
Calciopédia
·03 de outubro de 2023
Em 1987, duelo entre Napoli e Real Madrid impulsionou revolução nos torneios europeus

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·03 de outubro de 2023
O que um confronto precisa ter para ser considerado revolucionário? No caso do duelo entre Napoli e Real Madrid, válido pela Copa dos Campeões da temporada 1987-88, apenas ter existido. O sorteio da principal competição europeia da época colocou italianos e espanhóis frente a frente muito cedo, o que gerou reflexões sobre a mudança de formato dos torneios continentais e acabou estimulando a criação da Champions League.
Quem conhece um pouco da história dos torneios continentais da Europa sabe que a introdução de uma fase de grupos nestes certames é algo relativamente recente. A Uefa começou a organizar competições internacionais de clubes em 1955 e a primeira vez que se valeu de chaves antecedentes a um mata-mata ou a uma final foi na Copa dos Campeões, em 1991, quase quatro décadas depois. Na Copa Uefa, antecessora da Liga Europa, isso só foi ocorrer em 2004. E o que isso tem a ver com aqueles jogos entre Napoli e Real Madrid realizados em 1987? Tudo.
A Copa dos Campeões, como o nome deixava claro, era reservada aos times vitoriosos nas ligas nacionais da Europa. Desse modo, cada federação filiada à Uefa contava apenas com uma vaga. A equipe que tivesse levantado a orelhuda na temporada anterior também tinha direito a um lugar mesmo se não houvesse faturado o campeonato de seu país – era a única possibilidade de uma nação ter dois representantes no torneio. Em 1987-88, o Napoli e o Real Madrid se classificaram para a competição porque haviam conquistado Serie A e La Liga, respectivamente.
O Napoli havia faturado o seu primeiro scudetto e era estreante na Copa dos Campeões, mas, além de ter um elenco forte, contava simplesmente com Diego Armando Maradona, um dos maiores craques da história e líder da Argentina ganhadora da edição mais recente da Copa do Mundo àquela altura, em 1986. O Real Madrid não faturava a taça havia quase três décadas, porém era o time mais vitorioso da competição, com cinco conquistas. O sorteio, que não tinha cabeças de chave, decretou que um deles ficaria pelo caminho logo na primeira fase do certame, depois de apenas dois jogos.
A ausência de cabeças de chave fez com que o Napoli, de Bruscolotti, enfrentasse muito cedo o Real Madrid, de Butragueño (Onze Mondial)
O fato gerou enorme estupefação, já que Itália e Espanha já haviam se consolidado há bastante tempo como países tradicionais no futebol, e também compunham o grupo das nações mais populosas e ricas da Europa. Ou seja, condições que colocavam a dupla mediterrânea entre os grandes mercados do continente. Para torcedores, televisões locais, patrocinadores e os próprios grandes clubes aquele modelo de competição parecia começar a encontrar limites de fruição e proveito. Certamente a Copa dos Campeões tinha potencial de ser melhor explorada sob os aspectos esportivo e comercial.
Era isso o que pensava, por exemplo, Silvio Berlusconi, que havia comprado o Milan em 1986. Dono de redes de televisões e jornais, o Cavaliere detinha uma fatia considerável desse mercado e sabia bem como grandes jogos rendiam mais audiência, mais publicidade e, consequentemente, lucros maiores. Na década de 1980, o Canale 5, de sua propriedade, organizou e transmitiu para a Itália três edições do Mundialito de Clubes, torneio amistoso que reunia times europeus e sul-americanos campeões mundiais. Foi um sucesso de público em San Siro e também na TV.
A experiência do Mundialito, que era disputado num pentagonal em que todos os times se enfrentavam uma vez, levou Berlusconi a pensar num formato diferente para os torneios europeus. Inicialmente, o empresário contratou uma consultoria para aferir a possibilidade de uma liga continental com divisões, rebaixamento e promoção. Com o resultado do levantamento em mãos, apresentou a ideia a dirigentes de outras agremiações e até à Uefa.
