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·01 de junho de 2024

Num duelo violento e com ‘replay’, a Itália tirou a Espanha da Copa do Mundo de 1934

Imagem do artigo:Num duelo violento e com ‘replay’, a Itália tirou a Espanha da Copa do Mundo de 1934

A Itália brigou muito para conseguir o seu primeiro título mundial de futebol – literalmente, às vezes. A trajetória da Nazionale na Copa de 1934 foi muito dura e apenas um dos cinco jogos que os azzurri fizeram foi tranquilo. Nesse sentido, a Espanha, rival tradicionalmente complicada para os italianos, foi responsável por duas das quatro pedreiras que os mandantes tiveram que encarar na competição, em duelos tidos por muitos como um bom (ou mau) exemplo de arbitragem caseira. Porém, se essa questão até pode ser contestada, o que é consenso é que as partidas foram muito violentas, até mesmo para os frouxos padrões disciplinares da época.

Em 1934, a Itália vivia sob o regime fascista de Benito Mussolini. A realização da Copa do Mundo na Bota, aliás, tinha sido uma obsessão do ditador, que havia colocado a candidatura do país junto à Fifa como forma de comemorar os 10 anos da Marcha sobre Roma, que representou a sua ascensão ao poder. Além disso, ao sediar a competição, podia tentar mostrar aos estrangeiros o quão bom seria o seu governo e utilizar a seleção como um dos instrumentos de propaganda da nefasta ideologia que defendia. A Nazionale, sem dúvidas, entrava no torneio pressionada a vencê-lo.


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Naquela época, a Copa do Mundo era disputada inteiramente em mata-mata. Em 1934, 16 países participaram da competição e poucas seleções favoritas tiveram adversários muito inferiores em seu compromisso de estreia. A Itália foi uma delas e o debute, contra os Estados Unidos, não foi um grande teste – ainda que os norte-americanos tenham ficado entre os quatro melhores da primeira edição do torneio, em 1930. A goleada por 7 a 1 sobre os ianques foi protocolar. Para a Nazionale, o certame começava de verdade a partir das quartas de final, contra a Espanha.

Até aquela Copa do Mundo, Itália e Espanha haviam se enfrentado 10 vezes, com muito equilíbrio no confronto: três vitórias para cada lado e quatro empates, sendo que as seleções se encontraram em três Jogos Olímpicos e os azzurri levaram a melhor em duas dessas ocasiões. Em Florença, teríamos um verdadeiro tira-teima.

A partida aconteceria no último dia de maio, no atual estádio Artemio Franchi – então chamado de Giovanni Berta, em homenagem a um integrante de um esquadrão paramilitar fascista morto por militantes comunistas, em 1921. A Espanha chegava à capital da Toscana após derrotar o Brasil por 3 a 1, em Gênova. No duelo das oitavas de final, o veterano goleiro Ricardo Zamora, o mesmo que dá nome ao troféu de melhor arqueiro de La Liga, defendera um pênalti cobrado por Leônidas da Silva.

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Contra a Espanha, a Itália apostou muito em jogadas aéreas (Guerin Sportivo)

Zamora era o grande destaque do time treinado por Amadeo García de Salazar e, de quebra, um velho conhecido dos italianos. Afinal, tinha atuado em nove dos 10 confrontos entre as seleções até aquele momento. No único em que não entrara em campo, nas quartas da Olimpíada de 1928, a Roja levou 7 a 1, abrindo caminho para os azzurri, mais tarde, ficarem com o bronze. Antes disso, em 1920, nos Jogos da Antuérpia, El Divino foi expulso no final da partida com a Nazionale, por conta de um soco no ítalo-argentino Emilio Badini. Os espanhóis venceram por 2 a 0 e obtiveram a prata na fase seguinte.

O futebol olímpico, aliás, não era um termômetro tão válido para Vittorio Pozzo, técnico da Itália. O rígido comandante preferiu não dar tanto valor ao que ocorrera seis anos antes e optou por deixar de fora do time titular os beques Umberto Caligaris e Virginio Rosetta, remanescentes da conquista do bronze olímpico e pilares de uma Juventus que foi pentacampeã consecutiva da Serie A entre 1931 e 1935. Em contrapartida, o goleiro e capitão Gianpiero Combi, bianconero e veterano dos Jogos de Amsterdã, liderava a defesa montada com Eraldo Monzeglio e Luigi Allemandi.

