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·08 de setembro de 2020

Há 50 anos falecia Gentil Cardoso: técnico, frasista, filósofo, personagem singular do futebol brasileiro

Imagem do artigo:Há 50 anos falecia Gentil Cardoso: técnico, frasista,  filósofo, personagem singular do futebol brasileiro

Todo torcedor brasileiro, sem exceção, e até quem nem gosta de futebol tem familiaridade com alguma expressão ou frase introduzida no esporte – e no cotidiano – do Brasil por Gentil Cardoso, ainda que não faça ideia de quem foi o treinador pernambucano com carreira desenvolvida em sua maior parte no Rio de Janeiro e falecido há exatos 50 anos. Esse desconhecimento, inclusive, é um lapso enorme, já que se trata de um gigante e um pioneiro do jogo no país. Um nome obrigatório em qualquer obra que trate dos maiores técnicos nacionais.


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De sua extensa contribuição ao anedotário do futebol nacional, alguns termos são mais famosos: a “zebra” para o resultado inesperado; o “cobra” para o jogador perigoso, geralmente um meia ou atacante; ou “brincar nas onze” para o atleta capaz de exercer múltiplas funções. Há ainda as frases, revelando um discurso que mesclava o palavreado do povo com suas leituras de Gandhi, do positivista Augusto Comte e dos filósofos da antiguidade, como Cícero e Sócrates.

Um entusiasta da troca de passes, do jogo de pé em pé, Gentil eternizou aquela célebre sequência lógica: “A bola é feita de couro; o couro vem da vaca; a vaca gosta é de grama”. Portanto, lugar de bola é rolando macia pelo gramado. Certa vez, porém, ele se contradisse: dirigindo o Sport, que era goleado pelo Madureira num amistoso, mandou seus jogadores passarem a dar balões para cima: “Enquanto a bola estiver no alto não há perigo de gol aqui embaixo“.

Em outras vezes, ele podia ser mais rebuscado: “É obrigação do técnico enxergar o que se passa na alma dos jogadores. Ele tem que ser guia e fazedor de milagres. Mestre e curandeiro. Dar vista aos cegos e muletas aos aleijados”. Ou ainda, como costumava escrever no quadro-negro que mandava instalar nos vestiários dos clubes por onde passava: “A vitória não exige explicações, a derrota não merece desculpas, o empate não significa superioridade”.

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Sua condição de emérito frasista, aliada aos seus dois companheiros inseparáveis – o boné (ou boina) com o qual escondia a calvície e o megafone que usava para comandar os treinos e chamar a atenção dos jogadores (mesmo de perto) –, contribuiu para que fosse atrelada a Gentil uma imagem de treinador folclórico, e apenas isso. Tratamento injusto para aquele que, entre outras coisas, foi um dos primeiros no país a dar a devida importância à organização tática.

Gentil montou esquadrões e revelou jogadores que entraram para a história do futebol brasileiro, em especial no Rio de Janeiro e em Pernambuco. Conquistou títulos, registrou feitos expressivos e escreveu boas histórias. Chegou a redigir um detalhado manual do atleta profissional, no qual destacava os direitos e deveres de seus comandados e orientava também a atuação dos dirigentes. Mas este acabou não sendo adotado pelos clubes.

Grande chaga nacional, o racismo também desempenhou um triste papel para que Gentil não contasse com o prestígio merecido em seu tempo e que ficasse muitas vezes à margem de um digno reconhecimento histórico. Na época, era muitas vezes reduzido por dirigentes a um “preto falador”. O personagem quase sempre bem-humorado e divertido também escondia um homem muito amargurado e que carregava em si um forte sentimento de injustiça.

O marinheiro e a Lei do Impedimento

Nascido no Recife, no bairro da Torre, em 27 de junho de 1901 (algumas fontes apontam a data de 5 de setembro ou mesmo o ano de 1906), Gentil Alves Cardoso fugiu de casa aos 13 anos e foi para o Rio de Janeiro, então capital federal. Fez bicos como engraxate, garçom, motorneiro de bonde, padeiro e carregou caixotes no Mercado Municipal. “Nunca fui criança. Um garoto pobre e preto não sabe o que é infância. Só tenho recordações do tempo em que já ganhava suando um pão minguado”. Em 1916, decidiu se alistar na Marinha.

