
Calciopédia
·28 de julho de 2025
Com projeto ambicioso, o Alcione quer se consolidar como terceiro clube profissional de Milão

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·28 de julho de 2025
Em uma cidade como Milão, na qual o futebol é sinônimo de dualidade, com o San Siro dividido entre cânticos de nerazzurri e rossoneri, o surgimento de uma outra voz poderia soar como ousadia – ou estranha loucura, se preferir. Mas o Alcione não canta por acaso. Fundado em 1952, o clube milanês deixou de ser apenas uma respeitada escola de formação de atletas e passou a mirar os holofotes com ambição: quer se consolidar como terceiro time profissional da capital da Lombardia e ser uma espécie de primo (nem tão) modesto de Inter e Milan.
Sabemos que os leitores brasileiros sorriem ao lerem o nome do clube, por lembrarem automaticamente da homônima cantora maranhense – e, por isso, precisamos de um longo parênteses antes de abordarmos o projeto tocado pela agremiação. A coincidência denominativa entre o time milanês e a artista pode render trocadilhos divertidos, mas nasce de um tronco comum mais profundo: a mitologia grega.
Tanto o Alcione de Milão quanto a Marrom foram batizados a partir da figura de Alcíone (sim, com acento), filha de Éolo. Segundo a lenda, ela era profundamente apaixonada pelo marido Ceix, um marinheiro, e esperava ansiosamente pelo seu retorno de uma viagem marítima, até que avistou o corpo do esposo boiando na praia. Após a morte trágica, ela foi transformada pelos deuses em um martim-pescador – “alcione”, em italiano, ou também “alcião”, em português. Comovidas pela obstinação e pelo amor do casal, as divindades também fizeram o marujo virar pássaro, com o intuito de que pudessem seguir juntos numa nova vida.
Enquanto a Alcione brasileira recebeu seu nome em homenagem a Alcíone, personagem do romance Renúncia, psicografado por Chico Xavier, que carrega consigo características similares à figura mitológica, o time tomou emprestada uma das alcunhas do martim-pescador. Por isso, o laranja e o azul da plumagem da ave (sim, nada de marrom ou de loba…) são as suas cores sociais – ademais, a primeira versão de seu escudo e a estilizada forma atual contam com alusões às asas do pássaro.
Curiosamente, ao longo da história a equipe tem sido referenciada através dos dois gêneros. Pelas regras da Accademia della Crusca, autoridade em linguística na Itália, os clubes cujos nomes não têm quaisquer relações com denominações de locais são admitidos como substantivos femininos – neste caso, seria a Alcione. Porém, em comunicações oficiais, reportagens e entrevistas de dirigentes é comum ler e ouvir concordâncias nominais no masculino, seguindo a referência ao pássaro, e não à figura mitológica.
Bem, terminado o parênteses etimológico, idiomático e linguístico, podemos dizer que perseverança e transformação são símbolos enraizados no (ou na) Alcione desde sua fundação. E hoje, como se buscasse inspiração em “Você me vira a cabeça”, eternizada pela Marrom, o time italiano sonha em protagonizar uma mudança de 180 graus na lógica desigual do futebol, galgando degraus na pirâmide italiana.
Desde que surgiu, em 1952, o Alcione teve como presidentes algumas figuras ilustres da cidade, particularmente devotadas ao esporte e às questões sociais, como Ernesto Pellegrini, que mais tarde seria dono da Inter, e Carlo Tognoli, que foi prefeito de Milão e ministro da Itália. Porém, o cargo conferia mais prestígio comunitário do que notoriedade esportiva ou grande influência política. O grande objetivo do clube neste período foi formar atletas, como uma escolinha – esse aspecto merece um capítulo à parte mais adiante. Até meados da década de 2010, jamais tinha ido além da sexta divisão.