Maradona e o Napoli encararam o multicampeão Real Madrid logo na primeira fase da Copa dos Campeões, disputada em mata-mata (Diario AS)
Os números serviram para pressionar a entidade organizadora das competições europeias a adotar coeficientes para definir cabeças de chave nos sorteios. Posteriormente, se amadureceu a ideia de abolir o mata-mata em todo o torneio. Em 1991-92, houve a primeira experiência neste sentido: após duas fases eliminatórias, foram formados dois grupos de quatro times e os seus vencedores fariam a final. Em 1992, nasceu a Champions League, nos mesmos moldes.
Com o tempo, a competição foi se moldando de outras formas, a fim de garantir um número maior de jogos assegurado aos participantes e, claro, duelos de peso. Em 1993-94, a fase de grupos começou a classificar quatro times e não mais dois – ou seja, as semifinais foram reintroduzidas. Depois, em 1994, as chaves foram transformadas na etapa sucessiva aos playoffs, e o mata-mata começava a partir das quartas. Em 1997, o número de integrantes foi ampliado e, finalmente, alguns países passaram a ter mais representantes no torneio.
As expansões e alterações no modelo de disputa da Champions League continuaram a todo vapor e influenciaram também nas demais competições da Uefa – resultaram, por exemplo, na extinção da Recopa e na introdução de grupos na Copa Uefa, atual Liga Europa. Os ajustes prosseguem. E tudo por causa daquele confronto prematuro entre Napoli e Real Madrid, em 1987.
Apagado, Maradona pouco produziu num Bernabéu de portões fechados (AP)
Os confrontos entre Napoli e Real Madrid tiveram início na capital espanhola. O habitual seria termos casa cheia no estádio Santiago Bernabéu, mas os merengues tiveram de jogar com portões fechados como punição pela desordem causada pela torcida blanca nas semifinais da temporada anterior, perdida por 4 a 2 para o Bayern Munique. Ou seja, a atmosfera para aquele duelo inusitado era das mais insólitas.
O Napoli de Ottavio Bianchi chegava ao confronto com um elenco bem mais enxuto em relação àquele que havia faturado o scudetto, em 1986-87, e impossibilitado de escalar o principal reforço da temporada: o brasileiro Careca, que se recuperava de lesão. O treinador, portanto, confiava na base campeã italiana: uma defesa com o excêntrico goleiro Claudio Garella e os sólidos Giuseppe Bruscolotti, Ciro Ferrara, Moreno Ferrario e Alessandro Renica; um meio-campo com Salvatore Bagni, Francesco Romano, Fernando De Napoli e Luciano Sola; além de um ataque com Bruno Giordano e, evidentemente, Maradona.
Por sua vez, os mandantes teriam que lidar com o desfalque do artilheiro Hugo Sánchez, suspenso. Apesar da ausência do mexicano, o Real Madrid treinado pelo holandês Leo Beenhakker tinha um forte ataque, liderado pelo veterano – e capitão – Santillana, e contava ainda com quatro remanescentes da célebre Quinta del Buitre: Emilio Butragueño, Manolo Sanchís, Míchel e Rafael Martín Vázquez.
Um pênalti bobo de Renica permitiu ao Real Madrid abrir o placar bem cedo no jogo de ida (Diario AS)
Não obstante essa potência, o gigante merengue havia chamado a atenção na Itália naquele verão de 1987 por outros motivos: uma derrota inesperada num amistoso de pré-temporada. A Parmalat patrocinava o Real Madrid e, por conta dessa relação, levou os blancos para realizarem um teste contra o Parma, time que bancava, em pleno estádio Ennio Tardini. Os crociati de Zdenek Zeman disputavam a Serie B e, mesmo assim, fizeram 2 a 1 sobre os espanhóis – vestindo um raríssimo uniforme vermelho, terceiro kit de 1987-88, que ganhou status de culto devido ao resultado positivo. O placar foi enganoso, visto que os ducali não decolariam posteriormente e, após a demissão do lendário técnico checo, ficariam apenas no meio da tabela da segundona.
