Calciopédia
·23 de julho de 2020
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Um jogador de futebol profissional precisa lidar com expectativas elevadas e muita pressão psicológica ao longo de sua carreira – e, se for considerado como herdeiro de um craque, então, as cobranças são ainda maiores. No entanto, muitos atletas não têm a serenidade necessária para lidar com tantas exigências, sobretudo se o seu rendimento não corresponde ao projetado inicialmente. Nos anos 1980, o defensor Michel van de Korput sofreu com essa situação no Torino, onde aportou como “novo” Ruud Krol.
Os holandeses Van de Korput e Krol chegaram juntos ao futebol italiano, em 1980, na primeira leva de estrangeiros permitidos pela federação após um embargo de 14 anos à contratação de atletas não-italianos. Os dois, porém, viviam fases díspares em suas carreiras. O jogador contratado pelo Torino junto ao Feyenoord era uma promessa de quase 24 anos, que disputou a Eurocopa daquele ano como titular da Holanda. Ao lado de Ruud, capitão da Oranje.
O craque adquirido pelo Napoli já tinha 31 anos e um currículo extenso. Somava dois vice-campeonatos mundiais e mais duas participações em Euros pela seleção, além de um tricampeonato continental e outros 13 troféus pelo Ajax, onde se formou e aprendeu com Rinus Michels. Apesar de ostentar uma boa forma física, vinha de uma passagem pela NASL, a liga norte-americana da época.
Em comum, os defensores tinham a versatilidade. Krol era a personificação do totaalvoetbal de Michels: no papel, atuava como líbero e lateral-esquerdo, mas podia exercer qualquer função na defesa ou como meio-campista defensivo. Van de Korput era defensor central, mas no Feyenoord foi muito utilizado também como líbero e lateral-direito, tendo sido improvisado como volante, ala pela direita e lateral no flanco canhoto.
Foi na condição de zagueiro central que Van de Korput teve maior destaque no clube de Roterdã, pelo qual foi duas vezes vice-campeão da Eredivisie no início da carreira. O defensor nascido em Wagenberg, em 1956, foi agregado ao time principal do Feyenoord em 1974-75, mas só ganhou a titularidade em 1976-77. Em 1979-80, sua última temporada na primeira passagem pelo estádio De Kuip, Van de Korput obteve os maiores sucessos: ganhou as primeiras chances na Laranja Mecânica e o título da Copa da Holanda.
Van de Korput foi disputar a Euro 1980 em solo italiano sabendo que moraria no país após a competição. Sua transferência para o Torino foi concretizada em pleno aeroporto de Amsterdã, antes da viagem à Áustria, onde a Holanda desenvolveria o fim de sua preparação. O empresário do zagueiro – Cor Coster, sogro e também agente de Johan Cruyff – apareceu antes do embarque para que o contrato fosse assinado por Michel.
Embora as portas da Itália estivessem abertas para os estrangeiros pela primeira vez em mais de uma década, o holandês não teve recepção muito hospitaleira. De cara, o jornal L’Unità deixou sua linha editorial normalmente austera de lado para fazer uma piadinha com o sobrenome do jogador, que definiu como “similar ao de marca de laxante”. Rapidamente, então, as torcidas do país passaram a se referir a Michel como Dolce Euchessina, digestivo em voga na época. Para piorar a situação, a sonoridade de “Korput” era um convite aos trocadilhos, visto que se aproxima à de “cornuto” – corno ou chifrudo, em italiano.
Estar nos holofotes – e por razões nada lisonjeiras – era novidade para Van de Korput. Ser um jogador de futebol na Holanda dos anos 1970 não significava ser um popstar, a menos que o atleta participasse de um grupo seleto, encabeçado por craques do nível de Cruyff. Michel ocupava outra prateleira: era um simples metalúrgico, com diploma de técnico mecânico e proletário no Feyenoord, como seria no Torino de Ercole Rabitti.
Por conta da contratação de Van de Korput, o Toro liberou Salvatore Vullo para o Bologna e o promissor líbero Andrea Mandorlini para a Atalanta. O holandês começou bem, jogando todos os minutos em quatro partidas da Coppa Italia em que o time grená ficou invicto. Mas aí veio o jogo de volta da primeira fase da Copa Uefa, contra o Molenbeek, da Bélgica. Aos 80 minutos, Michel errou ao cortar um cruzamento e marcou um gol contra, forçando o Torino a buscar a vaga na prorrogação. O time italiano só caiu nas oitavas de final, mas o acontecimento contribuiu para que o defensor continuasse se sentindo desconfortável no clube.
O incômodo prosseguiu ao longo da temporada. Van de Korput não convenceu como líbero, já que não tinha técnica suficiente para construir jogadas. Por seu biotipo alto e magro, acabou sendo utilizado em outras funções, como zagueiro e volante, mas falhava em demasia na marcação. Não era incomum que a torcida grená pegasse no pé do holandês. Certa vez, o beque de expressão sisuda não aguentou as vaias e caiu no choro ainda em campo. Precisou ser consolado pelo goleiro – e igualmente bigodudo – Giuliano Terraneo.
Apesar de ter sido titular na maior parte da temporada, Van de Korput acabou nem sendo relacionado para as finais da Coppa Italia, contra a Roma, porque o técnico interino Romano Cazzaniga achou mais prudente preservá-lo. Em 1981-82, o holandês finalmente se firmou. Transformado em lateral-direito pelo técnico Massimo Giacomini, ficou menos exposto a erros capitais e mostrou ao presidente Orfeo Pianelli que o seu investimento não havia sido um tiro pela culatra. Michel também voltou a ser convocado para a seleção de seu país, da qual havia ficado longe por conta das incertezas de toda a campanha anterior.