Sua trajetória no futebol, então começando a se popularizar, começou como jogador defendendo rapidamente o São Cristóvão, o vizinho (e hoje extinto) Palmeiras Atlético Clube, da Quinta da Boa Vista, e mais adiante o Syrio e Libanez, da Tijuca, onde permaneceu por mais tempo. Ao longo da década de 1920, conciliou a carreira no esporte – eram tempos de amadorismo – com o expediente na Marinha Mercante, de onde tirava seu sustento.

Além de lhe render mais tarde o apelido de “Velho Marinheiro”, sua passagem pela instituição permitiu-lhe viajar pelo mundo. No fim dos anos 1920, aportou na Inglaterra como chefe de máquinas do encouraçado “Minas Gerais” e aproveitou sua estadia para assistir ao máximo de futebol possível na terra dos inventores do esporte. Que estava, aliás, sendo quase reinventado naquela época, graças à nova lei do impedimento.

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Segundo a nova regra, estabelecida pela International Board em 1924 e colocada em vigor no ano seguinte, o atacante estaria em posição legal caso houvesse apenas dois – não mais três, como antes – jogadores adversários entre ele e a linha de fundo. Essa alteração nas leis do jogo levou logo a uma das mais importantes revoluções táticas da história do futebol: a criação do sistema WM, com três zagueiros, em substituição ao tradicional 2-3-5, ou “pirâmide”.

A novidade foi introduzida pelo lendário Herbert Chapman, primeiro no Huddersfield e depois no Arsenal, na segunda metade daquela década. Em suas várias visitas à Inglaterra, Gentil Cardoso teve a raríssima oportunidade, como estrangeiro, de observar a revolução tática tomando forma, numa época em que, embora disputado praticamente no mundo inteiro, o futebol nem sonhava em se tornar um jogo tão globalizado nos métodos.

Logo que voltou da primeira viagem, Gentil assumiu o comando do Syrio e Libanez e utilizou o pequeno clube de colônia da Zona Norte do Rio como cobaia para suas experiências com o que havia aprendido lá fora. Primeiro foi a preparação física, com a adoção da chamada ginástica sueca, em vez de simplesmente colocar os jogadores para correr pelos quarteirões do campo da Rua Desembargador Izidro. Bem preparado, o time começou a surpreender.

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No campeonato de 1930, o Syrio chegou a golear duas vezes o Fluminense em Laranjeiras (4 a 2 no turno e 4 a 1 no returno) e aplicar 6 a 1 no Flamengo. Mas os dois gigantes viviam fase péssima, caindo pelas tabelas. O resultado que chamou a atenção mesmo foi um placar magro na partida do returno contra o Vasco, atual campeão e favorito ao bi: um solitário gol de Almeida derrubou os cruzmaltinos no campo do São Cristóvão, em Figueira de Melo.

Ao fim do campeonato, aquela derrota pesaria: o Vasco de Jaguaré, Brilhante, Itália, Fausto dos Santos e Russinho terminaria um ponto atrás do campeão Botafogo, que encerraria ali um jejum de 18 anos na competição. O Syrio de Gentil terminou na sétima colocação entre 11 clubes, mas faria ali sua despedida, fechando o departamento de futebol e, dentro de não muito tempo, as portas. Mas o treinador não ficaria muito tempo sem trabalho.

Lapidando o Diamante

Gentil tomou o rumo da Leopoldina, desembarcando com armas, bagagens e um punhado de jogadores promissores no Bonsucesso. Entre os novatos talentosos trazidos por ele para o clube rubroanil estava um certo Leônidas da Silva, o qual conhecera no Syrio. Seu parceiro de ataque, porém, já estava no clube: era o jovem Gradim. Juntos, barbarizariam as defesas adversárias em uma campanha marcante no campeonato de 1931, com Gentil no comando.

A escalação provocava muitas risadas: Medonho, Cozinheiro e Heitor; Lolô, Oto e Nico; Catita, Rapadura, Gradim, Leônidas e Prego. Mas os adversários não tardaram a perceber que não era tão engraçado assim enfrentar o time de Gentil. Embora terminasse no mesmo sétimo lugar do Syrio no ano anterior, o Bonsucesso teve o melhor ataque do torneio, marcando incríveis 58 gols em 20 jogos – nenhum outro time, grande ou pequeno, chegou perto dos 50.