O Alcione pegou emprestadas as cores da plumagem do martim-pescador e criou uniformes peculiares no futebol italiano (Wikipedia)
A partir de 2017, o martim-pescador ousou sonhar mais com voos mais altos – e, por que não, desafiar o duopólio de Inter e Milan na capital da Lombardia. Através de um ambicioso projeto tocado por Marcello Montini e Giulio Gallazzi, o Alcione conseguiu deixar a sexta categoria e, depois de 72 anos de história, alcançou e forma inédita a Serie C, o último nível profissional da Itália, e o primeiro que um time amador pode atingir numa trajetória ascendente. Dessa maneira, desafiou o Brera, que se arvorava como “terceiro clube de Milão” e ficou para trás. Hoje, os neroverdi estão na nona divisão (na base da pirâmide) e não têm um rumo definido. Já os arancioblù sabem bem aonde querem chegar.
Por algum tempo, Montini e Gallazzi, sócios da GM Sport Ventures, dividiram a presidência do Alcione. E foi com o prestígio da dupla que o clube conseguiu angariar importantes patrocínios, o que é muito difícil para aqueles que militam em divisões inferiores. Hoje, por exemplo, a chinesa ZTE, importante companhia de telecomunicações, é uma das parceiras dos laranjas.
Montini fez fortuna à frente de uma agência de modelos e ingressou no clube ainda como patrocinador, em 2014, tornando-se conselheiro no ano seguinte e presidente em 2017. Marcello é milanista confesso – e inclusive, investidor da RedBird Capital Partners, atual proprietária do Milan. O empresário também é neto de Iginio Monti, histórico jornalista esportivo apaixonado pelo Legnano, modesto time da Lombardia que, assim como os arancioblù, tem cor rara no panorama italiano (o lilás) e esteve na elite nacional antes dos pontos corridos, além de ter acumulado três participações na Serie A, sendo a última em 1953-54.
Já Galazzi embarcou no projeto do Alcione em 2021, com o dever de encarnar o braço corporativo e estratégico do clube. Se Montini emergiu do mundo glamouroso das passarelas de Milão, Giulio tem um passado bem diferente: o bolonhês foi jogador de futebol americano e capitão da seleção italiana da modalidade. Aposentado, tornou-se empresário do setor financeiro e ganhou prestígio na administração de capitais e investimentos.
A holding de Gallazzi mantém posições em várias companhias europeias, como o centenário Banco del Fucino, patrocinador master dos arancioni. O próprio empresário tem assento em diversos conselhos administrativos – por exemplo, no da operadora de telefonia móvel TIM. No futebol, o emiliano chegou a sondar a aquisição do Genoa nos tempos de Enrico Preziosi e também avaliou adquirir quotas de outros clubes de tradição nas séries A e B. Acabou se convencendo, após convite de Montini, de que nenhum investimento seria mais atraente do que fazer com que o Alcione, de uma cidade tão importante quanto Milão, chamasse atenção no panorama nacional.
Juntos, Montini e Gallazzi colocaram em prática um modelo de gestão que combina sustentabilidade financeira e desenvolvimento esportivo, com especial ênfase no setor juvenil. O Alcione passou a ser gerido como uma estrutura sólida, com espírito de clube profissional, mas com os pés bem fincados no território milanês. Em termos patrimoniais e organizacionais, já opera nos padrões de uma equipe de Serie B. Seus dirigentes, aliás, nunca esconderam o desejo de crescer sem pressa, ainda que com ambição. Um avanço contínuo, respaldado por planejamento e visão de longo prazo.
Desde 2024, Gallazzi se tornou o único dono da agremiação, depois que Montini, por razões pessoais, decidiu lhe vender suas ações e encerrar uma colaboração de 11 anos. Apesar disso, o projeto laranja segue com objetivo preciso: consolidar a agremiação como a terceira força de Milão, com aposta sólida nas categorias de base e um salto progressivo nas divisões profissionais. E talvez, com um pouco de sorte e persistência, disputar uma partida em San Siro.
