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Calciopédia

·18 de abril de 2024

Em 2004, um dérbi entre Lazio e Roma foi suspenso por boato sobre morte de um garoto

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No início e em meados da década de 2000, o futebol italiano viveu alguns momentos grotescos dentro e fora do campo. Tais acontecimentos só evidenciavam que a Serie A estava entrando em declínio e o Calciopoli, esquema de manipulação de resultados que eclodiu em 2006, é tido como o maior símbolo desse nefasto período. Outra ocorrência que marcou aqueles tempos foi a suspensão de um clássico entre as endividadas Lazio e Roma, em 2004, por causa de um boato que envolvia o homicídio de um garoto pela polícia, nos arredores do estádio Olímpico. O confronto entraria para os anais da história como “o dérbi do menino morto” e levantaria discussões sobre a decadência do esporte na Bota, as torcidas organizadas e a nova era das transmissões televisivas da modalidade.

A edição 2003-04 da Serie A começou sob a égide do chamado Decreto salva-calcio, publicado na véspera de Natal de 2002 pelo governo do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, então dono do Milan, e promulgado pelo parlamento italiano em fevereiro de 2003. O pacote tinha alguns incentivos fiscais e permitia que os clubes da Itália efetuassem o parcelamento de suas dívidas, de modo a diminuir o efeito dos prejuízos anuais em seus balanços contábeis e evitar falências.


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Os críticos do texto entendiam que ele simplesmente legalizaria fraudes contábeis e ainda apontavam para o fato de que legislação beneficiaria o próprio premiê Berlusconi, uma vez que a agremiação rossonera era uma das mais endividadas àquela altura. Inter (com perdas de 319 milhões de euros), Milan (242 mi), Roma (234 mi) e Lazio (215 mi) eram os clubes com finanças mais comprometidas – sem falar na Fiorentina, que estava em situação tão complicada que sequer conseguiu aproveitar a lei, indo à bancarrota em 2002. Porém, considerando que as receitas da dupla da Lombardia eram maiores do que a das adversárias da capital italiana, não há dúvidas de que o cenário era mais dramático para giallorossi e biancocelestes. A rigor, as arquirrivais da Cidade Eterna estavam à beira da falência em 2003.

A situação da Lazio era visivelmente mais complicada, porque já eram notórios os nefastos efeitos da gastança desenfreada do proprietário Sergio Cragnotti em busca de taças – que foram conquistadas – e de sua má gestão na multinacional Cirio, à qual os títulos da agremiação celeste na bolsa de valores estavam atrelados. Craques e jogadores que custavam caro, como Pavel Nedved, Juan Sebastián Verón, Marcelo Salas, Alessandro Nesta, Hernán Crespo, Gaizka Mendieta, Diego Simeone, Dejan Stankovic e Sérgio Conceição tiveram que ser vendidos. Não adiantou.

Cragnotti deixou a presidência da Lazio em janeiro de 2003, pouco depois de o mercado ter entrado em consenso sobre a incapacidade de a Cirio honrar com seus compromissos. Ugo Longo, que era advogado do magnata e integrante do conselho administrativo da agremiação, assumiu o timão do clube e conseguiu reduzir um pouco o seu endividamento através de duas ampliações de capital, sendo que uma delas foi vital para pagar salários atrasados dos jogadores e garantir a inscrição da equipe na Serie A 2003-04.

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Na volta para o segundo tempo, um boato espalhado fez com que o dérbi entre as endividadas Lazio e Roma fosse interrompido (New Press/Getty)

Em 21 março de 2004, a Lazio chegava ao Derby della Capitale de número 138 – ou 154, contando amistosos – num panorama nebuloso nos bastidores. A sociedade havia sido novamente recapitalizada, para evitar falência, as vendas de suas ações na bolsa estavam suspensas, Longo buscava um comprador para a agremiação e Cragnotti havia sido preso preventivamente, em fevereiro, pela acusação de bancarrota fraudulenta da holding que administrava a Cirio. Em campo, os jogadores honravam a camisa. A equipe treinada pelo ídolo Roberto Mancini dividia a quarta posição da Serie A com o Parma, também enrascado pela falência da Parmalat, e brigava por uma vaga na Liga dos Campeões. Na Coppa Italia, havia vencido a Juventus no jogo de ida da final – e, mais tarde, confirmaria o título.