No meio, se destacava o duro volante Luis Monti, titular da Juventus e campeão mundial pela Argentina em 1930 – na época, a Fifa permitia que atletas representassem mais de um país. Já o ataque era potente e contava com outros oriundi, como os portenhos Raimundo Orsi e Enrique Guaita. Mas os destaques eram mesmo Giovanni Ferrari, Angelo Schiavio e o lendário Giuseppe Meazza.

Todos os jogadores relacionados para o duelo de Florença estavam mais do que calejados em relação aos difusos limites disciplinares do futebol daquela época – até porque era a forma que conheciam o esporte enquanto tal. Cartões amarelos e vermelhos ainda não haviam sido inventados como forma de punição e cabia ao árbitro excluir atletas da partida em caso de conduta expressamente violenta, através apenas de parâmetros subjetivos. Ademais, não existiam substituições e não era raro que os times ficassem em inferioridade numérica por conta de lesões causadas por faltas duras dos adversários. Também era comum que desportistas permanecessem no gramado sem condições ideais, apenas para não deixarem suas equipes em desvantagem maior. Desse modo, não é difícil imaginar que a pancadaria corria solta.

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O goleiro Zamora trabalhou bastante na primeira partida das quartas, e teve um duelo acirrado com o italiano Schiavio (LaPresse)

Na Itália, havia um componente social que contribuía para a violência em campo: o regime fascista preconizava a masculinidade e isso se traduzia no extravasamento da virilidade no futebol, como se os jogadores fossem gladiadores incumbidos de defenderem a nação. Mas é verdade que essa mesma semente também estava plantada em muitos países da Europa e na própria Espanha, que, poucos anos depois da Copa do mundo de 1934, seria arrasada pela guerra civil e veria a instauração de uma ditadura descrita por estudiosos do tema como semifascista.

Portanto, se esperava que Itália e Espanha protagonizassem uma batalha campal, ainda que com o mínimo de lealdade e espírito desportivo compatível com os já citados imprecisos limites disciplinares daqueles tempos. A posteriori, o árbitro belga Louis Baert seria criticado por ter desrespeitado a paridade de armas, assim como outros apitadores daquele Mundial, que supostamente teriam favorecido os mandantes por conta da influência política ou de ameaças da ditadura de Mussolini. Entretanto, não há qualquer prova de que isso tenha ocorrido. Ou melhor, não há indícios de que a arbitragem da Copa de 1934 tenha sido mais caseira do que a média da praticada numa época em que havia pouca transparência, incipiente prestação de contas dos órgãos de controle e nenhuma tecnologia auxiliar.

O início do primeiro tempo foi um show de horrores, com uma atuação muito permissiva de Baert – sobretudo a Monti, que cometia duras faltas. Schiavio começou pedindo pênalti após entrada de José Muguerza, mas o árbitro fez sinal para que ele se levantasse. Em seguida, Lafuente teve gol anulado por falta de um companheiro. Aos 31 minutos, a Espanha abriu o placar depois que Isidro Lángara ajeitou para Luís Regueiro, da entrada da área, finalizar rasteiro e bater Combi.

A Itália apostava na força física e na altura de seus atacantes, de modo que alçava bolas à área quase sempre. Numa delas, aos 44 minutos, conseguiu o – polêmico – empate. Após a sobra de uma cobrança de falta de Mario Pizziolo, Schiavio claramente bloqueou Zamora, deixando-o sem ação. Ferrari aproveitou a sequência do lance e completou para as redes. Baert hesitou, mas confirmou o gol, mesmo diante da veemente reclamação espanhola.

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O duro confronto entre italianos e espanhóis levou muitos jogadores a receberem atendimento médico, como o craque Meazza (Popperfoto/Getty)

No segundo tempo, Zamora ficou em evidência. O arqueiro fez muitas defesas, principalmente quando precisava deixar o gol para fazer cortes e intervenções rasteiras e, assim também levou muitas pancadas – principalmente de Schiavio, que não tirava o pé ou o corpo. A Espanha se retraía bastante, enquanto a Itália tinha de lidar com a inferioridade numérica devido à lesão de Pizziolo, que rompeu os ligamentos do joelho esquerdo. O jogo acabou indo para a prorrogação, mas o placar não mudou. Exaustos, os jogadores se atiraram ao gramado após o apito final. Na coluna que mantinha no jornal La Stampa, Pozzo escreveu que aquela tinha sido “a maior batalha já vista no âmbito internacional do futebol”.

Na época, a decisão por pênaltis não era o modelo previsto para o desempate de confrontos oficiais. Assim, Itália e Espanha teriam que realizar outra partida – o primeiro “replay” da história das Copas do Mundo. A repetição ocorreria no mesmo palco do empate por 1 a 1, e no dia seguinte. Como o duelo de 31 de maio havia sido excruciante, os azzurri efetuaram quatro trocas e a Fúria, sete.

