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·23 de junho de 2025

História de um grande amor: a estreita relação entre os Agnelli e os governos norte-americanos

Imagem do artigo:História de um grande amor: a estreita relação entre os Agnelli e os governos norte-americanos

Horas antes da estreia da Juventus na Copa do Mundo de Clubes de 2025, na quarta, 18 de junho, causou burburinho a visita de Gianni Infantino, presidente da Fifa, e de uma delegação formada por atletas e executivos da agremiação bianconera a Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. Rapidamente, emergiram polêmicas, memes e reflexões mais sérias. Para quem acompanha a política e o esporte da Itália mais de perto, a presença sorridente de John Elkann, diretor-executivo do grupo Exor, controlador da equipe de Turim, chamou atenção de forma mais peculiar. Afinal, representou mais um passo do empresário para se aproximar do dia a dia do clube, acéfalo desde a exoneração de seu primo Andrea Agnelli, e rememorou a proximidade entre sua família e políticos norte-americanos.

A informação citada acima evidencia que o encontro entre Trump, Infantino e a cúpula da Juventus passa longe de ser um “rolê aleatório”. De fato não é, embora esta possibilidade tenha ficado pairando no ar por conta do protagonismo de personagens que, aparentemente, não têm quaisquer relações entre si e que parecem estar distantes de seu habitat natural – o que ficou extrapolado pelo visível desconforto dos integrantes da delegação da Velha Senhora no Salão Oval, com a exceção de Elkann, e por sua presença em segundo plano enquanto o presidente norte-americano respondia a perguntas de repórteres de todo o mundo sobre o conflito entre Israel e Irã. Na verdade, é preciso contextualizar o que aconteceu ali porque existem muitos elementos de pano de fundo que levaram a esta visita e alguns outros que foram trazidos à tona durante a audiência com cara de saia-justa.


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Os jogadores da Juventus, em especial os norte-americanos Weah e McKennie, passaram por situação constrangedora no Salão Oval (Getty)

Festa estranha com gente esquisita

Comecemos de trás para frente. Como é de conhecimento público, a primeira edição da Copa do Mundo de Clubes acontece nos Estados Unidos. Washington, capital estadunidense, foi escolhida como sede de três jogos e, a cerca de 6 km da Casa Branca, a Juventus estrearia naquela noite com um sonoro 5 a 0 sobre o Al Ain, dos Emirados Árabes Unidos, no Audi Field. À tarde, a direção bianconera havia viabilizado, em parceria com a Fifa, a visita a Trump.

Infantino e Elkann estavam à frente de um grupo que incluía Damien Comolli, empossado há duas semanas como diretor-geral da Juventus; Igor Tudor, técnico da equipe; Giorgio Chiellini, atual chefe de relações internacionais da agremiação, além de ex-jogador bianconero e do Los Angeles FC, da Major League Soccer; e dos atletas Dusan Vlahovic, Teun Koopmeiners, Manuel Locatelli, Federico Gatt, Timothy Weah e Weston McKennie, sendo que os dois últimos são norte-americanos e representam a seleção dos Estados Unidos.

Todos – menos Infantino e Elkann – ficaram com cara de tacho e alguns cruzaram os braços quando Trump falava de política internacional, contestava a possibilidade de o Irã produzir armas nucleares e, tomando o lado de Israel, afirmava que o regime iraniano estava perto do fim. Antes, o presidente norte-americano foi informado de que havia dois compatriotas no elenco da Juventus, mas não sabia quem eles eram. O político os cumprimentou, mas não recebeu apertos de mão muito calorosos.

Quando atuava no Schalke 04, McKennie, que é um apoiador do movimento Black Lives Matter, criticou o primeiro mandato do chefe de estado: durante os protestos pelo assassinato de George Floyd, disse que ele “poderia ser chamado de racista” e que “não era a pessoa certa” para o cargo. Já Weah, filho de George Weah, ex-jogador do Milan e ex-presidente da Libéria, foi vítima de racismo em redes sociais em junho de 2024, depois de uma derrota da seleção norte-americana para o Panamá, na qual foi expulso. Em sua atuação política, Trump tem incentivado recorrentemente discursos preconceituosos e, nesse sentido, se valeu de mentiras em sua mais recente campanha eleitoral, ao afirmar falsamente que imigrantes ilegais haitianos estariam comendo animais de estimação. Mais recentemente, emitiu um decreto que proíbe a entrada de pessoas de 12 países nos Estados Unidos e pode adicionar mais 36 à lista, incluindo a Libéria.

Para completar a saia-justa, Trump começou a criticar Joe Biden, seu antecessor, a quem acusou de incentivar que “homens praticassem esportes femininos”. O presidente, que em fevereiro de 2025 assinou uma ordem executiva proibindo participantes transgênero de disputar esportes femininos, tentou envolver a delegação da Juventus em sua trama e, provavelmente em busca de apoio, pediu as opiniões dos convidados sobre o tema. “Uma mulher poderia entrar no time de vocês, rapazes?”, perguntou. Os jogadores se entreolharam, com sorrisos encabulados, enquanto Comolli desconversou, exaltando o time feminino da Velha Senhora, que ganhou a Serie A mais recente e tem seis scudetti. “Ele está sendo muito diplomático”, rebateu o político.

A diplomacia da Fifa e da Juventus, aliás, atuou bastante em outro momento do encontro, no qual Trump foi presenteado com camisas com seu nome nas costas – a peça juventina, aliás, repleta de autógrafos dos atletas. Mas o que chamou atenção mesmo nas malhas era o número 47. O magnata é o 47º presidente da história dos Estados Unidos (além do 45º), mas os algarismos, utilizados à exaustão nos comícios de sua campanha eleitoral, aludem a outra coisa, com significado simbólico para os trumpistas. Eles remetem à Agenda 47, seu plano político publicado em formato de manifesto.

Assim, as duas instituições esportivas, que estão à frente de projetos de inclusão social através do desporto, se associaram voluntariamente, por obra de seus máximos dirigentes, a um documento que foi criticado pela abordagem negacionista em temas como as mudanças climáticas e a saúde pública, além de ser frequentemente descrito como ilegal, fascista ou autoritário. Por tudo o que aconteceu, a visita da Juventus não pegou bem nas redes sociais e nem mesmo na imprensa italiana – ao menos na parte que não é de propriedade da família Agnelli. Termos como “gol contra”, “surreal” e “constrangimento” foram utilizados para descrever a iniciativa de Elkann.

Após o jogo, a revista The Athletic, pertencente ao jornal New York Times, tentou falar com os atletas e o técnico da Juventus sobre o ocorrido, mas pouco conseguiu – a Fifa acabou vetando mais perguntas sobre a visita na coletiva. Weah, porém, deixou o desconforto evidente em sua curta declaração sobre a visita à Casa Branca. “Foi tudo uma surpresa para mim, honestamente. Eles nos disseram que tínhamos que ir e eu não tive escolha a não ser ir. Fui pego de surpresa, na verdade. Foi um pouco estranho. Eu não sou um cara que liga muito para política, e quando ele começou a falar sobre a o Irã e tudo o mais eu pensei, tipo, ‘eu só quero jogar futebol, cara’”.

Em uma tacada só, o sorridente Elkann fez acenos a Infantino e Trump (Ansa)

Elkann e o reposicionamento dos Agnelli, “os Kennedy da Itália”

Como a Juventus iria até Washington com o intuito de estrear pela Copa do Mundo de Clubes, dar uma passadinha na sede do poder executivo norte-americano, à tarde, antes do jogo com o Al Ain, não seria um grande esforço. Para Elkann, ao contrário, agendar uma visita de cortesia a Trump durante o torneio consistia em um compromisso quase obrigatório, principalmente considerando que ele já havia se encontrado com o presidente em janeiro e março de 2025, nos primeiros 100 dias de seu segundo mandato. E ir ao beija-mão de junho acompanhado de Infantino era ainda mais importante – mesmo que isso pudesse expor seus empregados a uma situação constrangedora.

Infantino é um dos principais aliados de Trump atualmente – afinal, a Fifa é uma instituição transnacional que exerce influência em nível global. E, é claro, não é por acaso que os Estados Unidos receberam a Copa do Mundo de Clubes, em 2025, e serão a principal sede da Copa do Mundo de seleções, em 2026. A aproximação de Elkann com o presidente da entidade máxima do futebol global, aliás, é uma iniciativa que percorre dois caminhos paralelos.

