Calciopédia
·09 de agosto de 2024
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Os Jogos Olímpicos de 1936, realizados na Alemanha Nazista, são lembrados como palco da humilhação que o atleta negro Jesse Owens proporcionou ao ditador Adolf Hitler. O norte-americano descredibilizou as teorias de superioridade da “raça ariana” ao ganhar quatro medalhas de ouro no atletismo, sob os olhares do nefasto chanceler alemão. Na Itália, por sua vez, o evento é celebrado como palco da primeira glória dourada dos azzurri no torneio de futebol da Olimpíada – obtida, a propósito, num contexto desfavorável.
Em 1930, durante o Congresso Olímpico realizado em Berlim, a capital da Alemanha submeteu ao Comitê Olímpico Internacional – COI a sua candidatura a cidade-sede dos Jogos de 1936. No ano seguinte, bateu Barcelona na eleição e ficou responsável por realizar o evento. À época, o Partido Nazista crescia, mas ainda não estava no comando político do país.
Hitler foi alçado ao posto de chefe de governo da Alemanha em 1933, e, no ano seguinte, efetuou uma série de manobras vis e truculentas, cobertas apenas com o verniz da legalidade, para se tornar também chefe de estado. Com o poder consolidado, o Führer viu na Olimpíada a forma de propagandear para o mundo sua ideologia violenta, antissemita, anticomunista, eugenista e nacionalista. Os Jogos seriam os primeiros transmitidos por radiodifusão e teriam até filme oficial, de modo que o nazista via a oportunidade de mostrar ao planeta que os arianos seriam superiores aos demais.
Em 1934, a Itália tinha passado por algo similar. Aliado da Alemanha, o governo italiano fez de tudo para sediar a Copa do Mundo daquele ano – a segunda da história e a primeira em solo europeu – porque era um evento estratégico para o regime de Benito Mussolini. O ditador queria difundir para o planeta a imagem de uma nação próspera, unida e estruturada sob a doutrina fascista, além de alinhar o acolhimento do torneio à comemoração dos 10 anos da Marcha sobre Roma, que marcou a sua ascensão ao poder. O futebol era visto como uma das formas mais eficazes de corroborar a sua ideologia, através da propaganda, nos mesmos moldes em que a Olimpíada de 1936 poderia servir a Hitler.
Na final da Olimpíada de 1936, Itália e Áustria fizeram reedição da semifinal da Copa do Mundo de dois anos antes (Popperfoto/Getty)
>>> Leia mais: A Azzurra em camisas negras: como o fascismo influencia o futebol italiano há um século
Para o ditador italiano, a realização da competição rendeu frutos, já que o título mundial da Nazionale pode ser embutido na narrativa de superioridade itálica que o regime vinha construindo desde a década de 1920. Em 1936, os fascistas esperavam que a seleção confirmasse a sua forma na primeira Olimpíada que teria o futebol em seu calendário após a criação da Copa do Mundo – vale lembrar que o torneio global da modalidade surgiu em 1930 e, nos Jogos de 1932, em Los Angeles, o esporte não fez parte da programação olímpica.
A Itália vinha de uma boa participação na Olimpíada de 1928, ocasião anterior em que o futebol teve espaço no programa dos Jogos: em Amsterdã, a seleção liderada pelo craque Adolfo Baloncieri ficou com o bronze. Entretanto, nenhum atleta do time que foi medalhista nos Países Baixos podia ser inscrito no torneio porque as regras de elegibilidade mudaram. Enquanto Augusto Rangone pode convocar vários nomes de destaque do campeonato nacional, incluindo cinco peças que figuraram na campanha vitoriosa na Copa de 1934, Vittorio Pozzo – o técnico do título mundial, que assumira também a equipe olímpica – teve de montar o seu grupo apenas com jogadores que estivessem matriculados em instituições de ensino superior.
Pozzo, então, garimpou nas séries A e B, além dos Jogos Universitários, e formou um grupo composto exclusivamente por atletas que jamais haviam vestido a camisa da seleção principal até aquele momento. Os grandes destaques eram os defensores Alfredo Foni e Pietro Rava, da Juventus, e o meia Ugo Locatelli, que era do Brescia, mas já estava acertado com a Inter – então chamada de Ambrosiana, devido às leis fascistas que impediam o uso de estrangeirismos.