No começo do ano seguinte, o time voltaria a impressionar, agora em gramados paulistas. Em 29 de janeiro, o rubroanil foi a Santos e goleou a Portuguesa Santista por 6 a 0. Dois dias depois, era a vez de enfrentar o Palestra Itália (que naquela temporada iniciaria um tricampeonato estadual) no Parque Antártica. Superior durante toda a partida, o time de Gentil venceu por 3 a 1, gols de Miro, Leônidas e Gradim, tornando-se o primeiro carioca a vencer no estádio.

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No Bonsucesso, Gentil seria o primeiro treinador do futebol brasileiro a aplicar o WM, recuando o médio Oto, um dos jogadores mais populares do rubroanil, para o centro da defesa. E, no fim de 1932, a dupla Gradim-Leônidas chegaria à Seleção Brasileira como destaques da histórica conquista da Copa Rio Branco, um dos momentos de afirmação do futebol brasileiro, ao bater os uruguaios campeões do mundo dentro do Estádio Centenário, em Montevidéu.

Autor dos dois gols na vitória brasileira por 2 a 1 sobre os uruguaios, Leônidas voltaria consagrado. De Gentil, admirador de primeira hora, o atacante ganharia o apelido ao qual ficaria eternamente associado. Com frequência, o treinador se referia a ele como uma “pedra preciosa a ser lapidada”: um Diamante Negro. Gentil encerraria seu primeiro ciclo no Bonsucesso em 1933, ao se mudar para o vizinho Olaria. No ano seguinte, já estava no America.

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Em Campos Sales, o treinador teria sua primeira experiência em um dos clubes grandes do futebol carioca de então, e não só isso: era também o primeiro negro a ocupar o cargo numa agremiação daquele porte. Porém, sua passagem seria curta: o America trouxe sete jogadores argentinos de uma vez, algo que desagradou o treinador, e ele pediu as contas. Voltou ao Bonsucesso para mais duas temporadas antes de ser transferido ao Rio Grande do Sul pela Marinha.

Nos três anos de sua experiência gaúcha, Gentil não largou o futebol: comandou o Riograndense em 1937 (onde foi campeão citadino e do interior e vice estadual) e o Cruzeiro de Porto Alegre. Enquanto isso, desembarcava no Rio o técnico húngaro Izidor “Dori” Kürschner, trazido por José Bastos Padilha, presidente do Flamengo, com a incumbência de reformular o futebol do clube e colocá-lo em linha direta com o que havia de mais moderno na Europa.

O “moço preto” e o “moço branco”

Debaixo do braço, Kürschner trazia o WM, agora plenamente difundido não só na Inglaterra como por todo o Velho Continente. O mesmo WM que Gentil rascunhara no Bonsucesso com base em suas observações de viagens. Os métodos do húngaro, no entanto, dividiriam opiniões tanto na imprensa quanto entre os dirigentes e até os jogadores. Incompreendido, Kürschner deixaria o clube em setembro de 1938, um ano e cinco meses após ter sido contratado.

Entrava em cena então aquele que se tornaria – involuntariamente – o maior antagonista de Gentil ao longo dos anos 1940 e 1950, o auge de ambas as carreiras. Ex-jogador do Flamengo e auxiliar de Kürschner, Flávio Costa assumiu o comando do time rubro-negro após a saída do húngaro e foi logo vencendo o título carioca de 1939, encerrando um jejum de 12 anos dos rubro-negros, ainda que sem preservar de início o WM do húngaro.

Com efeito, entre aquele ano e o de 1950, Flávio se tornaria o treinador mais vitorioso do futebol carioca no período, levantando quatro títulos com o Flamengo (o de 1939 e o tricampeonato de 1942/43/44) e, mais adiante, outros três com o Vasco (em 1947, 1949 e 1950). Também passaria boa parte da década à frente da Seleção Brasileira, com a qual faturaria o Campeonato Sul-Americano de 1949, mas ficaria com o vice na Copa do Mundo de 1950.