E a Roma? Bem, o presidente Franco Sensi tinha a saúde debilitada e também procurava um comprador para a agremiação, que – mesmo endividada – conseguiu manter a base do scudetto de 2001, perdendo apenas veteranos até meados de 2004. Além disso, a Loba fez investimentos robustos após o título, adquirindo jogadores como Christian Panucci, Ivan Pelizzoli, Cristian Chivu e, principalmente, Antonio Cassano, que custou 50 bilhões de velhas liras, em 2001. Os adversários acusavam a equipe giallorossa, que ainda brigava por títulos e por vagas nas Champions League, de concorrência desleal. Afinal, devia mais de 100 milhões de euros ao fisco e mantinha ativos importantes.

No último dia útil para inscrição das equipes na Serie A 2003-04, a Roma não tinha liquidez necessária para formalizar o seu ingresso no certame. Para habilitar a Loba, a diretoria teve que se recapitalizar através de empréstimos e garantias fiduciárias, o que funcionou num primeiro momento. A posteriori, porém, um inquérito descobriu que as fidejussórias apresentadas pela agremiação – assim como as de Napoli, Cosenza, Spal e da Virtus Bologna, do basquete italiano – eram falsas. Em resumo, a participação desses clubes nas competições nacionais era irregular. Mas as sociedades eram consideradas parte lesada pelos supostos fiadores e o inquérito chegaria a essa conclusão anos depois.

Durante 2003-04, a Roma chegou perto de ser adquirida pelo bilionário russo Suleiman Kerimov, que mais tarde investiria no Anzhi Makhachkala. Diversos veículos de imprensa, porém, relataram que o negócio – aparentemente bem encaminhado – melou após Berlusconi telefonar para seu amigo Vladimir Putin, presidente da Rússia e aliado do magnata. O premiê italiano não gostaria de mais um adversário fortalecido do Milan.

Ao mesmo tempo, as dificuldades financeiras da Roma se agravavam e até o ídolo Francesco Totti podia se despedir, já que sua venda poderia ajudar a arrumar as contas dos giallorossi. Cobiçado pelo Real Madrid, havia recebido o aval para negociar com os merengues e, pela primeira vez, não descartou uma saída da Cidade Eterna: em entrevista à Rai, na véspera do clássico, o craque admitiu a possibilidade. Uma notícia com ares de anticlímax, ainda que a Loba fosse vice-líder da Serie A e dominasse o Derby della Capitale àquela altura. Eram nove partidas de invencibilidade, com última derrota registrada apenas em 2000, na temporada em que a Lazio ganhou o scudetto.

Como as duas agremiações não viviam momentos idílicos, as torcidas organizadas pegaram leve nas faixas provocatórias – a única mais jocosa era uma dos biancocelestes, mandantes naquela noite de domingo em fins de março, que ironizavam o fracasso nas negociações entre Sensi e Kerimov. Em campo, o primeiro tempo foi disputado, com as melhores oportunidades acontecendo em sua reta final: aos 40 minutos, uma bola colocada na trave por Stefano Fiore, da Lazio; na casa dos 45, a resposta da Roma, através de Totti, também explodiu no poste. Nas arquibancadas do lotado Olímpico, entretanto, um rebuliço já começava a ser percebido.

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A confusão de fora do Olímpico respingou em campo: a fúria nas arquibancadas deixou o ambiente inseguro para a prática do esporte (New Press/Getty)

As câmeras mostravam fumaça em alguns setores do estádio. Não era fogo, mas sim volumosas nuvens de gás lacrimogêneo que vinham de fora do Olímpico e causavam seus efeitos colaterais perturbadores em torcedores das duas equipes. A névoa indicava que a confusão entre ultras e policiais, que havia começado cerca de três horas antes do clássico, nas imediações do Foro Itálico, continuava a todo vapor. A batalha campal teve início com brigas entre organizados de Lazio e Roma, que se agrediam com garrafadas, pedradas, facadas e lançamentos de bombas e rojões, e depois ganhou ares de luta dos biancocelestes e giallorossi contra um inimigo em comum: o batalhão de choque.