Na Nazionale, Attilio Ferraris substituiu o lesionado Pizziolo e Schiavio deu lugar ao jovem Felice Borel. Atilio Demaría ganhou o lugar de Ferrari e a Itália foi escala com quatro oriundi de naturalidade argentina. Zamora foi um dos que ficaram de fora na Roja, mas as versões para sua exclusão variaram ao longo da história: o goleiro decidira não atuar em represália pela má arbitragem de Baert ou estaria indisponível por conta das inúmeras pancadas que sofreu. Apesar de o real motivo do desfalque ter sido alvo de discussões acaloradas por décadas, o fato é que o goleiro não levou o segredo para o túmulo: em entrevistas, reafirmou a versão das lesões sofridas no primeiro jogo das quartas de final.

Em 1º de junho, o estádio Giovanni Berta ficou lotado – cerca de 43 mil torcedores estiveram presentes, contra os estimados 35 mil do dia anterior. A arbitragem ficou a cargo do suíço René Mercet, que apitou pela última vez justamente em Florença: atuou tão mal que foi banido pela Fifa e acabou obrigado a se aposentar aos 35 anos.

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Na repetição, Meazza cabeceou para as redes e colocou a Itália nas semifinais da Copa do Mundo de 1934 (LaPresse)

A Itália marcou o gol decisivo aos 11 minutos. A Espanha estava com um a menos porque Crisant Bosch levou uma entrada e precisou ficar um bom tempo em atendimento médico. Nesse ínterim, Borel ganhou um escanteio e Orsi cruzou na cabeça de Meazza, que mandou para a rede. Os atacantes italianos estavam inspirados, forçando o goleiro Juan José Nogués a trabalhar, e o meio-campo atuava bem – Monti continua batendo forte, enquanto Ferraris e Luigi Bertolini roubavam bolas e convenciam o técnico Pozzo a transformá-los em titulares, o que ocorreria no restante da competição.

No segundo tempo, os mandantes cansaram e sofreram com os espanhóis. Mercet continuava a ser permissivo com as faltas, e tanto Monti quanto Jacinto Quincoces, capitão da Fúria, tiveram liberdade para cometer faltas duras. A Espanha chegou a ter dois gols anulados por impedimento e reclamou muito de um pênalti de Combi sobre Chacho. Nada foi marcado e, ao apito final, Pozzo acariciou seus amuletos: um pedaço de cristal da taça (quebrada) da Copa Internacional, vencida em 1930, e uma passagem para a Inglaterra, que simbolizava seu amor pelo futebol.

Com polêmicas e violência, a Itália se classificava para as semifinais da Copa de 1934, que aconteceriam apenas dois dias depois, em 3 de junho. Cansada, a Nazionale já sabia que teria o pior adversário possível pela frente: a Áustria do craque Matthias Sindelar e do técnico Hugo Meisl, conhecida como Wunderteam por ser a sensação futebolística do momento. Os austríacos vinham de vitórias apertadas sobre França e Hungria, mas gozariam de um dia a mais de descanso. E, assim, seriam mais uma pedra no caminho dos azzurri rumo a seu primeiro título mundial.

Itália 1-1 Espanha

Itália: Combi; Monzeglio, Allemandi; Pizziolo, Monti, Castellazzi; Meazza, Ferrari; Guaita, Schiavio, Orsi. Técnico: Vittorio Pozzo. Espanha: Zamora; Ciriaco, Quincoces; Cilaurren, Muguerza, Fede; Lafuente, Iraragorri, Lángara, Regueiro, Gorostiza. Técnico: Amadeo García de Salazar. Gols: Ferrari (44′); Regueiro (30′) Árbitro: Louis Baert (Bélgica) Local e data: estádio Giovanni Berta, Florença (Itália), em 31 de maio de 1934

Itália 1-0 Espanha (repetição)

Itália: Combi; Monzeglio, Allemandi; Ferraris, Monti, Bertolini; Meazza, Demaría; Guaita, Borel, Orsi. Técnico: Vittorio Pozzo. Espanha: Nogués; Zabalo, Quincoces; Cilaurren, Muguerza, Lecue; Ventolrà, Regueiro, Campanal, Chacho, Bosch. Técnico: Amadeo García de Salazar. Gol: Meazza (11′) Árbitro: René Mercet (Suíça) Local e data: estádio Giovanni Berta, Florença (Itália), em 1º de junho de 1934

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