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Gentil, por sua vez, ingressou na Escola Nacional de Educação Física assim que voltou ao Rio e tirou diploma de técnico de futebol, somando-se ao que já tinha como engenheiro. Mesmo assim, só o velho Bonsucesso lhe daria uma nova oportunidade, na qual se sustentaria até 1941. Para ele, era mais um indício do grande entrave colocado em sua carreira impedindo que pudesse ser alçado a posições de mais prestígio: o preconceito racial.

Gentil se incomodava não só com o fato de não ter seu trabalho reconhecido – mesmo com todo o seu vasto conhecimento de futebol e sua formação – mas também por não ser absolutamente levado a sério. E em referência a essa maneira como era visto, apelidara a si próprio de “moço preto dos pequenos”, em uma oposição ao “moço branco dos grandes”, que era Flávio Costa (mais tarde, Zezé Moreira receberia o mesmo tratamento).

Até que surgiu uma nova oportunidade no America, em 1942. Só que os rubros haviam começado a década muito mal, em profunda crise técnica e financeira. No Carioca de 1941, sequer tinham se colocado entre os seis clubes que avançaram para o terceiro e quarto turnos. Pois Gentil tratou de arregaçar as mangas e trabalhar arduamente para construir um time que aos poucos, ano após ano, foi melhorando as campanhas e subindo na classificação.

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Dos juvenis e aspirantes, puxou nomes como o goleiro Osni do Amparo (irmão de Eli do Amparo, do Vasco e da Seleção), o centromédio Danilo Alvim e o ponta-esquerda Jorginho, que integraria um histórico ataque rubro também formado por China, Maneco, César e Lima, e que recebeu o apelido de “Tico-Tico no Fubá” pela sucessão de toques curtos e rápidos nas tramas ofensivas. Em 1945, o America chegaria ao terceiro lugar no Carioca.

Depois de reerguer a equipe tijucana, Gentil foi chamado para recuperar o Fluminense, que, sob o comando do uruguaio Héctor Cabelli, havia terminado o certame de 1945 quatro pontos atrás do próprio America. E já de saída, ao ser apresentado, lançou a máxima: “Deem-me Ademir e lhes darei o campeonato”. Aos 23 anos, destaque do Vasco no título de 1945, o atacante estava perto do fim de seu contrato com o clube da Colina e insatisfeito com seu salário.

Promessa cumprida

Mas obviamente não seria tão fácil: titular da Seleção Brasileira e um dos maiores atacantes do futebol sul-americano da época, Ademir era pretendido por vários outros clubes, entre eles São Paulo, Corinthians e Peñarol. Mas, negociando direto com “Seu” Menezes, pai e procurador do craque, os dirigentes tricolores conseguiram trazer o jogador a Laranjeiras. E Gentil lhes entregou o campeonato, montando um ataque avassalador.

Com a linha formada por Pedro Amorim, Simões, Ademir, Orlando “Pingo de Ouro” e Rodrigues, o Tricolor marcou nada menos que 97 gols em 24 partidas. Goleou o Madureira por 9 a 3, o Bangu por 11 a 1 e o Bonsucesso por 8 a 3. Mas o certame, incrivelmente equilibrado, terminou sua fase regular com Fluminense, Botafogo, Flamengo e America empatados em pontos na liderança. Seria necessário um quadrangular em turno e returno para decidir o título.

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O Fluminense seguiu avassalador. Empatou com o Flamengo em 1 a 1 na primeira rodada, mas depois venceu todos os demais jogos, chegando a aplicar outra goleada impressionante: 8 a 4 no America. Curiosamente, no jogo que valeu o título, contra o Botafogo em São Januário, já em 22 de dezembro, o triunfo veio por um magro 1 a 0. E quem seria o autor do gol decisivo? Ademir, é claro, num chute violento que estufou as redes de Osvaldo “Baliza”.

O bicampeonato não veio em 1947: depois do decepcionante quinto lugar do ano anterior, o Vasco tirou o “moço branco” Flávio Costa do Flamengo e levou a taça com muita folga. Mas antes de deixar Laranjeiras, Gentil ainda prestou mais uma contribuição à história do Fluminense: fixou no time titular um goleiro de 20 anos de idade que viera do Olaria. Um certo Castilho. E o “Velho Marinheiro” seguiria aportando em outras paragens.