Enquanto a Itália fez uma campanha regular, a Áustria só avançou à semifinal por causa de boicote peruano (Sportbild Schirner/ullstein bild/Getty)
O futebol olímpico estava desfalcado de seleções que haviam obtido bons resultados em edições anteriores dos Jogos, como Bélgica, Checoslováquia e, principalmente, o Uruguai – bicampeão em 1924 e 1928. Além da ausência de fortes concorrentes, outro fator que ampliava a imprevisibilidade do torneio, que tinha a duração de apenas 12 dias, era o fato de as equipes participantes não serem as melhores possíveis dos países classificados e, de quebra, formadas por atletas que jamais haviam atuado juntos.
Isso ficou evidente logo na estreia da Itália. Mesmo a rigorosa preparação conduzida por Pozzo não foi suficiente para evitar as enormes dificuldades contra os Estados Unidos: os norte-americanos, que haviam sido derrotados pelos azzurri no debute da Copa de 1934 por um sonoro 7 a 1 foram muito mais resistentes dessa vez e só cederam a derrota pelo placar mínimo. O gol decisivo foi anotado pelo baixinho Annibale Frossi, que ainda daria muito o que falar na competição. E não por jogar bola de óculos, devido a sua aguda miopia.
Nas quartas de final, a Itália enfrentou o surpreendente Japão, que eliminara a Suécia na primeira fase. Contra os asiáticos, não houve história: Frossi marcou três gols, Carlo Biagi anotou quatro e Giulio Cappelli fechou a conta na sonora goleada por 8 a 0. Nas semifinais, um teste duríssimo: a Noruega, que havia eliminado a Alemanha, dona da casa, com um 2 a 0 protocolar sob os olhares de Hitler e de Joseph Goebbels, Hermann Göring e Rudolf Hess, seus principais auxiliares. Os italianos precisaram da prorrogação para superarem os escandinavos e o artilheiro míope da Nazionale foi novamente decisivo, ao ser o autor do 2 a 1 já aos 96 minutos.
Em Berlim, a Itália superou um clima hostil e a rivalidade com a Áustria para faturar seu primeiro ouro olímpico (Popperfoto/Getty)
Segundo Pozzo, o estresse que antecedia a final foi aplacado por uma figura improvável: Jesse Owens. O atleta que humilhou Hitler estava hospedado numa das casas da vila olímpica – a primeira da história – e era praticamente vizinho da delegação azzurra, com a qual fez amizade. “Ele vinha nos visitar depois do jantar, munido de violão e acordeão. Ele tocava algumas canções e dançava a dança do ventre. Ele gostava da nossa companhia, porque os italianos viviam rindo, e sempre muito alto”, escreveu o técnico em suas memórias.
Grande destaque daquela Itália, Frossi podia até mirar o exemplo de Owens. Enquanto o recordista mundial corria 100 metros em 10,2 segundos, o ponta italiano era capaz de percorrer a mesma distância em 11,4 – marca compatível com a de outros velocistas inscritos naquela Olimpíada. Essa era uma das armas que a Nazionale teria de utilizar para derrotar a Áustria, uma de suas grandes rivais daqueles tempos, na disputa pela medalha de ouro.
Assim como a Itália, a Áustria também estava muito modificada em relação à Copa de 1934, ocasião em que se encontraram na semifinal – um gol chorado de Enrique Guaita mandou o chamado Wunderteam de Matthias Sindelar para a disputa do terceiro lugar. Entretanto, os austríacos mantinham o treinador Hugo Meisl e o inglês Jimmy Hogan, seu parceiro, que propagavam as ideias da Escola Danubiana, em oposição ao Metodo de Pozzo. Resumidamente, teríamos o embate entre um time mais técnico e fluido do meio para frente e uma equipe organizada defensivamente, que apostava mais na força física e na velocidade de suas peças.
O futebol de força preconizado por Pozzo superou a técnica austríaca – graças ao frágil e míope Frossi (Imagno/Getty)
A Áustria chegou na decisão de forma polêmica. Entre as vitórias por 3 a 1 sobe Egito e Polônia, nas oitavas e nas semifinais, respectivamente, a seleção alpina teve uma derrota inesperada para o Peru, por 4 a 2, nas quartas. Entretanto, a Fifa decidiu anular a partida por causa de sucessivas invasões de campo da torcida sul-americana, com a alegação austríaca de que houve violência. A entidade remarcou o jogo, mas os peruanos decidiram boicotar a competição e voltaram para casa, recebendo a solidariedade de outras delegações, como as de Colômbia, Argentina e México.