Por um lado, o empresário trabalha pela recostura de laços entre a Juventus e o mandachuva da modalidade em nível planetário, como parte de um esforço mais amplo de reposicionamento dos Agnelli após anos turbulentos em diversos âmbitos, inclusive o esportivo. Por outro, busca estabelecer uma importante parceria em sua interlocução com o republicano e ter maior presença nos EUA, seguindo os passos do avô, Gianni Agnelli. Porém, com um perfil bem diferente: enquanto l’Avvocato, o patriarca, se distinguiu pelo carisma que forjou um personagem de difícil comparação na Itália do século XX, o herdeiro é conhecido pela personalidade tímida e reservada.

Avaliando o cenário mais recente, é importante entender que Elkann deseja ter um canal direto de diálogo com Trump para que seus negócios possam obter vantagens comerciais durante a guerra tarifária deflagrada pelo presidente estadunidense, que afeta diretamente alguns dos setores mais representativos de sua atuação empresarial – o automobilístico e o de maquinário industrial e agrícola, que fizeram a fortuna da sua família. Oficialmente, os encontros anteriores entre o empresário e o chefe de estado foram utilizados para a discussão sobre impostos, investimentos e empregos relacionados aos ramos citados.

Oriundos do interior do Piemonte, no norte da Itália, os Agnelli cresceram a partir do século XIX como proprietários de terra e comerciantes, especialmente de seda e de terrenos, mas foi a partir da fundação da Fiat, por Giovanni Agnelli e oito sócios, em 1899, que a abastada linhagem de pequena influência regional, navegando nas águas da Segunda Revolução Industrial, passou a forjar um império.

O histórico dos Agnelli foi destacado por Trump na visita da delegação da Juventus à Casa Branca. “John Elkann é um empreendedor fantástico, um jovem rapaz, símbolo de uma das empresas mais antigas de todos os tempos [a Fiat]. Ele faz um trabalho fantástico na indústria automotiva e vem de uma família de vencedores”, disse o norte-americano.

De fato, com direito a trocadilho, o carro-chefe da família Agnelli é o setor automotivo, desde a fundação da Fiat, ainda que o clã diversifique seus investimentos e se dedique também a esportes (Juventus e Scuderia Ferrari), mídia e comunicação (The Economist e grupo editorial GEDI, que controla os jornais La Repubblica e La Stampa e a Radio Deejay, entre outras empresas), moda e estilo (Christian Louboutin), máquinas industriais e agrícolas (grupo CNH, que inclui Case IH e New Holland) ou biotecnologia e saúde (Instituto Mériuex). Há também várias outras iniciativas nessas áreas e em finanças e gestão de ativos, ou mesmo participações minoritárias e relevantes em outros conglomerados, como o Philips, do ramo de eletrônicos – ademais, um parceiro histórico do PSV Eindhoven, que eliminou a Velha Senhora da Champions League, em 2025.

Mas voltemos aos volantes e motores. A tradicional montadora italiana cresceu com o passar dos anos, durante a gestão de Gianni Agnelli, iniciada a partir da morte do avô Giovanni, em 1945, e adquiriu diversas outras marcas. Desde 2021, com a fusão entre a Fiat-Chrysler e o grupo PSA, o herdeiro Elkann se tornou o principal representante de uma constelação: ele é o presidente da Stellantis, que controla Fiat, Jeep, Ram, Peugeot, Citroën, Maserati, Alfa Romeo, Chrysler, Dodge, Opel, Lancia, Vauxhall, Abarth e DS. E vale destacar que a Ferrari, da divisão de veículos de luxo, e a Iveco, de caminhões, ônibus e automóveis destinados à segurança pública, nem fazem parte da holding.

Quatro das casas sob o guarda-chuva Stellantis são estadunidenses (Chrysler, Dodge, Jeep e Ram) e as três primeiras citadas são firmas históricas no país, o que ajuda a justificar as conversas entre o herdeiro do império europeu e o representante do império norte-americano. A holding emprega cerca de 75 mil pessoas nos Estados Unidos, onde faturou 63,5 bilhões de euros e comercializou 1,4 milhão de automóveis só em 2024.

Gianni Agnelli assumiu a Fiat na década de 1940 e ampliou os limites do império de sua família (Getty)

Como empresário que gera muitos empregos e renda nos EUA, Elkann também pode barganhar a ajuda de Trump, um patrocinador do setor petroleiro, para brecar a transição para os veículos elétricos, principalmente na União Europeia – que pode ser obrigada a rever políticas em caso de medidas de cunho tarifário e fiscal tomadas do outro lado do Atlântico. O italiano tem manifestado preocupações sobre a forma como este processo está sendo implementado na Europa e vem alegando que a passagem de bastão deve ser gradual, para que não prejudique a indústria automobilística. Com Joe Biden, que governou os Estados Unidos de 2021 até janeiro de 2025, não havia grande diálogo. Aliás, o democrata chegou a apoiar uma greve de sindicatos dos funcionários de montadoras, como as comandadas pela Stellantis, em 2023.

Apesar de tentar se aproximar de Trump, uma figura divisiva, por seu lugar como líder da extrema direita global, Elkann não parece atuar de forma ideológica, mas sim apenas advogar pelo (seu) dinheiro, de maneira pragmática, tal qual l’Avvocato Gianni Agnelli, seu avô, e Giovanni Agnelli, seu trisavô – e sem escrúpulos, poderiam dizer alguns. O herdeiro do clã, por exemplo, não tem uma boa relação com Giorgia Meloni, premiê ultradireitista da Itália, e tenta transitar com desenvoltura pelos mais variados círculos de poder, de Wall Street e Washington a Bruxelas e Roma, e buscar boas relações com governos de diversas matizes. Em março de 2010, por exemplo, foi visto bastante sorridente na inauguração de um complexo da CNH em Sorocaba, no interior de São Paulo, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da então ministra Dilma Rousseff, que são filiados ao PT, e dos ex-governadores de São Paulo José Serra e Geraldo Alckmin, do PSDB.

Como falamos anteriormente, para entender com clareza as movimentações de Elkann em um tabuleiro complexo e cheio de peças, é preciso amarrar os muitos elementos que, há décadas, tecem a intrincada teia que os conecta ao histórico da família Agnelli, considerando o seu auge e os recentes eventos turbulentos que tiveram integrantes do clã como protagonistas, do futebol às revistas de fofoca, com constantes intervenções em nível judicial – o que exigiu atenção especial do herdeiro. Algumas robustas digressões se fazem necessárias, portanto. Então senta, que lá vem (mais) história.

Desde o falecimento do patriarca Gianni Agnelli, em 2003, a família perdeu seu líder e referencial, o que levou a um período de interregno e algumas complicações – sobretudo depois que Umberto Agnelli, o número 2, morreu, em 2004. Neto favorito de Gianni e filho da primogênita Margherita, John Elkann foi escolhido como seu sucessor. Entretanto, não era a primeira opção da fila para a administração do grupo.

Elkann ganhou espaço no império familiar após as trágicas e precoces mortes de Giovanni Alberto, sobrinho de Gianni e filho de Umberto, em 1997, e de Edoardo, segundogênito do patriarca, em 2000 – ainda que Eddy, que chegou a ser cartola da Juve, já tivesse sido desenganado para os negócios por ter enveredado por um caminho esotérico e anticapitalista, o que fez com que se afastasse do clã. Aos 21 anos, tão jovem quanto o avô e o trisavô em seus tempos, John entrou nos conselhos de administração do grupo Fiat e da empresa Giovanni Agnelli, que gere todos os investimentos da família com quotas bem definidas para cada herdeiro – guarde essa informação. Porém, ainda ia completar 27 anos quando l’Avvocato faleceu.

Foi necessário um bom tempo de aprendizado e amadurecimento até que o jovem se tornasse um empresário fiável perante os olhos de seus pares, apesar de muitos anos de tirocínio e de aprendizado pelas fábricas da Fiat ao redor do mundo. Inclusive no Brasil, onde viveu dos 7 aos 12 anos, por conta do segundo casamento de sua mãe, Margherita Agnelli, com Serge De Pahlen – por conta disso, Elkann fala um bom português, com sotaque carioca. Só em 2008 ele se tornou presidente do IFIL – Instituto Financeiro e Laneiro Italiano, que mais tarde seria rebatizado como Exor.