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Voltaria mais uma vez ao Bonsucesso, migraria para o futebol paulista para uma rápida passagem pelo Corinthians – deixou o time, líder do Paulistão, por se recusar a admitir interferências dos dirigentes alvinegros na escalação – e então treinaria o Olaria antes de ingressar no Flamengo em setembro de 1949, permanecendo até julho de 1950. Na Gávea, assim como em outros clubes, encontraria um momento bastante desfavorável.

O grande esquadrão tricampeão carioca do início da década envelhecera e não fora substituído a contento. Para piorar, o time havia acabado de perder Jair Rosa Pinto, defenestrado da Gávea sob acusações de falta de empenho, e durante o período do técnico no clube ainda assistiria à traumática saída de Zizinho para o Bangu. A Gentil, porém, caberia pelo menos um mérito: foi em sua passagem que Dequinha, centromédio rubro-negro histórico, chegou ao clube.

“Na outra encarnação devo ter sido um marajá muito perdulário, muito degenerado e muito seduzido pela cobiça. Agora estou pagando pelo que fiz”, declarou desapontado ao deixar a Gávea. Ainda em 1950, ele voltaria ao futebol gaúcho e ao Cruzeiro de Porto Alegre, antes de retornar para mais uma passagem pelo Bonsucesso no ano seguinte. Até chegar pela primeira vez ao Vasco, em 1952, no lugar de um ainda inexperiente Oto Glória.

A última glória do “Expresso”

No começo do ano anterior, o clube cruzmaltino havia perdido Flávio Costa, que retornara ao Flamengo atendendo ao pedido do novo presidente rubro-negro, Gilberto Cardoso. O Vasco que Gentil encontrou ao chegar em São Januário era um time considerado envelhecido e decadente, que terminara o certame de 1951 em quinto lugar. Barbosa, Augusto, Eli do Amparo, Alfredo, Danilo Alvim, Chico, seu velho conhecido Ademir: todos já com mais de 30 anos.

Gentil, por sua vez, chegava sob desconfiança: os dirigentes vascaínos simplesmente ainda não haviam se conformado com a saída de Flávio Costa. O apoio dos veteranos do time, porém, foi garantido logo no primeiro treino, com uma fabulosa aula tática no quadro-negro. Para completar a equipe, o treinador pediu apenas dois reforços: o ponta-direita Sabará, da Ponte Preta, e o zagueiro Haroldo, juvenil do Botafogo. Dos aspirantes, vieram Bellini e Vavá.

Aconteceu então o milagre: o time que se arrastara em campo em 1951 agora voava. Ao fim do campeonato, em 20 jogos, somaria 17 vitórias, dois empates e só uma derrota, para o Fluminense ainda na quinta rodada. O título – o último daquela equipe que entraria para a história como o Expresso da Vitória – chegaria com uma rodada de antecipação, ao bater o Bangu por 2 a 1 no Maracanã, com gols de Ipojucan e do garoto Vavá.

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Na última rodada, o Vasco bateu o Olaria por 1 a 0 em São Januário e recebeu as faixas de campeão. Gentil foi carregado por torcedores em êxtase e declarou: “Estou com as massas. E as massas derrubam qualquer governo”. Para os chamados “cardeais” vascaínos, comerciantes ricos da Rua do Acre, no centro do Rio, aquilo era uma “insolência inadmissível” por parte do “preto falador”. No dia seguinte, ele era demitido pelo presidente Cyro Aranha.

Durante todo o segundo turno do campeonato – no qual o Vasco venceu nove e empatou um dos dez jogos que disputou – Gentil conviveu com a sombra de Flávio Costa pairando sobre seu cargo. Com a saída do Flamengo acertada para assim que terminasse seu contrato, no fim de 1952, o “Moço Branco” já vinha conversando com dirigentes cruzmaltinos que sonhavam traze-lo de volta à Colina. Nem mesmo o título incontestável preservou Gentil no posto.

De lá, seguiu para o Botafogo, onde tentou repetir o que fizera no Fluminense em 1946: pediu a contratação do atacante Carlyle como condição ao título, mas a taça não viria – o Flamengo do paraguaio Fleitas Solich iniciava ali o seu tricampeonato. Mas pelo menos um feito de seu tempo em Laranjeiras ele conseguiu repetir: assim como havia feito em relação a Castilho, Gentil trouxe para o time um nome que marcaria época no clube e no futebol brasileiro.

