Zerozero
·07 de dezembro de 2023
«Fui um alvo fácil do racismo, por isso agredi um adepto com um soco»

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·07 de dezembro de 2023
Johan Cruyff, pensador e génio, treinador e pai, lançou Stanley Menzo na baliza do Ajax em 1985. Tornou-o no 11º futebolista de campo, numa altura em que as funções dos guarda-redes eram muito mais limitadas.
O que era, afinal, o sweeper-keeper? «Era mais um jogador de campo, interveniente na construção de jogo, participativo, um futebolista com luvas.»
Esse poderoso Ajax, moldado na mente obsessiva de Cruyff, representava o 4x4x3. Não é gralha, nem lapso. Basta ver a equipa usada na final da Taça das Taças em 1987:
Menzo (GR), Silooy, Verlaat e Boeve; Rijkaard, Wouters, Winter, Mühren; Van’t Schip, Van Basten, Witschge.
Cruyff foi com Menzo de 85 a 88, saiu para Barcelona e deixou o legado de bem jogar. Stanley fez 293 jogos oficiais pelo Ajax, ganhou duas provas europeias, fez seis jogos pela Holanda e esteve no Mundial de 1990 e no Europeu de 1992.
Acima deste palmarés de ouro, apenas o combate contra o racismo. A entrevista ao zerozero, uma hora de conversa, passa por isto e por nomes inesquecíveis, antigos camaradas de Menzo. Van Basten, Gulllit, Bergkamp…
Tudo a partir de Aruba, pequena ilha do Caribe ao largo da costa da Venezuela, território ultramarino do império neerlandês. Um paraíso de 102 mil almas.
Esta é a PARTE II da conversa.
Na PARTE I, Stanley Menzo fala sobre a ligação a Roger Schmidt na China e de um «mini-diabo» chamado Rui Barros.
zerozero – Em 1994 perdeu a titularidade em Amesterdão e mudou-se para o PSV. Sair do Ajax para o maior rival…
SM – É como trocar o Benfica pelo FC Porto em Portugal. Não fui bem aceite pelos adeptos do PSV e passei a ser um traidor para os do Ajax. Na Holanda, ninguém gostava do Menzo nessa altura (risos).
zz – Porquê o PSV? Era natural o aparecimento de problemas.
SM – Boa pergunta. Em 1994 já não fui ao Mundial e meti na cabeça de que tinha de voltar à seleção. No Ajax passou a ser impossível jogar, por culpa de um menino chamado Van der Sar, e no PSV havia um lugar para agarrar. Mas nunca olharam para mim da forma certa. Depois de uma derrota pesada contra o Ajax [1-4, 23 de outubro de 1994] a atmosfera passou a ser insuportável. Estava na baliza do PSV e eram os adeptos do Ajax a cantar o meu nome… eh pá, como é que alguém gere isso?
zz – Por falar em insuportável, a sua biografia «Menzo», lançada há poucos anos, fala muito sobre racismo e a atmosfera nos estádios nos anos 80 e 90.
SM – Na altura em que me tornei titular na baliza do Ajax, não havia muitos guarda-redes negros nas equipas de topo europeias. Eram poucos, quase nenhum. E eu estava ali parado na baliza, à frente da bancada dos adeptos adversários. ‘Macaco’ era a coisa mais simpática que ouvia. Imaginem as outras.
zz – Como é que geria as emoções para suportar isso, durante duas horas?
SM – Não sei como conseguia jogar. Só o meu amor ao futebol é capaz de explicar isso. Ia para a baliza e já sabia que me iam atirar bananas. O racismo continua presente na nossa sociedade, mas nos anos 80 era uma prática socialmente aceitável.
zz – Os colegas do Ajax e o clube apoiavam-no nessa luta?
SM – A mentalidade não era essa. Eu engolia os insultos e seguia em frente. Não havia psicólogos e os media não estavam preocupados com essas demonstrações.
zz – Apesar de tudo, em 2023 o cenário é menos grave?
SM – Depois de saber dos resultados nas eleições dos Países Baixos e da Argentina [vitória de candidatos da extrema direita] é-me impossível dizer que sim, que as coisas estão melhores. Mas não há dúvidas de que uma boa parte da sociedade já combate o racismo da forma que tem de ser combatido. Incluindo a UEFA e a FIFA. Nesse aspeto, os passos dados foram encorajadores.
zz – A sua biografia serviu como catarse?