Montini e Gallazzi se uniram com o ambicioso intuito de fazer o time arancione chegar ao profissionalismo (Arquivo/Alcione Milano)
A provocação não é gratuita. Em novembro de 2023, ao ser entrevistado pela imprensa local, Gallazzi não apenas reafirmou a meta de ascender à Serie B em cinco anos como admitiu que gostaria de ver o Alcione, um dia, dividir o gramado do mítico Giuseppe Meazza, cujo futuro estava em xeque devido às ameaças de Inter e Milan de deixarem a capital da Lombardia.
“Nossa sede fica muito perto de San Siro. Seria ótimo ‘atravessar a rua’ e jogar lá, principalmente porque teríamos dificuldade de usar a Arena Civica na Serie B. Inter e Milan têm outros projetos, e nós já nos candidatamos. Se o Meazza pudesse se tornar um estádio menor, seria perfeito para nós”, afirmou Gallazzi. Com a mudança de cenário e a possibilidade de compra da área da histórica praça esportiva por nerazzurri e rossoneri, a ousada ideia do cartola caiu por terra, mas nada impede que o Alcione, fundado naquelas imediações, em Baggio, venha a se tornar um visitante incômodo dos gigantes – e, quem sabe, os tire do sério, destruindo seus planos.
De qualquer modo, em uma cidade dominada por Milan e Inter, a simples ideia de uma terceira força já é suficientemente audaciosa – e ocupar o templo do futebol milanês beirava o delírio. Mas o Alcione não quer substituir ninguém; quer se somar e mostrar que uma capital da modalidade, como Milão, pode abrigar mais clubes relevantes, como mostram Buenos Aires, Londres, Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo. E basta um olhar atento para perceber que este projeto está sendo tocado com sobriedade, como antecipamos.
No caminho da Promozione, a sexta divisão, até a promoção da Eccellenza (quinta) para a Serie D (quarta), o Alcione atraiu os investimentos estratégicos já citados e requalificou suas instalações – como o Centro Esportivo John Fitzgerald Kennedy, dividido com outros clubes da zona oeste de Milão. Em 2023, o time laranja, comandado pelo técnico Giovanni Cusatis desde 2021, venceu seu grupo da Serie D, mas foi impedido de subir para a terceirona por critérios estruturais: teve o acesso cancelado pela falta de um estádio que atendesse às exigências da Lega Pro, organizadora da terceira categoria. Um entrave técnico, não esportivo.
Naquela época, o Alcione jogava em diversos campos da cidade e desejavam atuar na mais velha praça esportiva de Milão, a bicentenária Arena Civica Gianni Brera, inaugurada em 1807. Porém, o estádio não se adequava às normas da Serie C em número de câmeras de vigilância (eram deficitárias) e a outros aspectos relativos a segurança, como saídas de emergência. As autoridades foram chamadas em causa, mas não liberaram o local. A tentativa de solução para o campeonato seguinte se deu em forma de aliança com a Inter, já que a equipe feminina nerazzurra, militante na elite de sua modalidade, mandava suas partidas ali.
Tudo parecia caminhar bem e o Alcione venceu o seu grupo da Serie D jogando na Arena Civica, um dos berços do futebol milanês e palco da estreia da seleção italiana, em 1910. O acesso à terceirona em 2024, contudo, virou uma nova dor de cabeça para os laranjas, porque o município de Milão, proprietário da praça, não conseguiu sanar as lacunas necessárias.
Os arancioni não quiseram perder mais uma promoção e chegaram a anunciar que iriam mandar suas partidas em Fiorenzuola d’Arda, cidade situada a cerca de 50 km, em outra região – a Emília-Romanha. Antes disso, porém, conseguiram fechar um acordo com a Pro Sesto e, apesar de terem deixado a capital da Lombardia, seguem em sua região metropolitana: passaram a atuar no Ernesto Breda de Sesto San Giovanni, a aproximadamente 20 km de sua sede. “Resolvemos em duas semanas o que Milão não resolveu em dois anos”, disparou Montini, à época. O Alcione já tem um projeto de estádio próprio em Gratosoglio, ao sul do município, mas estuda alternativas em comunas do entorno por conta da burocracia à moda milanesa.