Com Giacomini, o Torino repetiu o desempenho que obtivera com Rabitti e Cazzaniga: nona posição na Serie A e vice-campeão da Coppa Italia. Após três vices consecutivos – os grenás também amargaram o segundo posto antes de Van de Korput chegar –, o Toro foi atrás do técnico Eugenio Bersellini, vencedor do torneio com a Inter, mas não chegou à decisão. O time foi semifinalista da copa e oitavo no Italiano, mas, apesar do rendimento similar, a temporada foi marcante por causa do Dérbi de Turim de março de 1983, na 25ª rodada do campeonato. E, contra a Juventus, o holandês foi protagonista para o bem e para o mal.
A Juventus perseguia a Roma, líder do campeonato com três pontos de vantagem, e parecia ter o favoritismo a seu lado. A equipe de Giovanni Trapattoni tinha no seu onze inicial seis campeões mundiais como titulares, além de Michel Platini e Zbigniew Boniek. O Torino contava com dois atletas vencedores da Copa de 1982, mas que não jogaram na campanha (Franco Selvaggi e Giuseppe Dossena), além do contestado Van de Korput. Em fim de contrato, o holandês faria seu último clássico pelos grenás e roubaria a cena de um ícone juventino que também se despedia do dérbi: Roberto Bettega.
Logo aos 15 minutos, Van de Korput foi xingado pela Curva Maratona, onde se acomodam os torcedores do Torino. Cercado por juventinos perto da linha de fundo, na grande área, o holandês tentou recuar a bola para Terraneo, mas deu um presentaço para Paolo Rossi abrir o placar. Aos 65, a Velha Senhora ampliou sobre os donos da casa, com Platini.
Mas o Toro mudou a situação em apenas cinco minutos, na virada mais espetacular dos grenás em toda a história do clássico. Após Dossena e Alessandro Bonesso marcarem, aos 71 e aos 72, Van de Korput surgiu na lateral-direita para se redimir do erro no primeiro tempo com um cruzamento na medida para Fortunato Torrisi, que fuzilou Dino Zoff e anotou o 3 a 2 que tirou a Juve da corrida pelo título. Finalmente, o holandês teria um episódio decisivo e feliz para que os torcedores do clube pudessem lembrar dele de maneira positiva.
Duas rodadas depois do triunfo no clássico, Van de Korput marcou seu único gol pelo Torino, com uma bomba contra o Verona – não sem antes perder para Domenico Volpati em jogada aérea, no tento dos butei no empate por 1 a 1. Em junho de 1983, numa derrota contra o próprio Hellas, na volta das semifinais da Coppa Italia, o holandês fez sua última partida com a camisa grená. Seu desempenho mediano e honesto permitiu que ele se mantivesse como titular até o final de seu contrato de três anos, mas o Toro não ofereceria obstáculos para que deixasse o clube, uma vez que decidiu apostar no jovem Giancarlo Corradini.
A saudade da companheira Jopie, que continuava morando na Holanda, era um fator que incomodava Van de Korput. Assim, o defensor optou por recusar propostas e retornar ao Feyenoord. O zagueiro foi titularíssimo do clube em sua segunda passagem por Roterdã, quando se sagrou campeão nacional e da Copa da Holanda, em 1984. Michel ainda recebeu convocações para a seleção, mas como a Oranje não se classificou para Euros e Mundiais entre 1981 e 1986, não participou de nenhuma outra competição oficial além da Eurocopa de 1980. Teve azar, de certa forma: a entressafra que a seleção vivia no começo daquela década e a concorrência com Ronald Koeman e Frank Rijkaard, mais talentosos, encurtaram sua vida na Laranja.
Em 1985, o defensor teve mais uma experiência fora de seu país ao acertar com o Köln, que fora terceiro colocado da Bundesliga alemã. Michel teve bons momentos pelos bodes e contribuiu para que a equipe alcançasse a final da Copa Uefa, contra o Real Madrid. Contudo, a ruptura do tendão de Aquiles não só o impediu de atuar nos jogos da decisão perdida para os blancos como abreviou sua carreira. Van de Korput nunca mais entrou em campo pelo time da Alemanha e ainda tentou atuar pelo Germinal Ekeren e o Royal Cappellen, da Bélgica, sem sucesso. Em 1990, perto de completar 34 anos, se aposentou.
Fora do futebol, Van de Korput retornou a Wagenberg para levar uma vida sem badalação, ao lado de sua esposa, seus dois filhos e seus netos. Em sua cidade natal, trabalhou como entregador de jornais, zelador numa escola para alunos portadores de deficiência, vendedor em uma loja de tecidos e, por fim, algo relacionado a seu diploma de técnico mecânico: operador de máquinas no setor de rejeitos de uma fábrica. Não deixa de ser irônico que Michel, tão rejeitado e xingado ao longo de sua passagem pela Itália, acabasse como especialista em descartar resíduos. De alguma forma, o jogo virou.
Colaborou Felipe dos Santos Souza, do Espreme a Laranja.
Michaël “Michel” Antonius Bernardus van de Korput Nascimento: 18 de setembro de 1956, em Wagenberg, Países Baixos Posição: zagueiro e lateral-direito Clubes: Feyenoord (1974-80 e 1983-85), Torino (1980-83), Köln (1985-87), Germinal Ekeren (1987-89) e Royal Cappellen (1989-90) Títulos: Eredivisie (1984) e Copa da Holanda (1980 e 1984) Seleção holandesa: 23 jogos
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