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·04 de janeiro de 2023

Cada Ricardo que lide com o Kaká dentro da sua consciência

Imagem do artigo:Cada Ricardo que lide com o Kaká dentro da sua consciência

Em 1997, após o dia dos pais, voltamos de São José dos Campos para São Paulo. Ao chegar em casa, minha avó passou mal. Na manhã seguinte a família estava de novo unida, em luto. Dona Lucy havia morrido e eu, 13 anos incompletos, me recusei a ir ao velório. É uma coisa assustadora para qualquer menino. Meu tio pediu para andar comigo pelo quarteirão, e, com uma lábia simplória sobre arrepender-se de algo que não tem volta, me convenceu a acompanhar a família no cemitério. Eu não tinha idade para sustentar minha decisão. Me arrependi de ver minha amada vó pela última vez.

Senna foi a primeira morte de alguém que eu conhecia. Dias tristes e grotescos, até CD com a música da vitória do piloto em versões fúnebres pingou em casa. Depois, um assalto tirou a vida de um amigo de mamãe, o Nicolau. Lembro dela vestindo o casaco e saindo apressada e arrasada do quarto. Aos poucos, a gente vai entendendo, manejando, achando uma forma possível de lidar com a finitude. Religiosidade, espiritualidade, filosofia, diversas formas de olhar a morte – que é, em algum momento, pensar no dia em que o morto seremos nós.


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Não me zanga que a ausência ao funeral de Pelé por parte dos campeões do mundo de 1994 e 2002 (exceção feita a Mauro Silva, funcionário da Federação Paulista), bem como a falta dos não-campeões de 1998, 2006 e demais mundiais, tenha o devido destaque, inclusive deste texto. Talvez o certo fosse ignorá-los, em gesto de reciprocidade, mas, em um ambiente público no qual toda crítica, decepção e indignação é seguido de um “mas você esperava o quê?”, tem lá o seu gosto notar que sim, a gente espera conexão e decência por parte dos nossos ídolos da bola. A gente esperava, diante do fim do Rei, mais daqueles que reis não são.

Não é exagero nem egoísmo nem absurdo esperar que Ronaldo, ou Kaká, ou Neymar, ou Hulk, ou Luis Fabiano, ou Dida, ou Marta, ou Roberto Carlos, ou Falcão, ou Vampeta, “percam” dois dias de férias, sejam mais um na fila, mostrem que sabem onde pisam. A cidade de Santos, que recebeu as visitas de Elano, Zé Roberto e mais de 200 mil pessoas, nem precisava. Do seu tamanho, com o seu jeitinho de cidade simples, Santos se despediu de Pelé do mesmo jeito que o encantou, sem fingir ser Nova Iorque. A Vila Belmiro, tão bonita e conectada com o seu entorno, tinha tudo e todos que precisava ter. Quem notou a falta dessa gente, a rigor, foi a gente. Pelé, a Vila, Santos, ali, por 24 horas e mais um percurso em carro dos bombeiros, pareciam se bastar.

Se bastavam e trocavam pulsões vitais. É difundida à exaustão a ideia de que morre Edson, mas Pelé segue vivo, eterno e infalível. Ao usar a mesma ideia de linguagem, separando a pessoa física da alcunha futebolística, pergunto: quem faltou foi o Marcos Evangelista ou o Cafu? O Marcos Roberto ou o São Marcos? O Ricardo ou o Kaká? O Ronaldo Assis ou o Ronaldinho Gaúcho? Quem morreu um pouco no coração da torcida, os “Edsons” ou os seus respectivos “Pelés”? Quem não abriu mão de um dia 2 de janeiro em Curaçao, Noronha, Bahamas, Dubai, California, foram os Josés Robertos ou os Bebetos?

A mim, é curioso e ofensivo até pelo viés do egoísmo. Nem o impulso individualista, comum a alguns boleiros, que os faria dar as caras por autopromoção, ocorreu – e seria um voo quase solo, muitos perderam a chance de “ficar bem na fita”. Quando a opinião pública começou a notar a ausência quase completa de ex-jogadores, os “instas” dos ditos cujos tentou fazer aquele silêncio que grita “me esqueçam”. Não é que “pegou mal”: é que o futebol brasileiro vive, há décadas, debatendo que catso acontece que o público e as estrelas não conseguem mais ter a aderência que já tiveram um dia, e, nesse sentido, o velório de Pelé é sintoma, diagnóstico e receita.

Pegou péssimo. Foi infame, miserável, mesquinho, indigno. A primeira grande estrela ausente a se manifestar sobre o vazio que deixaram no velório do Rei, o ex-goleiro Marcos, insinuou que o evento de despedida foi um “show” e que ninguém foi no enterro de seus pais. Ora, um “show” é tudo que o funeral, elegante, silencioso, respeitoso, moderado, não foi. Mais outros, cedo ou tarde, falarão sobre o caso. Farão diferente do ex-goleiro, talvez não porque pensam diferente, mas porque interpretam a opinião pública e tentam, sempre, manter suas imagens em um lugar insípido, sem graça, blindado, inatacável.

Não acho que minha avó, para a eternidade, me ame menos ou mais só porque eu a visitei no seu enterro. Religião, espiritualidade ou filosofia à parte, tenho muito a aprender sobre como lidar com a finitude – tendo a achar que quando acaba, acabou, e sinto inveja de quem se mantém esperançoso sobre reencontros além da vida. Seja como for, em qualquer instância terrena ou espiritual, Pelé não deve ter se importado tanto quanto a gente. Butragueño, representando o Real Madrid, aquele clube que nunca seduziu Pelé o suficiente, atravessou a Europa para pontuar que velórios são sobre partidas, não sobre contrapartidas. Cada Ricardo que lide com o Kaká dentro da sua consciência.

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