Desde sua fundação, o Alcione investe muito na formação de atletas e tem colhido resultados ao ganhar títulos juvenis (Arquivo/Alcione Milano)
Nas décadas que antecederam o projeto iniciado por Montini e Gallazzi, os arancioni cultivaram uma reputação sólida como clube formador, moldando jovens talentos que depois ganhariam espaço em palcos maiores. Nos mais de 70 anos de existência do ninho do martim-pescador, surgiram ou passaram por lá nomes como Giuseppe Dossena, Alessandro Pistone, Andrea Caracciolo e Nicolò Rovella, que chegaram a representar a seleção italiana. Beppe, inclusive, foi campeão mundial em 1982, enquanto Nico (que vestiu laranja de 2014 a 2017) volta e meia visita a agremiação que o lançou.
Nesse período fora dos holofotes, o Alcione funcionou como escolinha, ensinando aos atletas fundamentos sólidos, disciplina tática e valores humanos, e competiu na base da pirâmide do futebol do país, frequentemente com elencos recheados de garotos nos campeonatos regionais. Tal princípio seria adotado como cultura do time.
Ao longo do seu processo de ascensão, o Alcione manteve a base como joia da coroa e seu principal trunfo. O clube laranja não abandonou a vocação que lapidou temporada após temporada. Ao contrário, busca potencializá-la com métodos modernos de análise de desempenho, intercâmbio internacional e um estafe técnico qualificado, que lhe permite apostar na captação de jovens com potencial técnico e integrá-los a suas categorias de base. Mas não só: já entre os adultos, construiu elencos com média de idade na faixa dos 23 anos.
Pensando no futuro, além de fortalecer a base do Alcione, o presidente Gallazzi investe na Olbia Academy, situada na Sardenha, que pode fornecer jogadores para o martim-pescador. O cartola visa aplicar um modelo replicável seguindo a lógica de private equity – ou seja, de valorização de ativos para negociação posterior – no setor juvenil, com o objetivo de criar um ecossistema formativo autônomo, financeiramente viável e capaz de fazer os atletas transitarem do amador ao profissional sem perderem identidade. Para o dirigente, pouco se investe em garotos na Itália e essa é uma estratégia que pode ser mais inteligente do que buscar peças em mercados estrangeiros.
Trabalhando assim, o Alcione colhe resultados. Em 2024, enquanto a equipe principal subia à Serie C, o plantel sub-19 ganhou o campeonato Nazionale Juniores, disputado por setores juvenis de clubes amadores do país – e todos os seus elencos de garotos, com a exceção do sub-14, que ficou pelo caminho na fase final, faturaram os troféus regionais da Lombardia. Além disso, os arancioblù têm buscado contratar por empréstimo jovens provenientes de agremiações da elite, no intuito de permitir com que cresçam juntamente com o time, que foi 12º colocado em sua primeira participação na terceirona.
O time laranja, evidentemente, ainda não conta com a mesma presença de público ou mídia que seus irmãos mais famosos. O Alcione não tem uma torcida numerosa ou sequer uma organizada: em casa, tem a seu lado prevalentemente com apoiadores ocasionais, familiares de atletas e curiosos; fora de seus domínios, frequentemente não aparece ninguém para empurrá-lo. Ainda assim, trabalha de cabeça baixa, com um projeto que se sustenta por sua coerência interna, e, em 2025-26, terá a oportunidade de fazer o seu primeiro “dérbi” municipal: no Grupo A da Serie C, enfrentará a recém-formada equipe sub-23 da Inter.
A ideia de que Milão possa ter um terceiro clube profissional consolidado já não parece exótica, pois o Alcione vem pavimentando esse caminho com argumentos esportivos e institucionais. A trajetória ainda está no início e pode ser cedo para dizer se os arancioblù serão protagonistas em nível nacional um dia, mas não é exagero reconhecer que o time já ocupa um lugar singular no panorama do futebol italiano, pela coerência e pela ambição de seu projeto. Há promessas no horizonte, talentos na base e uma convicção crescente de que a agremiação de via Olivieri não quer só fazer uma revoada. Se der mole… créu.