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Era um ponta-direita que chegara ao elenco principal sem nem mesmo passar pelos juvenis ou aspirantes. Já havia sido recusado em peneiras no Fluminense, Vasco e São Cristóvão – onde sequer chegou a entrar em campo. Mas Gentil vislumbrou ali naquelas pernas tortas um talento fora do comum. Tanto que lhe encarregou de bater um pênalti logo em sua partida de estreia, contra o Bonsucesso. Por suas mãos, Garrincha virou titular do Botafogo.

Em Pernambuco, feitos memoráveis

Além do camisa 7, Gentil também lançaria naquele time do Botafogo os atacantes Dino da Costa e Vinícius, mais tarde negociados com o futebol italiano. O Alvinegro, porém, terminaria apenas na terceira colocação. Em 1955, o técnico trabalharia pela primeira vez em seu estado natal ao dirigir o Sport, que buscava o título estadual no ano de seu cinquentenário. Com um time quase inteiro trazido do futebol carioca, o objetivo foi alcançado.

O goleiro era o veterano Osvaldo “Baliza”, ex-Botafogo e Vasco. Na defesa estava outro nome de enorme experiência, Eli do Amparo, ex-Vasco. E no ataque estavam o ponta-direita Traçaia (que passara pelos aspirantes do Flamengo e pelo Botafogo), o meia-direita Naninho (ex-Vasco), o centroavante Gringo (ex-Flamengo e Olaria) e o meia-esquerda Soca (ex-Bonsucesso). Com esses jogadores, o Leão superou o Náutico nos três jogos decisivos do campeonato.

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Até o fim da década, Gentil também conduziria os rivais Santa Cruz (em 1959) e Náutico (em 1960) ao título estadual. No Timbu, quebrou barreiras: foi o primeiro negro a trabalhar no futebol do clube. Entre uma conquista e outra, em dezembro de 1959 Gentil chegou enfim à Seleção Brasileira, grande meta da carreira, convidado a dirigir o escrete no Campeonato Sul-Americano Extra, em Guayaquil, no Equador. Era, porém, uma seleção diferente.

A exemplo de outras experiências anteriores, com equipes regionais, o Brasil seria representado integralmente por atletas de clubes pernambucanos. O time acabaria apelidado posteriormente de “Seleção Cacareco”, numa alusão ao rinoceronte do Jardim Zoológico de São Paulo eleito vereador naquela cidade. Não era exatamente como Gentil gostaria de ter chegado ao escrete: “Só me chamam para comer jiló. Na hora da marmelada, escolhem outros”, protestou.

Ainda assim, ele faria um trabalho bastante digno. No torneio disputado por apenas cinco países, o Brasil estreou batendo o Paraguai por 3 a 2, três gols do atacante Paulo, do Náutico. Em seguida, caiu diante do Uruguai, que levava o time principal, por 3 a 0. No terceiro jogo, vitória sobre os anfitriões equatorianos por 3 a 1, de virada. Na despedida, derrota por 4 a 1 para a Argentina num jogo mais equilibrado do que o placar indica. E o Brasil terminou em terceiro.

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Na esteira da participação no Sul-Americano, Gentil ainda levou a seleção pernambucana – agora representando o estado – ao vice-campeonato brasileiro em 1959, numa das últimas edições da competição. No quadrangular decisivo em turno e returno, a equipe chegou a derrotar paulistas (campeões), cariocas e mineiros na Ilha do Retiro, aplicando inclusive um categórico 4 a 2 ao escrete bandeirante, com Pelé e tudo. Um feito memorável.

Entre seus trabalhos em Pernambuco, Gentil também esteve no Bonsucesso, substituindo Sylvio Pirillo à frente de uma equipe rubroanil que surpreendera no Carioca de 1955 ao intrometer-se entre os seis melhores, deixando o Botafogo de fora do terceiro turno. Mais adiante, dirigiu ainda o Bangu pela primeira vez, ficando em Moça Bonita por quase dois anos, entre março de 1957 e fevereiro de 1959, quando seguiu para a Ponte Preta.