Enquanto Elkann se dedicaria aos negócios mais rentáveis do império, o ramo futebolístico, ao menos durante seus anos de maturação corporativa, teria administração delegada a terceiros. A Juventus, vale destaca, é uma das mais antigas propriedades da família Agnelli, já que é comandada pelo clã desde 1923. Em meados da década de 2000, entretanto, era gerida por executivos experientes que se revelaram operadores do Calciopoli, o esquema de manipulação de resultados que levou à perda de dois scudetti e ao rebaixamento da equipe à Serie B, em 2006.

Em 2010, Andrea Agnelli, que vinha se aperfeiçoando em administração e gestão esportiva, deixou cargos na diretoria bianconera e ascendeu à presidência ao ser nomeado por Elkann, seu primo de segundo grau, quatro meses mais novo. Andrea tinha 34 anos na época e se tornou o quarto membro da família a ocupar o cargo de máximo dirigente da gigante de Turim, após Edoardo Agnelli (seu avô), Gianni (tio) e Umberto (pai).

Assessorado por Giuseppe Marotta, Andrea Agnelli foi o responsável por conduzir uma importantíssima transição na Juventus. Em poucos anos, a Velha Senhora deixou para trás o período mais nebuloso de sua história e estabeleceu o seu maior domínio em solo nacional: foram nove scudetti seguidos, além de cinco títulos da Coppa Italia e cinco da Supercopa Italiana com o time masculino, e mais 10 troféus com o feminino. Porém, o cartola se embeveceu em soberba e, quando os resultados em campo começaram a ficar escassos, passou a meter os pés pelas mãos, jogando pela janela a credibilidade construída tanto no futebol quanto no mundo empresarial europeu e fazendo a agremiação, que é uma empresa cotada na bolsa de valores, perder capital – num dos pontos mais altos da crise, em 2023, as ações da Juve chegaram a despencar mais de 70%.

Gianni, avô de John, e Umberto, pai de Andrea, dirigiram a Juventus e a Fiat em tempos dourados (Getty)

A perda de prestígio de Andrea Agnelli está associada a uma série de escândalos financeiros, decisões estratégicas mal recebidas e rupturas políticas no esporte. As primeiras rusgas sérias ocorreram em 2021, quando o cartola foi um dos principais arquitetos da Superliga, projeto lançado por grandes clubes para criar uma liga fechada de elite, à margem dos sistemas Uefa e Fifa. O plano fracassou em menos de 48 horas, após ter sido amplamente rejeitado por torcedores, atletas, políticos e dirigentes. Quase todos os clubes signatários deixaram a iniciativa, menos Real Madrid, Barcelona e… Juventus. Só em 2023, com o fim forçado da gestão de Andrea, sobre o qual falaremos já já, os bianconeri – com o aval de Elkann – optaram por desistir de organizar o torneio.

Ao forçar a barra com a Superliga e argumentar em favor do projeto, Agnelli menosprezou o mérito esportivo de equipes como a Atalanta, que vem fazendo um belo trabalho ao longo das décadas de 2010 e 2020, e, ao alimentar tal sorte de tensões, angariou antipatia generalizada. Pior, também ficou politicamente isolado: ele rompeu relações com Aleksander Ceferin, presidente da Uefa, que era seu amigo pessoal. Ao se sentir traído, o executivo esloveno chamou o juventino de “cobra”. O episódio fez com que o cartola da Juve perdesse respeito também entre outros líderes do futebol europeu e mundial, como Infantino.

O máximo dirigente da Fifa classificou o projeto proposto pelas potências europeias como “inaceitável” e “inimaginável”. O helvético de origem italiana também manifestou clara insatisfação pelo comportamento de clubes como a Juventus, que, sob a liderança de Agnelli, tinham postura ambivalente quanto à Superliga e a continuidade no sistema atualmente vigente no futebol. “Ou estão dentro ou estão fora… não podem estar meio dentro e meio fora”, disse o presidente, defendendo que os times envolvidos deveriam optar definitivamente por permanecer no ordenamento atual da modalidade ou assumir as consequências por romper com ele.

As relações entre a Velha Senhora e a entidade com sede em Zurique, na Suíça, ficaram estremecidas por pelo menos dois anos, até o distensionamento gerado com o comunicado que confirmou que os bianconeri desistiriam de seguir com o plano mirabolante. Posteriormente, Elkann, pivô da mudança de conduta da agremiação de Turim, começou a estreitar laços pessoais com seu homólogo.

Mas Elkann não ampliou a sua presença no dia a dia da Juventus apenas por conta das dores de cabeça causadas pela desventura da Superliga. Afinal, em paralelo ao quiproquó da Superliga, Andrea Agnelli viu seu poder ruir devido a atos de corrupção, que emergiram após o clube ter investido pesado em busca de sua grande obsessão, o título da Champions League – inclusive realizando a contratação de Cristiano Ronaldo, por um total de 112 milhões de euros. O planejamento do ex-presidente, que deixou de ter Marotta a seu lado em outubro de 2018, não deu certo. E, em concomitância ao fracasso esportivo em âmbito internacional, a Velha Senhora viu um rombo ser aberto em seus cofres.

Em 2022, eclodiu a Operação Prisma, uma investigação do Ministério Público de Turim, que acusou a cúpula diretiva da Juventus de falsificar os balanços da agremiação de 2018 até 2021 por meio de valores de transferências inflacionados e de acordos salariais fantasmas com jogadores e funcionários – assim, fazendo comunicações fiscais incorretas e se livrando do pagamento de impostos. A fraude saiu pela culatra, já que a equipe do Piemonte foi punida pelos órgãos de controle da Federação Italiana de Futebol – FIGC e pela Uefa, por violações do fair play financeiro, e perdeu uma importante fonte de receita com a exclusão das competições europeias em 2023-24, sem falar na já citada queda das ações na bolsa. Assim, a administração se viu obrigada a fazer uma injeção de capital de 200 milhões de euros no clube.

Os principais cartolas da Velha Senhora haviam renunciado em bloco em novembro de 2022 e Agnelli encerraria oficialmente sua gestão em janeiro de 2023, quando uma reunião do conselho administrativo elegeu Gianluca Ferrero como seu sucessor e permitiu sua nomeação por Elkann, que indicara o executivo. Embora tenha negado intenções fraudulentas, o ex-presidente bianconero foi suspenso do futebol por 10 meses e sua imagem como gestor “moderno e ético” ficou profundamente abalada. Para o senso comum, restou a percepção de que ele agiu com arrogância e falta de ética empresarial.

Após os escândalos derivados do imbróglio da Superliga e da Operação Prisma, Andrea foi gradualmente afastado da esfera de poder da linhagem. Em 2023, o ex-cartola da Juve renunciou ao conselho da Exor e deixou o cargo de conselheiro da Stellantis, holding automobilística que, como já falamos anteriormente, é a joia da coroa da família Agnelli. O executivo foi discretamente afastado de todas as posições que tinha no grupo empresarial do clã, perdendo espaço político e influência. Na prática, Andrea passou a ser uma figura marginal dentro do império familiar.

A Juventus é um dos principais cartazes do clã Agnelli, que acumula muito poder econômico, político e simbólico na Itália. Por sua importância como dispositivo de soft power, não pode ficar escanteada pela estirpe de aristocratas e com a imagem chamuscada por mais um escândalo – este, protagonizado por gente de seu próprio sangue. A ausência de um membro da linhagem no comando só poderia ser sanada por Elkann, único personagem do núcleo duro da família com capacidade e estatura para ocupar este vácuo. John não se tornou presidente do clube e nem passou a ocupou um cargo específico no organograma societário bianconero, ao qual jamais foi formalmente vinculado, mas tem feito valer o seu posto de CEO do grupo Exor, ao qual, relembramos, a Juve é subordinada.

