Fim de marca e de ciclo: susto contra o Haiti antecipou queda precoce da Itália na Copa de 1974 | OneFootball

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·15 de junho de 2024

Fim de marca e de ciclo: susto contra o Haiti antecipou queda precoce da Itália na Copa de 1974

Imagem do artigo:Fim de marca e de ciclo: susto contra o Haiti antecipou queda precoce da Itália na Copa de 1974

Vice-campeã mundial em 1970, a Itália chegou à Copa do Mundo de 1974 como uma das grandes candidatas ao título da competição, disputada na Alemanha Ocidental. A estreia, contra a frágil e estreante seleção do Haiti, poderia ser a oportunidade de fazer um ótimo resultado e enviar um sonoro recado para as demais concorrentes ao renovado troféu do torneio. Porém, apesar da vitória sobre os caribenhos, a partida ficaria eternizada pelo fim de uma marca histórica e por ter evidenciado problemas internos que levariam à precoce eliminação da Nazionale e até seriam relatados em livro.

A partida contra o Haiti começou muito antes de a bola rolar – e algumas das questões que permearam a trajetória da Itália na Alemanha Ocidental tinham contexto relacionado a situações passadas dentro e fora dos gramados. Mantido no comando da Nazionale após o segundo lugar no Mundial de 1970, Ferruccio Valcareggi, que também havia levado a seleção ao título europeu de 1968, confiava plenamente nos maiores destaques dessas duas campanhas e optou por seguir estruturando a seleção com esta base, ainda que estes atletas estivessem beirando os 30 anos ou já fossem balzaquianos.


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No frigir dos ovos, oito dos convocados para a Copa de 1974 haviam participado das grandes competições citadas acima. Valcareggi voltou a chamar os goleiros Dino Zoff e Enrico Albertosi; os defensores Giacinto Facchetti e Tarcisio Burgnich; o meia Antonio Juliano; os meia-atacantes Sandro Mazzola e Gianni Rivera e o atacante Luigi Riva. Já o centroavante Roberto Boninsegna integrou apenas o plantel que viajou ao México, em 1970.

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A Itália de Valcareggi foi escalada com vários veteranos em sua estreia na Copa de 1974, contra o Haiti (STAFF/AFP/Getty)

A preparação da Itália começou em Coverciano, centro de treinamentos oficial da FIGC, e continuou em Ludwigsburg, na Alemanha Ocidental. Cinco cabeças compunham o estafe que organizava a concentração: além de Valcareggi, tinham voz Artemio Franchi, presidente da Federação Italiana de Futebol; Franco Carraro, chefe da delegação e responsável pela área técnica; Italo Allodi, diretor de seleções; e Fino Fini, médico da Nazionale e diretor do CT. Eram muitos generais para poucos soldados, além de perfis diferentes de gestão em coexistência. Essa confusão pode ter atrapalhado o percurso azzurro.

A trajetória da Itália também foi influenciada por uma novidade na Serie A. Em 1974, a competição teve uma campeã inédita: a Lazio, que tinha ambiente muito atribulado, com direito a dois vestiários separados para diminuir atritos entre facções de um elenco estourado, recheado de jogadores que andavam armados. Valcareggi não podia fechar os olhos para o sucesso da equipe romana e decidiu levar alguns atletas biancocelestes para a Copa do Mundo – o artilheiro Giorgio Chinaglia e o líbero Giuseppe Wilson, de um dos grupos dos aquilotti, e o meia Luciano Re Cecconi, do outro. Tecnicamente, fazia sentido. Mas, ao mesmo tempo, a convocação trazia riscos comportamentais, devido à personalidade forte do trio. Era uma bomba-relógio prestes a estourar.

O scudetto da Lazio colocava a hegemonia dos clubes do norte na berlinda. O terceiro lugar do Napoli, que tinha Juliano como seu capitão, também era uma evidência de que algumas coisas estavam mudando. Para o meia partenopeo, o contexto era simples: Valcareggi tinha o dever de fazer com que jogadores dessas equipes fossem titulares e que atletas de Inter, Juventus e Milan perdessem seu lugar. Totonno, contudo, não externou o seu pensamento de forma muito polida e, ao questionar as escolhas do técnico e, consequentemente, sua autoridade, inaugurou uma crise em Coverciano.