A final estava marcada para o dia 15 de agosto, no Olympiastadion. Se os italianos esperavam uma boa recepção por parte da torcida alemã, devido ao fato de fascistas e nazistas serem aliados, se enganaram redondamente. Afinal, a Áustria era o país natal de Hitler e o ideal pangermanista era uma das pedras basilares do nazismo. Foi por conta deste conceito que o território austríaco, habitado por povos de origem germânica havia muitos séculos, era reivindicado pela Alemanha e acabou sendo anexado dois anos depois, no primeiro movimento expansionista do Terceiro Reich. Portanto, era como se – triste e ironicamente – os rivais da Itália jogassem em casa.
Sem a presença de Hitler, que decidiu não comparecer ao Olympiastadion, mas diante de cerca de 85 mil pessoas, Itália e Áustria fizeram um jogo bastante brigado e de poucas oportunidades de gol, no geral. Força, de um lado, e técnica, do outro, se anulavam. Os azzurri só saíram na frente aos 70 minutos, com Frossi, é claro. Na casa dos 79, porém, o goleiro Bruno Venturini não saiu bem de sua baliza e, na sobra, Karl Kainberger aproveitou para empatar e levar a final para a prorrogação.
Gesto histórico: para evitar fazer saudação fascista, Marchini fingiu coceira no joelho (Getty)
Só que a Itália tinha Frossi – e a sorte a seu lado. Logo aos 92 minutos, Francesco Gabriotti cruzou na área, Sergio Bertoni deu uma enganada no goleiro e Eduard Kainberger, irmão mais velho do tento austríaco, deu rebote. Assim, o ponta míope italiano chegou empurrando para a rede com a perna esquerda, que não era a boa, e marcou o seu sétimo gol na competição. Foi a bola que consagrou a artilharia do atacante, que se transferiria para a Inter ao fim do torneio. E, principalmente, a que sacramentou a conquista do primeiro ouro olímpico azzurro. O único até o fechamento desse texto.
Durante os festejos pela conquista da medalha, um jogador italiano protagonizou outro momento histórico. Os atletas eram obrigados a fazer a saudação romana, com o braço em riste, para reverenciarem o regime fascista. Contudo, o lateral-esquerdo Libero Marchini, da Lucchese, jamais toparia fazer isso num grande palco. Anarquista e opositor do governo, como outros nomes daquele time rossonero, promovido à Serie A justamente em 1936, ele deu um jeito de não se dobrar a Mussolini… se curvando. Com drible esperto, que lhe evitou qualquer punição, campeão olímpico fingiu sentir uma coceira no joelho para não fazer o gesto. A foto se tornou um símbolo antifascista no futebol da Itália.
Para a Itália e o professor Pozzo, por sua vez, o triunfo deu sequência a uma década dominante no futebol mundial. Em momento muito positivo, a Nazionale conseguiu emendar o título olímpico de 1936 às duas conquistas da Copa do Mundo, em 1934 e 1938, sempre sob o comando do técnico. Do time vitorioso em Berlim, entretanto, poucos fizeram carreira na seleção e integraram o grupo do bi – os defensores Foni e Rava, o meia Locatelli e o atacante Bertoni. Outros, como o artilheiro Frossi, Marchini, Venturini, Alfonso Negro, Giuseppe Baldo, Achile Piccini, Sandro Puppo e Luigi Scarabello fariam carreira em times da Serie A – a maior parte deles, porém, bem discreta.
Vale destacar ainda que vários daqueles jogadores-estudantes continuaram na universidade após conquistarem a medalha de ouro olímpica. Alguns deles, inclusive, fariam pós-graduação mais tarde. por exemplo, Negro, Bertoni e Scarabello – que se dedicaria ao cinema como ator e diretor, utilizando o pseudônimo Sergio Landi. Outros dois iriam além e utilizariam o título de forma mais exitosa: Foni e Frossi. O primeiro foi um grande técnico, sendo bicampeão italiano pela Inter e comandante da seleção. O segundo também treinou os nerazzurri, entre outros clubes, e se destacou como um importante cronista esportivo. Sem dúvidas, continuaram dando aulas, tal qual em Berlim.
Itália: Venturini; Foni, Rava; Baldo, Piccini, Gabriotti; Marchini, Biagi; Frossi, Bertoni, Locatelli. Técnico: Vittorio Pozzo. Áustria: E. Kainberger; Künz, Kargl; Kren, Wahlmüller, Hofmeister; Werginz, Laudon, Steinmetz, K. Kainberger, Fuchsberger. Técnicos: Hugo Meisl e Jimmy Hogan. Gols: Frossi (70′ e 92′); K. Kainberger (79′) Árbitro: Peco Bauwens (Alemanha) Local e data: Olympiastadion, Berlim (Alemanha), em 15 de agosto de 1936