Elkann teve de viver mais de perto o dia a dia da Juventus desde que Andrea Agnelli, seu primo de segundo grau, foi forçado a se demitir (Getty)

A indicação de Ferrero para a presidência foi o primeiro sinal de aproximação. O executivo é um preposto de Elkann e já trabalhara para a Exor como presidente do conselho fiscal do grupo editorial GEDI. Com perfil discretíssimo, permitiria que o “Agnelli de referência” – ou seja, o integrante da família que tem o comando das operações do grupo – não se chamuscasse com polêmicas e pudesse, com o passar do tempo, deixar de ter atuação esporádica no cotidiano da Juventus e passar a ser presença frequente, tanto em eventos quanto em comunicações oficiais da agremiação. Desde que faleceram Gianni (seu avô) e Umberto (pai de Andrea e seu tio-avô), o ocupante do trono não se aproximava tanto da rotina da equipe.

De fato, Elkann, que fez 49 anos em 1º de abril de 2025, tem necessitado se dedicar mais de perto a todos os negócios da família e a uma maior exposição sociomidiática, no intuito de construir uma imagem pública de grande estima, como a de seu avô, e jogar para escanteio os escândalos que o clã vem protagonizando em vários âmbitos. Aliás, a barafunda do clã chegou a gerar comparações com a trama da premiada série Succession, produzida pela HBO, e que aborda temas como o drama familiar e a luta por poder e pelo controle de uma fortuna multibilionária oriunda de um robusto legado empresarial.

Durante os anos, porém, a família Agnelli foi frequentemente associada a outro clã: ganhou o epíteto de os “Kennedy da Itália” por compartilhar com a homóloga norte-americana de origem irlandesa um perfil de elite carismática, poderosa e trágica, com grande influência política, econômica, midiática e cultural em seus respectivos países. Gianni era filho da princesa Virginia Bourbon del Monte e trineto de George Washington Campbell, que foi senador e Secretário do Tesouro dos Estados Unidos. Sua esposa, Marella, descendia de uma linhagem de nobres napolitanos. O casal foi muito amigo do presidente democrata John F. Kennedy, da primeira-dama Jacqueline e de Lee Radziwill, sua irmã caçula.

Marella, ex-modelo da Vogue e ícone do estilo europeu, era frequentemente comparada a Jackie Kennedy — ambas representavam o ideal de elegância e sofisticação de seus países, sendo retratadas como primeiras-damas de uma elite transatlântica refinada. Gianni, por sua vez, cultivava laços com o establishment político norte-americano e via em JFK um símbolo moderno de liderança ocidental, com quem compartilhava ideais atlanticistas e uma visão elitista e cosmopolita do poder. O casal Agnelli era presença constante em jantares diplomáticos e círculos culturais que uniam Roma, Paris, Nova York e Washington, tornando-se uma espécie de “versão italiana” dos Kennedy no imaginário da alta sociedade internacional.

Por fim, as tragédias dignas de teatro grego, que têm como ponto central a assombração de impérios pela fragilidade humana, unem as linhagens há muito tempo. De um lado, tivemos as mortes precoces de Edoardo Agnelli (43 anos), pai de Gianni, decapitado em um desastre de hidroavião, em 1935; Giovanni Alberto, (33), falecido de câncer, em 1997; e Eddy (46), que se suicidou em 2000. Do outro lado do Atlântico, os destinos da família Kennedy ficaram marcados pelos assassinatos do presidente John F. Kennedy (46), em 1963; do seu irmão Robert Kennedy (42), procurador-geral dos EUA, em 1968; e pelo acidente fatal de John F. Kennedy Jr. (38), em 1999. Em ambos os clãs, essas perdas sucessivas abalaram os planos dinásticos e contribuíram para que se forjasse um mito de maldição sobre as famílias, que tiveram o brilho de seu poder e de sua projeção pública obscurecido pelas catástrofes.

Em tempos mais recentes, porém, os escândalos dignos de uma peça shakespeariana afastam os italianos dos Kennedy e os aproximam ao ficcional clã dos Roy, que, no enredo de Succession – fortemente influenciado pelo clássico Rei Lear, de William Shakespeare –, são estadunidenses de ascendência escocesa. No fim das contas, as três estirpes construíram narrativas sobre poder, legado e tragédia. Ainda que em contextos diferentes, todas são exemplificam mitologias modernas de dinastias disfuncionais. São famílias que têm tudo, menos paz.

Cada uma das famílias gira em torno de patriarcas carismáticos e centralizadores, vistos como mitos em seu tempo e influências para as gerações seguintes – embora com diferenças fulcrais em seus históricos de vida, formas de poder desenvolvido e em seu próprio exercício. Gianni Agnelli, símbolo da aristocracia industrial europeia; John F. Kennedy, ícone da política americana e do otimismo liberal; e Logan Roy, uma figura brutal e manipuladora no universo da mídia corporativa. Em comum, são homens que construíram impérios e deixaram vácuos de poder em seus clãs ao morrerem ou se aposentarem, com ambições reprimidas e sucessões desordenadas, que resultaram em rivalidades, perdas e tensões emocionais duradouras.

Nas disputas por sucessão da família Agnelli, Elkann, herdeiro escolhido por l’Avvocato, lida com a pressão de administrar o legado e com o litígio aberto por sua mãe, Margherita Agnelli De Pahlen – numa dinâmica que remete à luta de Kendall Roy pela aprovação do pai, Logan, enquanto os irmãos Roman e Shiv tentam lhe puxar o tapete, ou também a quando Ken atira Logan aos leões ao fim da segunda temporada da série. A única filha viva do velho Gianni (que só teve dois herdeiros) está processando os seus rebentos para forçar a renegociação dos acordos de herança feitos na época da morte do patriarca.

Em trato feito com Marella, sua mãe, Margherita (comparada a Shiv Roy nessa imbricada trama) aceitou 1,2 bilhão de euros para abrir mão de suas quotas, correspondentes a 38% do pacote acionário, na Giovanni Agnelli BV, a empresa da família. Ela o faria em favor apenas dos filhos do primeiro casamento, e na seguinte proporção: 60% para John, e 40%, divididos igualmente, para Lapo e Ginvera. Anos depois, passou a alegar que não teve acesso completo ao inventário de bens e investimentos mantidos no estrangeiro, como trustes em paraísos fiscais, e que foi induzida a assinar o acordo de renúncia parcial à herança sem conhecer o real valor do patrimônio envolvido. Assim, entrou com ações na Suíça e na Itália, iniciando uma batalha judicial para que o acerto seja anulado.

Relação transatlântica: Gianni Agnelli e sua família eram íntimos do clã Kennedy, representado pela primeira dama Jackie na imagem (Corbis/Getty)

Até as fraudes encabeçadas por Andrea Agnelli e os processos movidos por Margherita, Lapo – ou Roman Roy? – era o grande problema que John tinha que administrar na família. O herdeiro é figurinha carimbada nas páginas policiais e de revistas de fofoca pelo menos desde 2005, quando teve sua primeira overdose de heroína e cocaína numa festa e foi socorrido por uma mulher transgênero, que chamou uma ambulância para levá-lo a um hospital.

Posteriormente, em 2016, quando estava em Nova York, forjou o próprio sequestro e pediu resgate porque ficou sem dinheiro vivo após 48 horas de diversão com uma prostituta transexual, com quem teria consumido um coquetel de drogas lícitas e ilícitas. Além disso, colecionou entrevistas polêmicas, relacionamentos de muita exposição social, multas por excesso de velocidade e uma detenção por porte de cocaína enquanto dirigia – aliás, até sofreu um grave acidente e chegou a ficar em coma, em 2019. No meio disso tudo, em 2014, se tornou, cidadão honorário do estado do Rio de Janeiro, através de uma homenagem concedida pela Alerj, a Assembleia Legislativa fluminense – assim como John, também morou por seis anos na Cidade Maravilhosa.

Extravagante, irreverente, polêmico, criativo e exposto à mídia com escândalos e crises de imagem, o irmão mais novo de John Elkann se dedicou principalmente a iniciativas ligadas a luxo e estilo durante sua atuação no grupo Exor e em voos solo, além de ter passado pelas diretorias de Fiat e Ferrari, mas os sucessivos tumultos o afastaram dos conselhos administrativos das empresas da família. Desde 2021, quando casou com a ex-piloto de rally Joana Lemos, foi morar em Portugal e assumiu uma postura mais discreta – se é que isso é possível quando falamos sobre Lapo.