Nos vãos entre as catracas e as arquibancadas, também houve alguma confusão, principalmente porque alguns torcedores queriam entrar no estádio sem pagar, e foram registrados danos patrimoniais ao Olímpico – como portões, grades e cadeiras quebradas ou banheiros vandalizados. Entretanto, tudo parecia um cenário de confusão aos quais as forças policiais da Cidade Eterna já estavam habituadas, considerando a rivalidade incandescente entre Lazio e Roma e o fato de o Derby della Capitale ser disputado à noite, quando a menor incidência de iluminação poderia dificultar a manutenção da segurança.

Só parecia, mesmo. Por volta dos 27 minutos do primeiro tempo, começaram a ecoar, entre as nuvens de gás lacrimogênio, os primeiros coros dos ultras das curvas Nord e Sud contra os policiais. Simultaneamente, à boca miúda, começou a circular nas tribunas a história de que um jovem havia sido morto pelos guardas. Uma criança, diziam alguns. Um adolescente de 16 anos, afirmavam outros. As versões sobre o falecimento também variavam: o motivo seria um golpe de cassetete na têmpora, uma granada fumígena arremessada, que bateu em sua nuca ou – a mais popular – o atropelamento por uma viatura. Ao fim do intervalo, os relatos já haviam sido difundidos por quase todos os setores do estádio.

As duas equipes voltaram para o gramado cobertas por sonoras vaias. Quem assistia o jogo de casa não entendia o que estava ocorrendo. Fabio Caressa, narrador da Sky, então, informou o seguinte aos telespectadores: as organizadas das duas agremiações haviam retirado bandeiras e faixas das arquibancadas. No código dos ultras, isso significa o acontecimento de uma tragédia. E havia um precedente no Derby della Capitale.

Em outubro de 1979, Vincenzo Paparelli, torcedor da Lazio de 33 anos, foi morto ao ser atingido no rosto por um dos três sinalizadores náuticos lançados por Giovanni Fiorillo, 18, que torcia para a Roma. O artefato atravessou todo o gramado do Olímpico, da Curva Sud à Nord, percorrendo mais de 250 metros, segundo a reconstituição feita pelos investigadores do crime, que ocorreu antes do início do clássico. Também seriam presos por participação no assassinato os giallorossi Marco Angelini e Enrico Marcioni, cúmplices na obtenção e no disparo dos fogos de artifício proibidos.

Quase 25 anos depois, se falava num morto no Olímpico. E todo o estádio parecia querer um desfecho diferente do que ocorreu no dérbi do assassinato de Paparelli, que foi realizado apesar de sua morte, num clima surreal, com protestos que iam desde o silêncio total a petardos atirados ao terreno de jogo. À época, a Federação Italiana de Futebol optou por manter o clássico, cujo placar seria de 1 a 1, com a justificativa de que mais incidentes poderiam ocorrer em caso de adiamento.

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Cassano foi um dos jogadores que manifestaram dúvidas sobre a possibilidade de o clássico continuar após a invasão de campo (New Press/Getty)

Em 2004, as torcidas não consideravam tal hipótese. Entoavam cânticos como “suspendam a partida!”, “fora!” e “saiam do campo!”, sem deixar de lado os gritos de “polícia assassina”. Entretanto, as estrelas do espetáculo que deveria estar em curso não sabiam de nada do que estava acontecendo nos arredores. O árbitro Roberto Rosetti até autorizou o reinício do confronto, mas choveram sinalizadores no gramado, de todos os setores. Os bombeiros os retiravam. E, imediatamente, outros caíam do céu.

Quando o jogo parou, três ultras da Roma saltaram da Curva Sud em direção ao gramado. Um deles, mais exaltado, se desgarrou dos colegas (que ficaram na pista de atletismo) e invadiu o campo para falar com o goleiro Ivan Pelizzoli. Em seguida, o capitão Totti e o brasileiro Emerson lideraram um grupo de jogadores giallorossi, em busca de diálogo com os organizados e de compreensão da situação. De perto, tudo era filmado e transmitido para o mundo inteiro – ou nem tanto, já que, para não terem o rosto mostrado, os torcedores empurravam os cinegrafistas e exigiam que eles abaixassem as câmeras.