A goleada e a zebra

Na década de 1960, a última da carreira, Gentil levaria o Paysandu ao bicampeonato paraense em 1961 e 1962, fazendo com que o Papão recuperasse o posto de maior campeão do estado, além de comandar também a seleção do Pará. De lá, partiria para sua única experiência europeia, chegando ao Sporting de Portugal em julho de 1963. Sua passagem não duraria até o fim daquela temporada, mas Gentil deixaria sua marca na história.

Já de saída conquistaria a Taça de Honra, competição disputada entre os clubes lisboetas e que precedia o campeonato. Na decisão, em 11 de setembro, o Sporting bateu o Benfica por 3 a 0 no estádio do Restelo. E em novembro, sob seu comando, os Leões aplicariam a maior goleada da história das copas europeias, ao surrar o APOEL, do Chipre, por 16 a 1 no Alvalade, pela Recopa – título que os alviverdes levantariam ao fim daquela campanha.

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Gentil, porém, já não era mais o treinador do Sporting quando da única conquista continental do clube. Havia sido demitido em março de 1964, após empate em casa com o Olhanense por 1 a 1, em meio a atritos entre seu auxiliar brasileiro Jair Raposo e os jogadores e dirigentes lusos, e ainda sentindo a insatisfação dos torcedores com a campanha irregular na liga, que logo levou os Leões a serem descartados das possibilidades de título.

De Portugal, Gentil viria para a Portuguesa, a carioca – mas que naquela época ainda não tinha sede na Ilha do Governador. No clube rubro-verde, o treinador entraria mais uma vez para o anedotário do futebol brasileiro, antes de uma partida contra o Vasco logo pela quarta rodada do Carioca de 1964, disputada no estádio de Laranjeiras, em 23 de julho. Indagado por um repórter, Gentil lançou seu prognóstico para a partida: “Vai dar zebra”.

A referência ao animal, que não faz parte da lista dos 25 do jogo do bicho, queria dizer que um resultado considerado improvável ou impossível aconteceria. O jargão já era utilizado no jogo de azar, mas nunca tinha sido adotado no meio do futebol. E, com a bola rolando, não deu outra: a Lusa carioca derrotou os cruzmaltinos por 2 a 1, gols de Tião e Inaldo (Mário descontou para o Vasco), na primeira “zebra” ocorrida nesses termos na história do esporte.

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Dali em diante, Gentil começaria a rodar, acostumando-se a passar por mais de um clube por ano. Em 1965, esteve na Desportiva, no America e no Bangu. No ano seguinte, voltaria ao Santa Cruz e em 1967, treinaria o Campo Grande antes de ter uma segunda e rápida passagem pelo Vasco. Em 1968, andou de novo pelo Paysandu antes de ter outra experiência no exterior, comandando o El Nacional, de Quito. E no fim de 1969, assinaria com o São Cristóvão.

Aquela era uma verdadeira volta às origens. Embora sempre tivesse se declarado torcedor do Bonsucesso, Gentil tinha carinho especial pelo clube cadete, onde iniciara sua vivência no futebol como jogador. No quadro-negro do vestiário, escreveu a mensagem: “Voltei, aqui é o meu lugar”. Mas o aguardado retorno não chegaria a se concretizar por completo: um problema de saúde acabaria impedindo Gentil de assumir efetivamente o comando do time.

E o mesmo problema, as complicações de uma úlcera gástrica, levaria o treinador a falecer no Rio em 8 de setembro de 1970. Ao aportar no Sporting, afirmou à imprensa lusa: “Sou o técnico mais antigo do mundo. Quando partir, quero deixar escola”. Seu perfil como treinador e pessoa sem dúvida gerou muitos herdeiros. Poucos, porém, também souberam imitá-lo no conhecimento e na sagacidade que o colocaram como um dos gigantes da história do futebol brasileiro.

Além de colaborações periódicas, quinzenalmente o jornalista Emmanuel do Valle publica na Trivela a coluna ‘Azarões Eternos’, rememorando times fora dos holofotes que protagonizaram campanhas históricas. Para visualizar o arquivo, clique aqui. Confira o trabalho de Emmanuel do Valle também no Flamengo Alternativo e no It’s A Goal.

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