Evidentemente, a exposição no plano moral não pega bem para o aristocrático clã que sempre se vendeu (com sucesso, aliás), como um modelo a ser seguido – “a Itália que deu certo”, por assim dizer. Uma estirpe que, devido à elegância de Gianni, seu segundo grande patrono (neto de Giovanni Agnelli, o já citado fundador da Fiat), virou sinônimo de fineza e sobriedade. A propósito, o famoso “estilo Juve”, que alude a essa civilidade, é um patrimônio simbólico construído pelo ex-presidente.

Os Agnelli não desejam passar de sinônimo de elegância da aristocracia industrial europeia a exemplo de falência moral do capitalismo moderno, como os Roy. E, para não seguir esse trágico destino, não adianta sequer ter o controle formal de parte da imprensa e boas relações com o restante dela – assim como, para o clã ficcional, não fez diferença fabricar a realidade em tempo real por meio dos canais da Waystar Royco, rede de sua propriedade. É necessário cultivar esta imagem positiva. Como John Elkann não é conhecido pelo carisma, como seu avô, e não teria capacidade emocional e psicossocial para distrair as massas, precisa ao menos trabalhar para evitar ou abafar escândalos no seio de sua família.

E o que mais John Elkann tem feito para manter vivo o mito imagético dos Agnelli, para além de sua intervenção na Juventus e sua aproximação com Infantino e o governo norte-americano, através do republicano Donald Trump? Podemos entender a aposta em jovens talentosos, como Kenan Yildiz, que podem renovar o futebol da Velha Senhora e fazê-la voltar às cabeças como um passo para isso, embora as opções para o comando técnico da equipe não venham funcionando.

Já no automobilismo, a contratação de Lewis Hamilton pela Ferrari pode ser vista como uma estratégia de soft power, embora também haja aspectos esportivos e comerciais envolvidos – o que é óbvio, uma vez que estamos falando de um multicampeão mundial que é considerado como um dos maiores pilotos da história da Fórmula 1. A escuderia escarlate costuma investir em ações de visibilidade para reforçar sua imagem e sua influência global. A chegada do inglês, que é extremamente popular e tem uma grande quantidade de fãs, certamente contribui para essa estratégia, atraindo atenção e interesse para a marca para além do esporte.

Por fim, Elkann faz parte do conselho de administração da Meta desde 2023. É uma posição que lhe confere soft power, mas também amplia sua conexão com o establishment norte-americano e lhe permite construir novas pontes com Trump, considerando que Mark Zuckerberg está se alinhando cada vez mais ao republicano, depois de anos de fricções – além de derrubar medidas de moderação nas redes sociais que desagradavam ao presidente, em 2025 também indicou o trumpista Dana White, do UFC, ao grupo de conselheiros de seu conglomerado. A entrada do italiano no board da empresa estadunidense é mais que simbólica: é um movimento calculado para projetar poder, antecipar tendências e posicionar a Exor na fronteira da tecnologia global, sem deixar de manter influência na política europeia.

A cadeira no conselho permite ao executivo italiano ter acesso direto e antecipado aos debates sobre inteligência artificial, dados, plataformas digitais e regulação algorítmica – temas centrais para negócios futuros nas áreas de mobilidade, mídia e saúde, que fazem parte de sua carteira de investimentos na Exor e que têm sido alvo de atenção especial da holding. Além disso, possibilita iniciativas futuras entre as empresas automobilísticas do conglomerado, como a Ferrari e as montadoras subordinadas à Stellantis, em experiências digitais e conectividade. Por fim, fortalece a imagem do tecnocrata como líder global transatlântico, como Gianni Agnelli, e expande a sua rede de influência ao Vale do Silício e às instâncias regulatórias americanas. Ao participar do board de uma big tech como a Meta, Elkann se reposiciona como figura de peso fora do círculo tradicional da indústria automotiva e editorial europeia.

Em troca, Zuckerberg e a Meta têm um ganho geopolítico e reputacional crucial, especialmente na Europa. Com a crescente pressão de órgãos reguladores como a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu sobre as redes sociais e as plataformas de inteligência artificial, Elkann atua como uma ponte estratégica com o establishment político e econômico no continente, ajudando a mediar interesses e suavizar tensões institucionais. Além disso, sua experiência em liderar conglomerados multinacionais com atuação em setores sensíveis, como os já citados, pode conferir traz uma visão articulada e de estabilidade ao conselho. Como o italiano é visto como um moderado, sua indicação também reforça a narrativa de que a Meta está disposta a se internacionalizar eticamente, conectando-se a figuras com forte capital simbólico, histórico familiar e civilidade, em contraste com a imagem volátil que a empresa vem tentando reformular desde os escândalos envolvendo privacidade e desinformação.

Novos tempos, novos líderes, novos formatos de alianças. Nos tempos de Gianni Agnelli, era diferente.

Época de paz: os já falecidos Gianni, Marella e Eddy posam com Margherita, John, Lapo, Andrea, Ginevra e outras crianças, em 1986 (Gamma-Rapho/Getty)

Agnelli e Kissinger: amigos para sempre

Num mundo menos líquido, Gianni Agnelli até se espalhava como um rio caudaloso numa foz em delta, mas cultivou relações bastante sólidas, como diamante – e não falamos aqui das joias amigadas com a atriz Marilyn Monroe, suposta amante de John F. Kennedy, para o qual cantou o parabéns mais icônico e sexy da história. O democrata foi um grande parceiro de l’Avvocato, como já falamos, mas o italiano viria a desenvolver uma sinergia ainda mais forte com o controverso Henry Kissinger, que chegou a ser conselheiro estratégico do presidente supracitado e do seu sucessor, Lyndon Johnson. Apesar de eminência parda transpartidária, o diplomata ficaria mais marcado como figura influente em governos republicanos.

Gianni Agnelli, desde cedo, aprendeu a ser um camaleão. Apesar de ser neto de um senador do antigo Reino da Itália, herdeiro da Fiat e filho de uma princesa da Casa de Bourbon, serviu ao exército italiano na II Guerra Mundial, participando das campanhas da Rússia, da Líbia e da Tunísia. Porém, durante o conflito, após a queda do ditador Benito Mussolini, se uniu aos Aliados – tal qual o rei Vittorio Emanuele III – e fez parte do Corpo de Libertação Italiano. Na oposição? Jamais.

Giovanni Agnelli, fundador da Fiat e seu avô, era filiado ao Partido Nacional Fascista, mas nunca foi considerado um fascista convicto, daqueles ideológicos de carteirinha, que seguiam a doutrina à risca. Na verdade, assim como tantos outros empresários de sua época, se portou como um industrial pragmático que colaborou estrategicamente com o regime por conveniência política e financeira. Sua prioridade sempre foi a preservação e expansão de sua empresa, que se tornou um dos pilares da Itália durante o governo de Mussolini, beneficiando-se de encomendas militares e da política de autossuficiência econômica tocada pelo ditador.

Foi o avô que deu os primeiros ensinamentos sobre política e pragmatismo ao jovem Gianni – afinal, Edoardo, seu pai, morreu quando ele tinha apenas 14 anos. Ainda garoto, conheceu os Estados Unidos e ficou maravilhado com o país: a visita a Nova York, Los Angeles e Detroit, o coração da indústria automobilística americana, foi fulcral para que ele desenvolvesse uma linha filo-americanista, cosmopolita e ocidentalista em sua atuação político-empresarial.

Aos 24, Gianni Agnelli se elegeu como o primeiro prefeito da pequena Villar Perosa, cidadezinha em que a família, oriunda de Racconigi, fincaria raízes e estabeleceria sua residência de verão – a mesma comuna em que, desde 1959, a Juventus faz um tradicional amistoso de pré-temporada entre seus times A e B; este último substituído pelo sub-23 a partir da década de 2020. Passou incríveis 35 anos no cargo. Ali, aprendeu a lidar com a política do dia a dia, do olho no olho e do contato físico.

Na presidência da Juve (1947-54), l’Avvocato exerceu sua paixão e se apresentou para as massas através do esporte mais popular do mundo. Na Fiat, foi administrador-delegado entre 1963 e 1966, até que se tornou presidente. Na empresa de sua família, que se constituiu num símbolo do milagre econômico italiano do pós-guerra, tratou com operários no chão de fábrica e dirigentes e líderes globais em escritórios e banquetes luxuosos.