Na conversa, os ultras avisaram aos jogadores que um torcedor havia sido morto nos arredores do estádio e ainda garantiram que falaram com a mãe do jovem. Ao mesmo tempo, um senhor de idade que parecia ser funcionário do Comitê Olímpico Italiano, que administra o estádio, dizia que o sistema de alto-falantes havia acabado de anunciar que a história não passava de boato. E, curiosamente, este é que foi o problema.

A questura, um dos órgãos responsáveis – segundo o ordenamento político italiano – pela segurança pública das cidades, utilizou o sistema de som do Olímpico para tentar acalmar os ânimos e negar qualquer falecimento fora do estádio, mas cometeu um erro na comunicação. “Circulou a notícia de que uma criança teria sido atropelada e morta por um carro da polícia. A notícia não tem fundamento”, declarou o locutor. Ao assumir categoricamente uma das versões do boato, a corporação deu um tiro pela culatra: como, devido a um histórico de corrupção, as instituições não têm muita credibilidade na Itália, o anúncio gerou desconfiança. Ou melhor, serviu como confirmação de que algo grave havia ocorrido.

Rosetti consultava os jogadores de ambas as equipes para saber a disponibilidade de retomada do clássico, considerando que as autoridades haviam informado que a história era infundada, mas eles também não confiaram plenamente no que dizia a questura – até porque os ultras afirmaram, falsamente, que tinham falado com a mãe do suposto garoto morto. Foi isso que declarou Franco Baldini, diretor esportivo da Roma, em entrevista concedida ao jornal Corriere della Sera, posteriormente ao acontecido.

As câmeras flagraram esta incerteza na boca de Antonio Cassano. Conversando com o árbitro, se mostrou contrário à retomada da partida: “se o que dizem for verdade, estaremos agindo como uns merdas [se jogarmos]”. As lentes também capturaram Totti, um filho de Roma, criado nas arquibancadas, dizendo que os ultras os matariam caso o clássico continuasse – os organizados, aliás, não o trataram com deferência no papo que tiveram, mas com tom ameaçador. Capitão laziale, Sinisa Mihajlovic, um durão que também conhecia as leis não escritas das arquibancadas e que havia presenciado os horrores da guerra na antiga Iugoslávia, tinha a mesma impressão. Ambos manifestaram isso a Rosetti.

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Protagonista na narrativa fantasiosa que levou à suspensão do clássico, a polícia foi contestada pelos ultras (New Press/Getty)

O Derby della Capitale já estava interrompido havia quase 20 minutos. No gramado, já estavam presentes até mesmo os chefes dos dois órgãos responsáveis pela segurança pública municipal – a questura e a prefettura –, que explicavam diretamente a Rosetti que nada havia ocorrido. Surgiu, então, um telefone celular, que foi entregue ao árbitro. Era Adriano Galliani, presidente da Lega Calcio, que, diante da inoperância dos prepostos do governo, assumia a responsabilidade e informava ao apitador que a partida estava suspensa. O cartola do Milan também comunicou a decisão a Baldini, ao técnico romanista Fabio Capello (que foi seu funcionário no clube rossonero) e a Oreste Cinquini, diretor esportivo da Lazio e proprietário do aparelho.

“Estava convencido de que era impossível continuar o dérbi, mesmo sabendo, através dos órgãos competentes, que a história do menino morto era um boato. Conversei com muitas pessoas que estavam no estádio e optei pelo menor dos males. Pedi ao árbitro para suspender o jogo”, afirmou Galliani ao Corriere della Sera. “Todas as pessoas com quem conversei me disseram que havia o perigo de os torcedores invadirem o campo caso a partida fosse reiniciada, e os jogadores também não queriam jogar”, completou. Como a decisão foi da Lega Calcio, organizadora da Serie A, nenhuma das equipes sofreu com a perda de pontos e o clássico foi adiado para uma nova data.

