e, embora não tenha participado em campo da classificação à Copa do Mundo de 1974, o líbero ganhou sequência como titular nos amistosos preparatórios às vésperas do Mundial. Em maio daquele ano, o jovem de 23 anos recebeu mais destaque ao liderar a DDR na campanha rumo à decisão do Campeonato Europeu Sub-23. Contudo, por conta de uma icterícia, Dixie virou desfalque de última hora para a Copa do Mundo e viu da cama os companheiros levarem a equipe nacional à histórica campanha rumo à segunda fase.
A afirmação de Dörner como titular absoluto na defesa da Alemanha Oriental ocorreu logo depois do Mundial. O líbero se tornou imprescindível ao time. E, em tempos nos quais sua seleção era uma força olímpica, ele desfrutou de sua maior conquista em 1976. Dixie vestia a camisa 3 da DDR na busca pelo ouro nas Olimpíadas de Montreal. Com a base da seleção principal, algo permitido pelo status “amador” dos futebolistas nos países comunistas, os alemães-orientais passaram por Brasil, França, Espanha e União Soviética até a decisão. E confirmaram o título em cima de uma fortíssima Polônia, com Grzegorz Lato e Kazimierz Deyna do outro lado. A carreira do “Beckenbauer da Alemanha Oriental” chegava ao auge, autor de quatro gols naquela campanha olímpica, terminando como vice-artilheiro da competição.
O próprio Dynamo Dresden atravessava seu período mais forte e emendaria um tricampeonato na Oberliga. Dörner era o pilar na defesa, da equipe que seguia contando com o talento de Kreische e Häfner mais à frente. O líbero contribuiu com oito gols em 25 partidas na reconquista do troféu em 1975/76. Durante a temporada seguinte, com problemas de lesão, Dixie jogou menos e esteve presente em 16 partidas. Ainda assim, acabaria o ano de 1977 eleito como Jogador do Ano na Alemanha Oriental. E seu desempenho no tri em 1977/78 foi impressionante. O defensor marcou 10 gols em 26 partidas e seria o vice-artilheiro dos aurinegros.
Naquele momento, o Dynamo Dresden voltou a fazer barulho além das fronteiras. O time chegou nas quartas de final da Copa da Uefa em 1975/76, além de ter sido quadrifinalista da Champions em duas oportunidades, superado por Zurique e Austria Viena. Capitão do clube, Dixie também passou a usar a braçadeira na seleção. Porém, o cenário na Oberliga mudaria. O Dynamo Berlim passou a dominar o campeonato nacional, com destaques trazidos de outros clubes e frequentes benefícios de arbitragem. O time ligado à Stasi chegaria a emendar um decacampeonato nacional logo depois do tri do Dresden. Restava aos aurinegros um papel secundário dentro desta realidade.
De 1978/79 a 1984/85, o Dynamo Dresden foi cinco vezes vice-campeão da Oberliga. A barreira estava mesmo no beneficiado Dynamo Berlim. Mas não era o amargor da situação que impedia Dörner de ainda ser uma figura cultuada na Alemanha Oriental. O líbero mantinha a titularidade na seleção, enquanto a DDR batia insistentemente na trave durante as Eliminatórias da Copa e da Euro. O jogador também acumulava novas aparições nas copas europeias, mesmo que relegado à Copa da Uefa ou à Recopa. Isso até que as três últimas temporadas de sua carreira oferecessem momentos gigantes.
O Dynamo Dresden ainda não conseguiu tirar a Oberliga do Dynamo Berlim em 1983/84. Em compensação, os aurinegros derrotaram o time da capital na decisão da Copa da Alemanha Oriental. Dörner marcou exatamente o primeiro gol no triunfo por 2 a 1 em Berlim. Como prêmio, o veterano de 33 anos acabou eleito pela segunda vez o Jogador do Ano na Alemanha Oriental. E teria mais em 1984/85. O Dresden conquistou o bicampeonato na Pokal, de novo desbancando o time da Stasi em Berlim, agora por 3 a 2. Pela terceira vez, Dixie recebeu o prêmio de Jogador do Ano ao final de 1985.
O veterano preparava sua despedida naquele momento. O último jogo de Dörner pela seleção aconteceu em maio de 1985, num duelo contra Luxemburgo. Completou exatos 100 compromissos com a equipe nacional, tornando-se o segundo a mais vestir a camisa da DDR, atrás apenas de Joachim Streich. Na temporada seguinte, aos 35 anos, Dixie encerrou sua história pelo Dynamo Dresden. Foram 558 partidas e 101 jogos oficiais pelo único clube de sua carreira. A equipe ficaria na sexta posição na Oberliga de 1985/86, enquanto o Dynamo Berlim faturava o oitavo de seus dez troféus na competição. Porém, os próprios aurinegros já preparavam a geração que desbancaria os berlinenses em 1988/89 e seria bi em 1989/90. Ídolos como Ulf Kirsten e Torsten Gütschow despontavam a partir da base em Dresden. Também já estava presente um herdeiro de Dörner: Matthias Sammer, que na época atuava mais adiantado como meia, antes de também se consagrar como líbero.
Dörner não abandonou o futebol depois de pendurar as chuteiras. Quando ainda atuava, o veterano se formou em educação física e passou a treinar os times de base do Dynamo Dresden. Depois virou o técnico da seleção olímpica da Alemanha Oriental, posto no qual permaneceu até a unificação do país, para ser realocado como comandante das seleções de base da Alemanha. Seria inclusive parte da comissão técnica de Berti Vogts na Euro 1992 e na Copa de 1994. Por clubes, sua trajetória seria mais modesta, apesar de passagens curtas por times como o Werder Bremen e o Al Ahly. A partir de 2013, ele voltaria ao Dynamo Dresden como membro da diretoria. Já em 2019, prova de que seu talento ia muito além da fronteira, seria introduzido no Hall da Fama da federação alemã.
A história de Dörner certamente inspirou vários jovens ao redor da Alemanha. Um conterrâneo ilustre também se tornaria capitão da seleção tempos depois: Michael Ballack, outro filho de Görlitz. E, mesmo sendo herói de uma seleção que deixou de existir, Dixie permaneceu como um dos jogadores mais queridos do país. O Dynamo Dresden, afinal, continua firme nas divisões de acesso da Bundesliga e reconhecerá a história de sua lenda por muito tempo. A grandeza dos aurinegros, e a própria resistência ao poder de Berlim, era representada pela figura do líbero com a braçadeira de capitão. Para eles, o verdadeiro Kaiser.