Havia quem entendesse que o Napoli era favorito contra o Real Madrid, por conta da comparação entre a força dos elencos e pelo futebol que os times haviam mostrado nos primeiros jogos da temporada 1987-88. Porém, no Bernabéu, tudo deu errado para a equipe italiana, que não conseguiu aproveitar a ausência de público.
Logo aos 18 minutos, Sanchís conduziu a bola pelo lado direito sem muita oposição e a carregou até a linha de fundo. O defensor já estava quase fora do campo quando Renica efetuou um carrinho totalmente desnecessário e o derrubou na grande área. O pênalti foi assinalado pelo árbitro romeno Ioan Igna e convertido por Míchel.
Garella bem que tentou evitar um resultado pior para o Napoli no duelo de ida, em solo espanhol (Diario AS)
No primeiro tempo, o Napoli mostrou deficiências defensivas pouco habituais. Em ataques pela esquerda e também pelo corredor direito, o Real Madrid deixou Míchel e Jesús Solana cara a cara com Garella, que teve de ser reativo para fechar o ângulo e evitar mais gols merengues. Apesar dos erros, aos 37 minutos o time italiano teve uma chance inacreditável. Maradona amaciou a sobra de um chutão e acionou De Napoli, que cruzou para a área, onde o arqueiro Francisco Buyo soltou a bola e a perdeu para Giordano, que ficou cara a cara com a baliza praticamente desguarnecida. O atacante, entretanto, encheu o pé e mandou a pelota sobre o travessão.
Logo após o intervalo, o Napoli carimbou a trave do Real Madrid quando Rafael Gordillo tentou cortar um cruzamento e quase colocou contra o próprio patrimônio. Já em meados do segundo tempo, Giordano teve outra oportunidade em nova bola alçada à área, mas não direcionou o arremate e parou em Buyo. O castigo veio a galope: aos 76, Miguel Tendillo dominou a sobra de um corner e finalizou; a pelota tocou em vários jogadores e, depois de explodir em De Napoli, morreu nas redes de Garella.
Apagadíssimo, Maradona pouco produziu. O Napoli chegou a reclamar de dois supostos pênaltis sobre Giordano e Renica, mas a verdade é que não aproveitou as oportunidades cristalinas que teve e ainda se mostrou vulnerável defensivamente. Além de todas as chances que os blancos tiveram no jogo, perto do apito final Garella teve de se desdobrar para evitar que Ricardo Gallego ampliasse o placar.
Improdutivo e nervoso, o Napoli voltou para a Itália com uma missão complicadíssima (Diario AS)
No jogo de volta, duas semanas depois, mais de 83 mil pessoas compareceram ao San Paolo na expectativa de empurrar o Napoli rumo a uma reviravolta histórica. Os azzurri contavam com o retorno de Careca, que havia marcado gols em cada uma das quatro partidas que fizera pelo time – todas pela Coppa Italia, cuja fase de grupos antecedia o início da Serie A. O Real Madrid, por sua vez, também teria Sánchez à disposição.
Antes da partida, o ensandecido público no San Paolo sequer interrompeu o show pirotécnico na hora do minuto de silêncio em respeito à memória do jornalista esportivo Gino Palumbo, falecido em 29 de setembro de 1987, dia anterior à peleja – como homenagem póstuma, a tribuna de imprensa do estádio ganhou o nome do célebre cronista campano. Ainda em meio a bastante fumaça, o pontapé inicial foi autorizado pelo árbitro Dieter Pauly, da Alemanha Ocidental.