A decisão do presidente da liga foi criticada por Giuseppe Pisanu, ministro do Interior de Berlusconi – que, vale destacar era amigo de Galliani e seu patrão à época – e por seus subordinados na prefettura e na questura de Roma. Longo, mandatário da Lazio naquele momento, também não a apreciou. Mas o fato é que a confusão no Olímpico não acabou com o anúncio de que o dérbi tinha sido suspenso, como queriam as torcidas, o que sugere que poderia, mesmo, ter havido mais selvageria e um banho de sangue no Foro Itálico.

As equipes foram para os vestiários, mas Mihajlovic e Totti voltaram pouco depois, para informarem aos torcedores que permaneceram qual havia sido a decisão e para pedir que voltassem para casa em paz. Impossível. Havia pouca gente nas arquibancadas, porém grande parte do público ainda não havia deixado o Olímpico. Muitos dos responsáveis pelos portões de acesso haviam ido embora mais cedo, de modo a evitar que fossem tragados pela violência que estava por vir, e a saída da praça esportiva se tornou um caos.

Ao mesmo tempo em que foi ineficiente em controlar a evacuação do Olímpico, a polícia seguia reagindo de forma desproporcional no combate àqueles que procuravam briga, como antes do clássico. O resultado? Choviam bombas de efeito moral e granadas de gás lacrimogêneo, enquanto os ultras reagiam com depredação, barricadas com lixeiras e veículos incendiados. Muitos inocentes, incluindo torcedores que jamais haviam frequentado as curvas Nord e Sud ou organizados que não participaram da baderna, acabaram sendo vítimas do cenário de terror intensificado pela ação desmedida dos batalhões de choque.

O saldo oficial da batalha campal foi de 180 feridos, sendo 153 policiais – estima-se que o número de civis afetados tenha sido maior, pois muitos não procuraram os serviços de saúde e não foram contabilizados. No total, apenas 16 pessoas foram presas e indiciadas, somando as ocorrências registradas dentro e fora do Olímpico.

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Os capitães Totti e Mihajlovic precisaram falar com os ultras para acalmarem os ânimos no Olímpico (New Press/Getty)

Na época, a questura de Roma chegou a levantar a hipótese, corroborada por vários políticos e assumida caninamente como oficial por alguns jornais do país, de que os boatos da morte do jovem haviam sido espalhados propositalmente pelos ultras das duas equipes, que entraram em acordo. Segundo o órgão, o intuito seria provocar a desordem, desmoralizar as instituições e demonstrar a força das organizadas na sociedade e num contexto de futebol cada vez mais televisivo e de ingressos sempre mais caros. Com menor presença popular nos estádios, as torcidas tendiam a diminuir e também se enfraqueceriam economicamente.

Considerando que, àquela altura, as autoridades já tinham a ciência de que muitos chefes ultras eram – e são – envolvidos com o crime organizado e que parte das torcidas servem como forma de captação de mão de obra para os delinquentes e como braço econômico dos transgressores, a hipótese parecia fazer algum sentido. E ela serviu como um dos pontos de partida para as investigações.

Por exemplo, os neofascistas Irriducibili, da Lazio, eram comandados por Fabrizio Piscitelli, um personagem que se notabilizara pelas extorsões – inclusive a cartolas – e por ser ligado ao tráfico de drogas. Conhecido pelo codinome Diabolik, seria morto por rivais do crime em 2019. Na Roma, a torcida Boys, também de extrema direita, tinha como um de seus expoentes Daniele De Santis. Apelidado como Gastone, foi um dos invasores de campo na noite do dérbi de 2004 e já tinha fama nas arquibancadas por chantagear presidentes da Loba, ter sido detido por participação no esfaqueamento de um policial, em 1994, e por manter um covil fascista. Em 2014, foi condenado por assassinar a tiros o napolitano Ciro Esposito e, desde então, cumpre pena em regime fechado.

Entretanto, nem sempre hipóteses que pareçam ter alguma lógica são corroboradas por provas materiais. Mihajlovic e Totti, por exemplo, tiveram de prestar depoimento à polícia e negaram que tenha havido qualquer ameaça aos jogadores por parte dos invasores. E, ao fim das investigações sobre os incidentes no Derby della Capitale, a suspeita de complô entre os ultras de Lazio e Roma não se comprovou.