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Françillon, goleiro do Haiti, acabou sendo consagrado pela grande quantidade de chances desperdiçadas pela Itália (imago/WEREK)

Allodi, ex-diretor de Inter e Juventus, habitualmente diplomático e negociador, se irritou com Juliano e defendeu seu corte por indisciplina. Já Carraro, ex-presidente do Milan, deixou de lado seu estilo intransigente e preferiu colocar panos quentes na situação. Giancarlo De Sisti, que integrou os elencos de 1968 e 1970, chegou a ficar de prontidão para assumir a vaga do napolitano, mas a visão do antigo cartola rossonero prevaleceu e Totonno não sofreu uma punição severa. Outro erro, provavelmente. A falta de exemplo foi tomada como convite ao descumprimento de regras e a preparação em Ludwigsburg foi marcada pela ausência de foco e pela abundância de regalias, iguarias e atividades lúdicas como passatempo.

Até então, porém, todas essas questões eram minimizadas por uma bela trajetória de 1973 até as vésperas da Copa de 1974. A Itália havia conseguido vitórias categóricas sobre Brasil, Inglaterra (duas vezes) e Suécia, além de outros bons resultados contra seleções menos expressivas à época. Principalmente, não sofria gols desde setembro de 1972, quando bateu a Iugoslávia por 3 a 1, em Turim. Zoff, aliás, detinha o recorde absoluto em minutos sem ser vazado. Entretanto, o 0 a 0 com a Áustria e a péssima atuação em Viena, num amistoso realizado na semana que antecedeu a estreia no Mundial, deveriam ter servido de alerta para a queda de rendimento da Nazionale. Tais evidências não foram levadas em conta.

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Riva teve chances de marcar, principalmente na etapa inicial, mas não conseguiu balançar as redes naquela Copa do Mundo (STAFF/AFP/Getty)

Considerando este contexto, Itália e Haiti entravam no gramado do Olympiastadion, em Munique, no dia 15 de junho de 1974 – simultaneamente, Polônia e Argentina se enfrentavam no Neckarstadion, em Stuttgart. Em seu time titular, Valcareggi deu espaço a seis dos veteranos citados: Zoff, Burgnich, Facchetti e Riva, além de Mazzola e Rivera, que finalmente jogavam juntos, após a malfadada staffetta (rodízio, em italiano) de 1970. Completavam o time os defensores Francesco Morini e Luciano Spinosi, os meias Romeo Benetti e Fabio Capello, e o atacante Chinaglia.

Muito superior ao Haiti, a Itália impôs o seu jogo desde os primeiros instantes. Entretanto, consagrou o goleiro Henri Françillon ao desperdiçar uma quantidade industrial de gols – o arqueiro, por sua vez, acabaria cavando uma transferência ao 1860 Munique local, que disputava a segunda divisão alemã-ocidental na época.

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Os atacantes da Itália não fizeram uma grande Copa em 1974 (imago/Frinke)

Concentrando as suas ações em Rivera, aberto na esquerda, e Mazzola, que atuava no flanco oposto e tentava centralizar mais as jogadas, a Itália produziu um verdadeiro bombardeio contra a baliza caribenha. O ponta-direita começou com um belo sem-pulo, que foi rebatido por Françillon. Depois, o arqueiro foi reativo em fortes chutes de Facchetti e Chinaglia e numa cabeçada à queima-roupa de Riva. O craque do Cagliari ainda efetuou dois arremates por cima do gol. A Nazionale finalizou simplesmente 12 vezes, enquanto o Haiti só levou algum perigo perto do intervalo, com um disparo rasteiro de Philippe Vorbe – curiosamente, o único jogador de pele clara da seleção bicolor.

Se a etapa inicial foi de domínio absoluto da Itália, a segunda começou com uma surpresa. Logo na volta do intervalo, Vorbe encontrou um grande passe em profundidade para Emmanuel Sanon, atacante isolado do Haiti. No contragolpe, o camisa 20 ganhou de Spinosi, que perdeu o equilíbrio, e ainda driblou Zoff antes de colocar na casinha e encerrar, de forma surpreendente, o recorde estabelecido pelo arqueiro. Foram 1142 minutos sem ser vazado. Até hoje, a marca não foi superada. Porém, o seu encerramento justamente diante dos grenadiers era um indício do que estava por vir: a Nazionale, que passou 12 partidas com redes intactas, sofreria gols em todos os jogos da Copa de 1974.