O Napoli buscou o gol desde o início e rapidamente Careca mostrou a sua importância. Aos 9 minutos, o time da casa alçou diversas bolas na área, com muita insistência. No alto, o atacante brasileiro conseguiu ajeitar de cabeça para Francini, que testou forte. O próprio lateral-esquerdo aproveitou o rebote de Buyo e abriu o placar.
Em Nápoles, os merengues superaram o clima hostil e eliminaram a trupe de Maradona (ABC)
Jogando com Maradona na condição de autêntico 10 e dois atacantes na frente, o Napoli teve uma atuação insinuante na primeira etapa. Careca chegou a ter duas grandes oportunidades após cruzamentos, mas parou em Buyo em ambas – com a cabeça e com uma escorada rasteira, à queima-roupa. O banho de água fria, entretanto, aconteceria pouco antes do intervalo. O Real Madrid efetuou a pressão alta, roubou a bola no campo de ataque e Sánchez achou um fantástico passe no ponto futuro para Butragueño, que só encobriu Garella.
O empate por 1 a 1 era terrível para o Napoli, que precisaria marcar mais três vezes para se classificar – afinal, a regra do gol qualificado era vigente naquela época. Muito desestimulado, o time da casa pouco conseguiu criar contra a equipe de Beenhakker, que transformou o segundo tempo em mera formalidade e garantiu a sua classificação. Já no finalzinho, um nervoso Andrea Carnevale ainda foi expulso por agressão.
O Real Madrid seguiu adiante na competição e teve confrontos que só ratificaram a ideia de que ela poderia ser remodelada a fim de ficar mais interessante. Na sequência, os merengues encararam o Porto, detentores da taça, e os eliminaram. Nas quartas, foi a vez de dar o troco no Bayern Munique. Os espanhóis acabariam caindo nas semifinais para o PSV Eindhoven, que se sagraria vencedor daquela edição do torneio continental. A vaga dos blancos na próxima Copa dos Campeões, entretanto, estaria garantia devido ao título de La Liga.
O Napoli, por outro lado, teve de se concentrar na Serie A – até porque também foi precocemente eliminado na Coppa Italia, competição em que caiu para o Torino, nas quartas de final. Os azzurri ficaram muito próximos do bi no campeonato, mas foram ultrapassados pelo Milan devido a uma derrota no confronto direto, realizado na antepenúltima rodada, e ficaram com o vice. O time partenopeo voltaria à Copa dos Campeões em 1990-91, após faturar outro scudetto, só que também amargaram uma queda precoce. Desta vez na segunda fase, para o Spartak Moscou. Mais sucesso campano no grande torneio de clubes europeu? Quem diria, só mesmo depois da bendita reformulação, em tempos de Champions League.
Real Madrid: Buyo; Chendo, Sanchís, Tendillo, Solana (Jankovic); Míchel, Martín Vázquez, Gallego, Gordillo; Butragueño, Santillana (Llorente). Técnico: Leo Beenhakker. Napoli: Garella; Ferrario, Bruscolotti, Ferrara; Renica; De Napoli, Bagni, Romano, Sola (Bigliardi); Maradona, Giordano (Baiano). Técnico: Ottavio Bianchi. Gols: Míchel (18’) e De Napoli (contra; 76’) Árbitro: Ioan Igna (Romênia) Local e data: estádio Santiago Bernabéu, Madri (Espanha), em 16 de setembro de 1987
Napoli: Garella; Ferrara, Ferrario, Renica, Francini; De Napoli, Bagni, Romano; Maradona; Careca, Giordano (Carnevale). Técnico: Ottavio Bianchi. Real Madrid: Buyo; Chendo, Sanchís, Tendillo, Solana; Míchel, Gallego (Mino), Gordillo; Martín Vázquez (Jankovic); Butragueño, Sánchez. Técnico: Leo Beenhakker. Gols: Francini (5’); Butragueño (44’) Cartão vermelho: Carnevale Árbitro: Dieter Pauly (Alemanha Ocidental) Local e data: estádio San Paolo, Nápoles (Itália), em 30 de setembro de 1987