Dos 16 indiciados no início do processo, 11 tiveram seus casos arquivados e apenas cinco foram condenados – todos por terem usado de violência contra agentes públicos em serviço. Vale destacar que o potencial ofensivo de alguns dos crimes perscrutados no inquérito era considerado baixo e que, por isso, prescreviam em poucos anos. Considerando ainda a morosidade da justiça italiana, parte das acusações feitas pela promotoria sequer foi analisada pela justiça quando os julgamentos em primeira instância foram realizados, em 2013.

Sem dúvidas, os ultras saíram vitoriosos daquele episódio. Afinal, as condenações foram inexistentes ou ínfimas, a vontade das curvas subjugou os contratos de televisão e o dérbi teve mesmo que ser interrompido, prejudicando os lucros dos conglomerados de mídia e mostrando para o mundo, em tempo real, que a influência das organizadas era grande na capital italiana. Ademais, na época, havia, entre as torcidas, o consenso de que a TV e o sistema impediam que o futebol parasse quando era (ou deveria ser) necessário.

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Um mês depois da suspensão do dérbi, Lazio e Roma voltaram a se enfrentar – e, raramente, tivemos novos clássicos disputados à noite (AFP/Getty)

Houve Derby della Capitale depois que Paparelli ser assassinado, em 1979. Os corpos pisoteados na Tragédia de Heysel não adiaram a decisão da Copa dos Campeões entre Juventus e Liverpool, em 1985. Os milhares de mortos nos atentados terroristas aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, não fizeram a Uefa cancelar os jogos da Champions League daquele dia – numa dessas coincidências nefastas, Lazio e Roma foram as únicas equipes italianas que entraram em campo naquela noite, contra Galatasaray e Real Madrid, respectivamente. Semanas antes do clássico capitolino suspenso, em 11 de março de 2004, a própria Loba perdeu a ida das oitavas de final da Copa Uefa para o Villarreal, na Espanha, horas após bombas explodirem em três estações de Madrid, deixando 193 vítimas fatais. O show não podia parar.

Naquela temporada, a Itália entrava em um outro patamar no que diz respeito ao futebol como espetáculo televisivo. E olha que, ao longo da década anterior, Berlusconi, que era dono de emissoras de TV, já tinha conseguido efetivar muitas mudanças em benefício das transmissões no próprio país.

Inicialmente, o premiê e proprietário do Milan tinha conseguido convencer os presidentes dos outros clubes e a própria liga de que seria vantajoso desmembrar as rodadas da Serie A e criar mais faixas de horário para a realização de partidas. Surgiam, assim, os anticipi e posticipi: em suma, os jogos de sábado e domingo à noite, anteriores e posteriores ao grosso das jornadas, que ocorriam tradicionalmente às tardes dominicais. As transformações propostas pelo Cavaliere também se evidenciavam em contexto continental. Como, por exemplo, a introdução da fase de grupos na Champions League e a posterior expansão do torneio para 32 participantes neste estágio, com mais times dos principais campeonatos europeus. O objetivo era aumentar os valores dos contratos de venda dos direitos de transmissão para as televisões, o que resultaria ainda em mais receitas de publicidade.

Na Itália, a Juventus, equipe com mais scudetti e torcedores no país, estampou em suas camisas, entre 1998 e 2000, a marca da emissora TELE+ Digitale. Cinco anos depois, a patrocinadora da Velha Senhora foi autorizada pela Comissão Europeia a se fundir com a Stream TV e a dar origem à Sky Italia, no processo de entrada do ricaço conservador Rupert Murdoch no mercado da Bota. Tendo a bênção do então amigo Berlusconi – com quem romperia posteriormente – o australiano adquiriu os direitos de transmissão da Serie A e passou a transmitir o campeonato em seu canal por assinatura. Inclusive o fatídico Derby della Capitale, em horário nobre.

A boataria e a baderna na noite de domingo de 21 de março afetou de imediato os negócios de Murdoch e a audiência da Sky? É improvável. Mas a confusão dos ultras fez com que raramente o dérbi capitolino voltasse a ser realizado após o pôr do sol e em horário nobre: até 2024, foram disputados 46 clássicos e somente 15, por motivos de agenda e televisão, começaram quando já havia escurecido – dois deles, em virtude da pandemia de covid-19, não tiveram a presença de público.