SM – Não foi fácil relatar essas situações, porque o cérebro recupera informações que estão ali adormecidas. Eu vejo a questão do racismo de determinada maneira agora, de uma forma que não via em 1988. Espero que tenha ajudado outras pessoas a perceberem o que não se deve fazer num estádio, num café, numa rua. Há comportamentos e comentários que têm de acabar. Não pode haver complacência com políticas xenófobas. No meu tempo só tive um colega guarda-redes negro, o Lloyd Doesburg.
zz – No Ajax?
SM – Sim, é normal que não se lembrem dele. O Lloyd morreu em 1989, num acidente de avião no Suriname. E eu devia estar nesse voo… bem, fomos fazer um jogo lá e eu acabei por ir com outro colega, o Hennie Meijer, um dia mais cedo. Morreram 176 pessoas. O funeral do Lloyd foi um dos dias mais tristes da minha carreira. O outro foi quando agredi um adepto abusador. Um racista, não há outro nome.
zz – O que se passou, em concreto?
SM – Foi em novembro de 1987, logo depois da derrota contra o FC Porto. Numa visita ao Haarlem. Tornei-me num alvo fácil do racismo, Eu estava a ir do balneário para o autocarro, com um saco, e apareceu um tipo. Perguntou-me se eu levava bananas no saco, a gozar. Por isso, infelizmente, agredi-o com um soco. Ele saiu dali sem um dente e o nariz partido. Eu saí destruído emocionalmente. Não pensei, reagi com a raiva que na altura me dominava.
zz – Falemos do seu Ajax. O novo treinador é um velho conhecido.
SM – O John [van’t Schip], sim. Fomos colegas no Ajax, na seleção e depois na equipa técnica do Marco van Basten, no Mundial de 2006. O Ajax precisava de um nome forte, com história, para impor respeito e ordem. Sei que ele tem boas ideias sobre o jogo e é o homem certo para colocar um travão neste desastre.
zz – Consegue explicar esse «desastre»?
SM – A saída do Erik ten Hag e do Marc Overmars ajudam a explicar. A direção reagiu mal, não soube escolher bem, senti uma luta pelo poder que nunca tinha visto no clube. O mau ambiente alastrou-se à equipa, os plantéis perderam algum nível. Quando uma equipa entra numa maré negativa, demora algum tempo até sair dela. Mas o Ajax é um gigante e acredito que agora iniciámos um novo ciclo, de retoma.
zz – O FC Porto contratou o Jorge Sánchez ao Ajax. Conhece-o bem?
SM – Sim, claro, vejo os jogos todos do Ajax. Teve azar no ano em que chegou. É internacional mexicano, tem de ter qualidade, mas a equipa tremia tanto que ninguém sobrevivia. No Porto vai ter mais um ano na Europa, jogar a Champions e só pode melhorar. Gostava da coragem dele, metia o pé em qualquer jogada.
zz – Está a chegar o Europeu de 2024. Que impressão tem dos guarda-redes de Portugal?
SM – O Rui Patrício conheço bem, não me esqueço da exibição dele na final de 2016 em Paris. É experiente, sólido, garante estabilidade às equipas onde joga. Como se chama o miúdo que está a jogar?
zz – Diogo Costa.
SM – Joga no FC Porto, não é? Eu defrontei o Vítor Baía, foi dos guarda-redes mais elegantes que conheci. Olho para o Diogo e vejo muito do Vítor ali. Se não tiver azar com lesões, acho que pode estar no top3 mundial nos próximos dez anos.
zz - Falta falar sobre Caribe. Foi selecionador de Aruba e do Suriname, que retrato faz desse futebol?
SM - As pessoas são muito mais calmas, querem paz e sossego (risos). Isso é transmitido ao futebol. As infraestruturas são pobres, há mais areia do que relva, e isso torna o desafio ainda maior. Posso dizer que o talento natural destes jogadores é ótimo e o meu objetivo foi atrair jogadores que estão na Europa e que têm origens caribenhas. É desafiante, por todos os motivos, mas sei que se um dia levasse Suriname ou Aruba a um Campeonato do Mundo passaria a ser o melhor treinador do planeta.
[Leia AQUI a Parte I da entrevista a Stanley Menzo]