Posteriormente, Agnelli seria alçado à chefia da Confederação Geral da Indústria Italiana, a Confindustria, entre 1974 e 1976, e, em 1991, acabaria nomeado como senador vitalício da república. Em sua atuação parlamentar, era independente, mas associado a posições de centro. Com seu carisma, conseguiu ser estimado por figuras de campos díspares, como o populista de direita Silvio Berlusconi, ex-premiê (1994-95, 2001-06 e 2008-11) e ex-proprietário de Milan e Monza, com quem cultivava uma relação bastante cordial, ou Giorgio Napolitano, presidente da Itália entre 2006 e 2015, que foi um quadro histórico do PCI, o Partido Comunista Italiano.

Durante sua trajetória, Agnelli frequentou sem limitações o jet set internacional e, em suas viagens aos Estados Unidos e em reuniões com tantos outros figurões, conheceu Henry Kissinger em meados da década de 1960. Era um período de intensas transformações geopolíticas e econômicas no planeta, no qual a Fiat se consolidou como uma potência industrial global, ao passo que os EUA buscavam aliados estratégicos na Europa. O italiano e o alemão naturalizado estadunidense compartilhavam uma visão comum sobre a ordem mundial, baseada no domínio econômico das nações capitalistas do Norte Global, no livre mercado e na contenção da “ameaça comunista”.

Além da proximidade com os democratas através dos Kennedy, Agnelli tinha ponte com os republicanos graças a Kissinger (LaPresse)

A amizade da dupla, pautada em muita admiração mútua, até poderia ter uma trilha sonora temática: “Amigos Para Siempre”, dueto entre a soprano britânica Sarah Brightman e o tenor catalão José Carreras, que foi tema dos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992. Justamente o mais importante evento esportivo que ocorreu entre as Copas do Mundo da Itália, em 1990, e dos Estados Unidos, em 1994, nas quais as eminências pardas tiveram participação decisiva durante os respectivos processos de candidatura de seus países e também de organização dos torneios em si.

Antes de chegarmos ao futebol, porém, é preciso nos debruçarmos sobre a figura de Kissinger e o que sua relação com Agnelli representava. Diplomata e cientista social de origem judaica, nasceu na Alemanha e fugiu para os Estados Unidos em 1938, por conta da perseguição nazista. Décadas mais tarde, já naturalizado estadunidense, foi assessor de segurança nacional (1969-75) e Secretário de Estado (1973-77) nas gestões dos republicanos Richard Nixon e Gerald Ford, além de frequente conselheiro dos presidentes posteriores, de ambos os partidos, com a exceção do democrata Jimmy Carter (1977-81) – aliás, o estrategista também aconselhou papas. Ao burocrata é creditada a moldagem da política internacional dos EUA na Guerra Fria, período em que os norte-americanos buscaram ampliar a hegemonia do seu imperialismo em prol do suposto combate ao comunismo e à influência da União Soviética.

Para os admiradores do arquiteto da realpolitik norte-americana, Kissinger foi “gênio” e “estrategista”. Os críticos guardam outras definições para o diplomata: “assassino”, “genocida”, “serial killer”, “monstro”, “criminoso de guerra”, “golpista”. O fato é que suas decisões como agente político e militar estadunidense lhe conferiram, por um lado, um prêmio Nobel da Paz, em 1973, e, por outro, geraram – através de bombardeios, conflitos armados, efeitos de golpes de estado e perseguição ideológica – milhões de mortes por todo o globo, em continentes como África (Angola, Congo e Egito), América do Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile), Ásia (Bangladesh, Camboja, Israel, Laos, Palestina, Timor-Leste e Vietnã) e Europa (Chipre). Estimativas giram entre 1 e 3 milhões de mortos, sendo grande parte desse número formado por civis inocentes.

Em tempos de Guerra Fria, era importante para Washington consolidar alianças com setores industriais europeus que pudessem ajudar a conter a influência soviética do outro lado do Atlântico e, nesse sentido, a amizade entre Kissinger e Agnelli era estratégica para os EUA, que tinham como parceiro um interlocutor confiável e informado, com perspectiva sobre sociedades da Europa e do Mediterrâneo, além de acesso a redes políticas e econômicas cruciais.

Por sua vez, l’Avvocato via o governo ianque como um aliado essencial para a expansão e proteção dos interesses da Fiat. Sua ótima relação com o estrategista ajudava a companhia a reduzir resistências no competitivo mercado dos Estados Unidos, repleto de montadoras concorrentes, superar o protecionismo comercial em determinadas situações e a navegar em águas mais turbulentas, onde as decisões de negócios dependiam de alinhamentos diplomáticos, como América Latina, África, Leste Europeu e União Soviética.

Na década de 1970, a Itália também atravessava um período turbulento: naquela época, viveu os seus anos de chumbo, que impactaram até o futebol. O país foi abalado por instabilidade política e atos terrorista de extrema esquerda e extrema direita, sendo que os grupos desse segundo espectro eram ligados ao serviço secreto italiano e aos governos democratas cristãos. Eles incentivavam o terrorismo de estado e a sombra de um golpe militar ficou sempre à espreita.

A tática ficou conhecida como “estratégia de tensão”. O objetivo era desestabilizar o país para, depois, estabilizá-lo. Provocar o caos para restaurar a ordem. A intenção estava manifesta num manual da CIA encontrado nos pertences de Licio Gelli, ex-membro do Partido Fascista e grão-mestre da loja maçônica Propaganda Due (P2), preso na década de 1980. A P2 era um dos grupos ligados à extrema direita (mais especificamente ao Movimento Sociale Italiano – MSI, herdeiro do Partido Nacional Fascista – PNF) e ao poder constituído e, segundo investigações, teve relação com diversos crimes durante o período dos anos de chumbo. Sob o comando de Gelli, conspirou politicamente para assumir o controle dos aparelhos do estado italiano e teve o objetivo de formar um governo autoritário de extrema direita, com uma perspectiva anticomunista.

A P2 foi uma peça importante na Operação Gladio – similar à Operação Condor, que instaurou ditaduras militares na América Latina. Sua atuação era patrocinada pela OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar entre países da América do Norte e da Europa, e pela CIA, a central de inteligência norte-americana. Na época, o MI6, o serviço secreto britânico, descobriu que os EUA incentivavam atos terroristas e golpes de estado em nações do Mediterrâneo, como a Itália. Em 2013, isso se confirmou quando o Wikileaks publicou comunicações hackeadas do Departamento de Estado ianque com seu embaixador em Roma. Essas conversas revelavam o desconforto do secretário Kissinger com um suposto combate mais acentuado do governo italiano a grupos neofascistas do que aos comunistas.

Kissinger acompanhava de perto a situação e via a Fiat como uma grande aliada política, já que a montadora era a empresa com o maior número de empregados da Itália e tinha também milhares de funcionários espalhados pelo mundo. Afinal, a grande quantidade de trabalhadores nas fábricas representava intensa mobilização sindical comunista e conter lideranças de esquerda era fundamental para os planos norte-americanos.

Negócios nas tribunas: Kissinger e Agnelli assistiram a diversos jogos de futebol juntos, mas sem jamais esquecer da política (Bongarts/Getty)

Documentos e testemunhos indicam que a Fiat cooperava com os serviços de segurança italianos e estrangeiros, fornecendo informações sobre líderes sindicais, movimentos estudantis e operários considerados “subversivos”, principalmente na década de 1970 – na Itália e na América do Sul, as fábricas estavam cheias de espiões. Nesse pacote, estavam inclusos fichas com dados pessoais, opiniões políticas e atividades fora do trabalho.

No Brasil e na Argentina, onde órgãos de repressão como DOI-CODI e DOPS eram temidos pela população, há registros de sindicalistas que foram presos ou perseguidos após serem monitorados pela empresa, além de denúncias de sequestros e desaparecimentos de trabalhadores dentro do perímetro de fábricas da Fiat. Em adição às acusações de colaboração com os aparatos de controle dos regimes totalitários vigentes, a gigante do setor automotivo manteve relações próximas com os governos militares através do recebimento de subsídios estatais. Foi através desses incentivos que, em 1976, a montadora instalou seu maior parque fabril em todo o planeta em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais.