O dérbi remarcado, portanto, aconteceu com o sol no horizonte e céu azul. Às 18 horas do dia 21 de abril, uma quarta, exatamente um mês após a bagunça do clássico anterior, Lazio e Roma entraram em campo para jogarem, do zero, uma nova partida. E com escalação diferente no lado biancoceleste, pelos mais diversos motivos – suspensões, lesões ou mesmo opção tática de Mancini. O técnico trocou Jaap Stam, Fabio Liverani, César e Simone Inzaghi por Fernando Couto, Giuseppe Favalli, Demetrio Albertini e Roberto Muzzi. Capello, ao contrário, manteve o seu onze inicial.

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Numa atmosfera bem mais tranquila, Corradi marcou o gol que abriu o placar para a Lazio no dérbi capitolino de abril de 2004 (AFP/Getty)

A Roma, ainda vice-líder, chegava ao clássico com nove pontos a menos do que o Milan, primeiro colocado, restando apenas quatro rodadas a serem disputadas – ou seja, com chances irrisórias de título. Vencer a Lazio poderia aplicar alguma pressão no time de Carlo Ancelotti, embora parecesse mais plausível aumentar a vantagem sobre a Juventus e, com o segundo posto, evitar a fase preliminar da Champions League. A Lazio, por sua vez, perdera um pouco de fôlego na corrida pela maior competição de clubes do continente, mas poderia ultrapassar a Inter e assumir o quarto lugar em caso de triunfo.

O primeiro tempo no Olímpico foi de um jogo de poucas oportunidades, com a Lazio ocupando melhor os espaços e a Roma mostrando pouca criatividade para reagir. Angelo Peruzzi apareceu bem no início, evitando chances de Mancini e Cassano, enquanto Lima mandou para longe uma tentativa de cavadinha. Pelo lado giallorosso, oi tudo.

Os mandantes dominavam territorialmente, porém só haviam conseguido ameaçar numa cabeçada de Bernardo Corradi. Aos 40 minutos, então, Vincent Candela e Cristian Chivu saíram jogando errado, os celestes retomaram a posse e, na sequência do lance, um cruzamento esquisito de Luciano Zauri encontrou Corradi. O atacante pegou mascado na bola mas, mesmo assim, superou Pelizzoli e abriu o placar.

No segundo tempo, a Roma melhorou com a entrada de Gaetano D’Agostino na vaga de Candela – o brasileiro Lima, que atuava aberto pela esquerda no 4-4-2 de Capello, virou lateral. Na Lazio, Paolo Negro substituiu Fernando Couto, com problemas físicos, e seu ingresso em campo foi comemorado ironicamente pelos rivais, já que o defensor havia marcado um gol contra na vitória giallorossa no dérbi do primeiro turno, durante a campanha do scudetto da Loba.

Com a modificação, a Roma melhorou e conseguiu um pênalti ainda no início da segunda etapa, quando Corradi acabou se atrapalhando e usando a mão para cortar um levantamento à área. Totti encheu o pé na cobrança, mandou a bola no ângulo e, em seguida, fez algo que entraria para a história do confronto: correu para uma das estações de cinegrafistas, pediu para o profissional deixar o seu lugar e, se apossando da câmera, filmou a festa na Curva Sud. Por um lado, a comemoração icônica anteciparia a selfie que fez no Derby della Capitale, no empate por 2 a 2 em janeiro de 2015. Por outro, gerava reflexão.

Quis o destino que o clássico recuperado trouxesse a televisão novamente para o centro do debate. Sim, certamente foi uma coincidência, já que, naqueles tempos, Totti, o protagonista da cena, não era lá muito conhecido pela inteligência – entre 2003 e 2004, o próprio craque lançou dois livros em que compilava as inúmeras piadas sobre a sua pretensa burrice e doou o lucro das vendas para a caridade.