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Rivera era um dos principais articuladores da Itália, enquanto Vorbe exercia papel similar no Haiti (imago/WEREK)

Com a vantagem inesperada do Haiti, a Itália passou a alçar bolas à área adversária na busca de encontrar o empate contra um rival que já jogava fechadinho. Não demorou muito, dessa vez. Apesar de algumas novas oportunidades desperdiçadas, sendo a melhor num cabeceio de Chinaglia, Rivera aproveitou a sobra de um cruzamento e enfiou o pé na pelota, sem dar a mínima chance a Françillon.

Depois do empate, a Itália seguiu pressionando em busca da virada e, ao mesmo tempo, continuou a perder chances – com a pontaria descalibrada, Riva e Chinaglia faziam a torcida se angustiar e, por isso, Valcareggi colocou Pietro Anastasi no aquecimento. Apesar de um chute de Jean-Claude Désir, bem defendido por Zoff, a Nazionale mandava no jogo. E, aos 66, a insistência finalmente foi premiada com a vantagem no placar: conhecido por seus petardos, Benetti tentou um arremate em diagonal e contou com desvio decisivo em Arsène Auguste para virar o placar.

Logo após o segundo gol, Chinaglia perdeu mais uma chance inacreditável, dessa vez sem goleiro, e Valcareggi resolveu substituí-lo por Anastasi, dando início a uma crise pública. O atacante da Lazio demonstrou sua personalidade arredia ao deixar o gramado reclamando fortemente com o treinador, a ponto de gesticular e gritar que ele deveria tomar naquele lugar. A bomba-relógio estava para explodir e, após o jogo, seria montada uma operação para desarmá-la – chegaremos lá daqui a pouco.

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Ao fim da partida, Zoff felicitou Sanon por ter encerrado o seu recorde de minutos sem ser vazado (imago/WEREK)

Na reta final da partida, Anastasi recebeu de Riva e, de biquinho, finalizou no canto de Françillon e marcou o terceiro da Itália. Entretanto, desperdiçou outras duas oportunidades cara a cara com o arqueiro, sozinho. Seu colega de ataque também perdeu uma boa chance. No fim das contas, o jogo terminou em 3 a 1. Pouco, considerando o que os azzurri produziram. E insuficiente, pensando no saldo de gols, que poderia definir a classificação à segunda fase da Copa do Mundo. Na outra partida da chave, a Polônia fez 3 a 2 sobre a Argentina, adversária seguinte da Nazionale, que chegaria ao confronto precisando pontuar para seguir viva na competição.

Entretanto, antes de encarar a Argentina, em Stuttgart, a Itália teria que resolver o “caso Chinaglia”. Após o jogo contra o Haiti, houve séria confusão nos vestiários da Nazionale, que foi depredado pelo atacante, com socos em armários e garrafas de água atiradas contra portas e janelas, que tiveram vidros quebrados. Allodi quis cortar o polêmico centroavante e mandá-lo de volta a Roma, mas foi voto vencido outra vez. Tommaso Maestrelli, técnico da Lazio, foi convocado pela FIGC e teve que pegar um voo para a Alemanha Ocidental, no intuito de conversar com o seu jogador e acalmá-lo. O resultado? Uma coletiva do centroavante, em clima surreal, com um pedido de desculpas pouco convincente – como punição, a perda da vaga no onze inicial contra a seleção albiceleste, quatro dias depois.

Estes foram os capítulos iniciais da atribulada campanha azzurra na Copa de 1974, também retratados no livro Azzurro Tenebra, do célebre escritor Giovanni Arpino, enviado especial do jornal La Stampa para cobrir a competição sob uma perspectiva menos usual. Publicado em 1977, o romance narra o ceticismo do autor em relação à possibilidade de a seleção poder desempenhar um bom futebol no torneio e é considerado uma obra-prima da literatura italiana. A crônica de um fracasso anunciado, que resultaria no fim do do ciclo de Valcareggi e da maior parte de seus veteranos na Nazionale – apenas Zoff seguiria na equipe.

Itália 3-1 Haiti

Itália: Zoff; Burgnich, Morini, Spinosi, Facchetti; Mazzola, Capello, Benetti, Rivera; Chinaglia (Anastasi), Riva. Técnico: Ferruccio Valcareggi. Haiti: Françillon; Bayonne, Auguste, Nazaire, Jean-Joseph; Vorbe, Désir, Antoine, François; Saint-Vil (Barthélemy); Sanon. Técnico: Antoine Tassy. Gols: Rivera (52′), Benetti (66′) e Anastasi (79′); Sanon (46′) Árbitro: Vicente Llobregat (Venezuela) Local e data: Olympiastadion, Munique (Alemanha Ocidental), em 15 de junho de 1974

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