Gianni Agnelli nunca foi imputado por qualquer das denúncias de colaboração da Fiat com regimes totalitários ou espionagem sindical. Kissinger também não foi formalmente acusado por nenhum crime. Que os dois eram muito habilidosos nos bastidores ninguém pode discordar.

Mesmo após o fim da Guerra Fria, os laços entre a família Agnelli e o establishment americano permaneceram fortes. Kissinger chegou a participar do universo corporativo da Fiat, através de serviços prestados por sua empresa de consultoria, e manteve seu papel como conselheiro informal do magnata. Nessa via de mão dupla, em 2001 Gianni chegou a emplacar o neto Lapo Elkann como assistente pessoal do diplomata, que pouco após seria nomeado como presidente da comissão encarregada de investigar os atentados terroristas que ocorreram em solo norte-americano em 11 de setembro daquele ano.

Em sua amizade profícua, Agnelli e Kissinger também se dedicavam a assuntos mais leves, como o futebol – aliás, quando era um adolescente na Alemanha, o jovem Henry, que gostava bastante do esporte, chegou a atuar pelos juvenis do Fürth, antecessor do Greuther Fürth. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, a dupla de eminências pardas foi registrada em fotografias ou em vídeos assistindo, in loco, a diversas partidas mundo afora. Uma delas, aliás, foi relembrada por Walter Casagrande Júnior em sua coluna no UOL, quando o diplomata faleceu. Na ocasião, em 1992, o norte-americano chegou até a ser entrevistado por emissoras de TV (confira aqui e aqui). Em campo, o brasileiro anotou uma doppietta e garantiu a vitória por 2 a 0 do Torino no Derby della Mole. O Toro ficaria na terceira posição da Serie A e a Juve seria vice-campeã.

Porém, até mesmo uma mera ida ao estádio representava, para a dupla, algo além de um simples jogo de futebol. Já falamos suficientemente como a família Agnelli tem na Juventus um instrumento de poder simbólico e o quanto significa para o clã projetar a sua imagem e o seu poder através de uma equipe popular e vencedora. Uma Velha Senhora forte correspondente à manutenção da potência do legado dos herdeiros da Fiat. Gianni estendeu a sua influência para além da agremiação bianconera e também foi um importante articulador para que a Itália recebesse a Copa de 1990. Em seguida, Kissinger mimetizou o amigo e mexeu alguns pauzinhos para que os Estados Unidos fossem a sede do Mundial de 1994.

Agnelli era a figura mais poderosa da elite industrial italiana nos anos 1980 e, naqueles tempos, a Serie A era a principal liga de futebol do planeta, embalada pelo tricampeonato mundial dos azzurri, em 1982 e por craques de todo o globo. Não à toa, também foi um período dourado para a Juventus, que iniciou a década chamando a atenção pela aquisição do francês Michel Platini, um dos maiores meia-atacantes da história, e empilhando títulos italianos e internacionais, como uma Copa dos Campeões e uma Copa Intercontinental. Fazia sentido que a Itália tivesse interesse em sediar o Mundial para reforçar sua imagem de dominância no cenário esportivo e o seu prestígio. Obviamente, l’Avvocato só poderia se beneficiar disso e, além de manifestar apoio à candidatura proposta pela FIGC, articulou para que a organização do evento tivesse a sua cara.

Não é exagero. A Itália foi escolhida como sede da Copa em 1984, vencendo a – atenção – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas na disputa, e Agnelli trabalhou para que o diretor-geral do comitê organizador fosse um gestor com a capacidade de transmitir uma imagem moderna da Itália ao mundo; alguém com experiência internacional, perfil midiático e sofisticação diplomática. Mas, principalmente, que fosse um sujeito da sua mais estrita confiança, para que pudesse ter influência sobre a preparação e uma ponte para cooperação em negócios. Em 1986, após a atuação do industrial como fazedor de reis (ou kingmaker, se preferir), o escolhido foi Luca Cordero di Montezemolo, cuja enorme proximidade ao herdeiro da Fiat ensejou uma lenda urbana de que o pupilo fosse, na verdade, seu filho bastardo. Curiosamente, numa deliciosa ironia idiomática, “agnelli”, em italiano, é o plural de “cordeiro”. “Cordero”, por outro lado, não significa nada.

Assim como l’Avvocato, o diretor do comitê organizador da Copa de 1990 tem sangue azul e nasceu no seio de uma família que teve senador na Itália monárquica, militar de alta patente que integrou a resistência na II Guerra Mundial e foi assassinado por nazistas, e até cardeal da Igreja Católica. Filho de Massimo Cordero, Marquês de Montezemolo, Luca se especializou em direito internacional, mas sua verdadeira paixão, desde jovem, era o automobilismo. E foi esse amor que o aproximou de Cristiano Rattazzi, filho de Susanna Agnelli, irmã de Gianni. O amigo foi seu navegador em competições de rally.

Montezemolo, sempre orbitando Gianni Agnelli, foi escolhido para chefiar a organização da Copa de 1990 (imago)

Montezemolo ingressou na Ferrari em 1973, quatro anos após a escuderia ter 50% de seu capital adquirido pela Fiat. Aos 25, iniciou seu trabalho como assistente de Enzo Ferrari e começou a construir uma história corporativa muito parecida com a de Gianni Agnelli, que lhe serviu como uma espécie de mentor.

A trajetória do discípulo se confundiu com a do próprio patrono, e, antes e depois da morte de l’Avvocato, ele ocupou diversos cargos importantes na galáxia dos grupos IFIL e Exor, como na Juventus (1990-91), no jornal La Stampa e nas fabricantes de bebidas alcoólicas Campari e Cinzano, que foram da influente família piemontesa. Além disso, foi presidente da Livre Universidade Internacional de Estudos Sociais Guido Carli (LUISS), da Maserati e, claro, da Fiat e da Ferrari, onde ganhou maior notoriedade mundial. Por fim, o bolonhês ainda dirigiu a Confindustria, como seu antigo chefe – e olha que nem falamos de uma penca de posições que Montezemolo teve em outras prestigiosas companhias. O mais fiel pupilo do “príncipe da Itália” só deixaria de orbitar os negócios do clã em 2014, já na gestão Elkann.

Cerca de três décadas antes, quando assumiu a chefia do comitê organizador do Mundial, Montezemolo tinha como responsabilidade coordenar as relações entre a Fifa, a FIGC e os governos em todas as esferas, das prefeituras das cidades-sede ao poder executivo federal; as questões de logística e infraestrutura; e as estratégias de marketing e imagem internacional da Itália. Para Agnelli, obter contratos publicitários não foi tão complicado e, assim, tanto a Alfa Romeo quanto a Fiat, de seu portfólio empresarial, patrocinaram a Copa. Em ocasião do megaevento esportivo, aliás, a montadora de carros populares chegou até a lançar um carro em edição limitada que virou objeto de culto: o Panda Italia ’90.

Um dos maiores desafios para Montezemolo na organização daquele Mundial era dar conta da reforma dos velhos estádios do país e do erguimento de novos palcos. A maior parte deles foi reestruturada e só duas novas arenas saíram do papel. Uma em Bari, cidade de Antonio Matarrese, então presidente da FIGC e proprietário do homônimo time local, e outra na Turim de Agnelli, onde o antigo Comunale foi considerado obsoleto e de difícil repaginação. Essa avaliação levaria à construção do Delle Alpi, que teria capacidade similar à praça – aproximadamente 69 mil lugares. A princípio, parecia um benefício para Juventus (e Torino).

Entretanto, a concepção da arena se revelou um tiro pela culatra. O Delle Alpi tinha arquibancadas muito distantes do gramado, devido à pista de atletismo instalada, e estava situado numa zona periférica da cidade localizada aos pés dos Alpes, o que fez com que raramente recebesse grande público e se tornasse um ambiente inóspito e gélido – literal e metaforicamente, já que a ventania alpina afastava as torcidas, que preferiam assistir as pelejas de seus times pela televisão. Por isso, na década de 1990, a Juve chegou a mandar partidas importantes em Milão. Era uma tentativa desesperada de juntar mais apoiadores e, consequentemente, renda.