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Totti e a câmera de TV: o gesto icônico entrou para a história do clássico e suscitou reflexões mais profundas (AFP/Getty)

No fim das contas, o Pupone (“bebezão”, em italiano) acabou por escancarar a relação entre o futebol daqueles tempos e a sua dependência das câmeras, dos direitos de televisão vendidos a milhões de euros para grandes corporações, cujo aporte financeiro podia salvar clubes endividados da falência e sustentar o sistema da bola. Tudo isso enquanto enquadrava o setor do estádio frequentado pelos ultras que fizeram o clássico capitolino ter sido interrompido e remarcado. Mas, naquele momento, a torcida só fazia uma bela festa.

O Derby della Capitale teve mais meia hora de bola rolando, na qual Totti – o melhor giallorosso em campo – acertou um arremate no travessão; Corradi, o biancoceleste envolvido nos lances de maior relevância para o andamento da partida, levou perigo com uma cabeçada. Nos minutos finais, Liverani foi expulso e fez a Lazio, então em inferioridade numérica, se defender até o apito final de Rosetti.

O empate não foi bom para ninguém. A Roma ficou mais longe do Milan, que confirmaria o scudetto, mas ao menos garantiu o vice-campeonato e a vaga direta para a Champions League. Já a Lazio perdeu terreno na corrida pela mesma competição e terminou a Serie A em sexto, com vaga na Copa Uefa. E, principalmente, segurou a vantagem que tinha sobre a Juventus na Coppa Italia e levantou o troféu do torneio nacional.

No extracampo, tivemos uma amostra parcial da máxima definidora da sociedade italiana, que saiu da boca do Príncipe de Salinas, no romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “é preciso que alguma coisa mude, para que tudo continue como está”. Primeiramente, os ultras do país seguiram em protesto contra a TV por assinatura e o pay-per-view, e em embate com as forças policiais – nos anos posteriores, tivemos até mesmo um aprofundamento da violência no esporte, com o registro de mortes em brigas de torcidas.

E para os clubes? No fim das contas, o Decreto salva-calcio não fez com que as agremiações deixassem seu estado de endividamento nem o dinheiro da TV mudou drasticamente a sua situação financeira: ambos empurraram a situação com a barriga. A Lazio se salvou da falência apenas porque, no verão europeu daquele mesmo ano de 2004, Claudio Lotito pode efetuar a compra parcelada de seus ativos.

A Roma, por sua vez, não foi vendida por Sensi. O presidente não conseguiu compradores e morreu no comando do clube, em 2008. Somente em 2010, a sua filha Rosella, herdeira administrativa dos negócios da família, negociou a cessão acionária da Italpetroli, controladora da agremiação, ao banco UniCredit – que era seu credor. Na sequência, a Loba foi para as mãos do consórcio norte-americano encabeçado por Thomas DiBenedetto e James Pallotta.

Muito se passou, mas até hoje não se sabe com clareza quem teria, de fato, começado a espalhar o boato sobre o garoto morto. Os responsáveis pela suspensão de um dos maiores clássicos do futebol italiano seguem desconhecidos, ganhando um status comparável ao de lendas urbanas.

Lazio 0-0 Roma (suspensa por questões de ordem pública)

Lazio: Peruzzi; Oddo, Stam, Mihajlovic, Zauri; Fiore, Giannichedda, Liverani, César; Corradi, Inzaghi. Técnico: Roberto Mancini. Roma: Pelizzoli; Panucci, Samuel, Chivu, Candela; Mancini, Emerson, Dacourt, Lima; Totti, Cassano. Técnico: Fabio Capello. Árbitro: Roberto Rosetti (Itália) Local e data: estádio Olímpico, Roma (Itália), em 21 de março de 2004

Lazio 1-1 Roma

Lazio: Peruzzi; Oddo, Fernando Couto (Negro), Mihajlovic, Favalli; Fiore, Giannichedda, Albertini (Liverani), Zauri; Corradi, Muzzi (López). Técnico: Roberto Mancini. Roma: Pelizzoli; Panucci, Samuel, Chivu, Candela (D’Agostino); Mancini, Emerson, Dacourt, Lima; Totti, Cassano (Carew). Técnico: Fabio Capello. Gols: Corradi (40′); Totti (61′) Cartão vermelho: Liverani Árbitro: Roberto Rosetti (Itália) Local e data: estádio Olímpico, Roma (Itália), em 21 de abril de 2004

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