Outro fator crucial para que o Delle Alpi não tivesse o sucesso esperado foi a falta de timing, visto que, em 1996, poucos anos após o estádio de Turim sair do papel, o conceito de praça esportiva foi revolucionado pela moderna Amsterdam Arena, com restaurantes, museu, espaços de convivência e outras estruturas atraentes para o público para além do futebol. Assim, o legado da Copa de 1990 correu sério risco de virar um elefante branco.

O problema do Delle Alpi só foi resolvido, a favor da Velha Senhora, depois que os bianconeri adquiriram o direito de superfície do terreno junto à prefeitura da cidade, em 2002, e o Toro optou por utilizar o seu estádio anterior, que seria reformado para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2006 e transformado em Olímpico Grande Torino, com capacidade reduzida para cerca de 28 mil lugares. Em 2011, depois da demolição da antiga arena e da realização de um projeto moderno, foi inaugurado o Allianz Stadium, também com menos assentos do que a antiga praça (aproximadamente 41,5 mil). Uma vitória árdua e póstuma de Gianni Agnelli.

O velho Delle Alpi foi um dos estádios mais visitados por Kissinger no Belpaese, mas não foi o único. Aliás, o diplomata assistiu a derrota da Itália para a Argentina na semifinal da Copa de 1990 nas tribunas de honra do antigo San Paolo, em Nápoles, ao lado de muitas autoridades das quais era um aliado. Agnelli e Montezemolo, por óbvio, compunham o grupo que ainda tinha Matarrese, o democristão Giulio Andreotti, à época premiê italiano em exercício do terceiro mandato, e o brasileiro João Havelange, que havia chegado à presidência da Fifa tendo o estadunidense como fervoroso cabo eleitoral. O norte-americano passou o Mundial na Velha Bota para estudar tudo o que o comitê de organização italiano fazia – especialmente nos campos de segurança, logística, imagem internacional e diplomacia esportiva – e poder relatar sua experiência a seus conterrâneos, na qualidade de consultor informal da Copa de 1994.

Não era a primeira vez que Kissinger se envolvia diretamente com um Mundial de futebol. De acordo com arquivos do Departamento de Estado norte-americano tornados públicos em 2016, o ex-secretário agiu deliberadamente para atrapalhar os esforços do governo do democrata Jimmy Carter para interromper a matança de opositores pela ditadura militar argentina ao visitar Buenos Aires como convidado de honra do sanguinário presidente Jorge Videla para assistir à Copa de 1978, um ano e meio após ter deixado seu cargo no governo estadunidense.

P2? Grande amigo de Agnelli e de Pelé, Kissinger usou o brasileiro como instrumento de soft power a favor dos EUA (Getty)

No país sul-americano, o ex-secretário chocou o embaixador Raúl Castro por ter se derramado em elogios ao regime em reuniões com oficiais, o que foi interpretado como sinal verde para a intensificação do projeto homicida. Kissinger também visitou os vestiários do Peru antes do fatídico jogo com a seleção dona da casa, que precisava de uma goleada para ultrapassar o Brasil na segunda fase de grupos e chegar à final – conseguiram um 6 a 0. Posteriormente, os peruanos alegariam que foram vítimas de uma série de intimidações do governo militar, fortemente apoiado pelo diplomata, para perderem a partida.

Pouco menos de meia década mais tarde, em novembro de 1982, quando a Colômbia foi forçada a abdicar de ser sede da Copa de 1986 por questões econômicas, Kissinger passou a liderar a candidatura dos Estados Unidos como potencial substituto, numa campanha que durou alguns meses, até a eleição de maio de 1983. Na ocasião, os estadunidenses utilizaram como embaixadores e garotos-propaganda os craques Franz Beckenbauer e Pelé, que eram seus amigos e velhos conhecidos dos tempos de New York Cosmos, time mais célebre da NASL, a Liga Norte-Americana de Futebol.

Experiente nos meandros da política internacional, o diplomata, em sua visão estratégica, sabia que emplacar uma eleição como país-sede do torneio do desporto mais popular no globo serviria como um poderoso instrumento de soft power para os ianques, sobretudo naquele momento da Guerra Fria. Em 1980, os EUA lideraram um boicote que fez outros 66 países não participarem dos Jogos Olímpicos de Moscou, que antecedia Los Angeles 1984 – em resposta, a União Soviética e mais um bloco de 18 nações decidiram não competir. Para os Estados Unidos, seria interessante mostrar força como anfitriões dos dois maiores eventos esportivos do planeta.

O México levou a melhor na eleição emergencial de 1983, mas os EUA não desistiram facilmente. Ainda sob a esfera de influência do seu ex-secretário de Estado, os norte-americanos voltaram à carga e puderam comemorar com muito patriotismo em 4 de julho de 1988, feriado da Independência: naquela data simbólica, os Estados Unidos receberam 10 votos, superando as candidaturas de Marrocos (sete) e Brasil (dois) e foram eleitos pelo Comitê Executivo da Fifa como anfitriões do Mundial de 1994. Embora os votos fossem secretos, é razoável imaginar que Matarrese, então presidente da FIGC e integrante da cúpula da Fifa como um dos representantes da Uefa, tenha feito um aceno ao grande amigo do aliado Agnelli e atuado para influenciar a escolha dos membros eleitores da confederação que eram ligados ao bloco do oeste global (Alemanha Ocidental, Dinamarca, Espanha, França, Irlanda do Norte e Turquia).

A indicação dos Estados Unidos ocorreu nos meses finais da popular gestão do republicano Ronald Reagan, um dos ícones do neoliberalismo conservador, e a maior parte da organização do evento se deu no governo de George Bush, do mesmo partido. A Copa, porém, foi realizada no segundo ano de mandato do democrata Bill Clinton – a quem Kissinger criticava bastante na política externa, apesar da frequente interlocução.

Durante todo o processo de candidatura e organização do Mundial, Kissinger serviu como elo entre os interesses norte-americanos e as demandas da cúpula do esporte global, usando sua reputação de articulador e os seus contatos diplomáticos. Sua presença deu ao pleito estadunidense um sinal de seriedade geopolítica sob o prisma do futebol (ou do soccer, se preferir), algo importante em uma época em que os EUA ainda não tinham tradição futebolística forte e nem mesmo estádios específicos para a modalidade – o primeiro foi o do Columbus Crew, erguido em Ohio apenas em 1999, cinco anos depois da Copa.

Assim como Agnelli, anos antes, Kissinger também venceu a aposta feita na Copa do Mundo. Afinal, a competição foi um sucesso. Ainda que ela tenha sido decidida por um pênalti cobrado para fora pelo craque Roberto Baggio, jogador publicamente admirado pelo diplomata norte-americano e que havia sido uma das grandes contratações feitas por l’Avvocato em seu reinado na Juventus.

Quase três décadas depois daquela tarde em Pasadena, fatídica para os italianos e mágica para os brasileiros, a Velha Senhora voltou a servir como fio condutor da amizade entre Agnelli e Kissinger, já falecidos. Em novembro de 2023, quando o norte-americano morreu, aos 100 anos e seis meses, a conta oficial da equipe na rede social X chegou a homenageá-lo, chamando-o de “caro amigo” numa curta frase acompanhada de uma foto acompanhado de l’Avvocato, seu ex-presidente mais representativo. Devido ao já citado histórico do diplomata na política externa dos EUA, a publicação gerou uma forte reação contrária e muitas críticas de torcedores e rivais.

Ainda que a família Agnelli estivesse patinando entre escândalos em seu seio e a memória sobre as manobras ilegais feitas na Juventus estivessem frescas, naquele momento John Elkann não poderia ceder ao receio da rejeição pública e vetar a homenagem do clube a um dos amigos mais íntimos de seu avô – seu maior espelho e figura paterna, visto que Alain Elkann não foi um pai dos mais presentes, por inúmeras razões. Seria cuspir em seu legado e nas relações que, ao longo de décadas e fortes alianças, o clã desenvolveu com os círculos de poder dos Estados Unidos. Para ser bem-sucedido nos negócios a este patamar, é necessário honrar acordos, mas também ousar e saber qual é a hora certa de atacar. Eventualmente, saber quando os lobos devem vestir pele de cordeiro. E vice-versa.

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