Calciopédia
·31 de outubro de 2024
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Por mais que a Roma seja um dos clubes mais tradicionais da Itália, é inegável que a sua sala de troféus não acompanha toda a mística de quem leva o nome da Cidade Eterna. Ao longo de seu primeiro centenário de história, com dígito triplo a ser alcançado em junho de 2027, foram conquistados 17 títulos oficiais. Em meio a tal “escassez” de conquistas, que, não se engane, não envergonha os mais fiéis adeptos romanistas, tornar-se campeão pelos giallorossi é um feito que merece não só ser celebrado, mas ser sempre recordado. Não é à toa, portanto, que um húngaro de nome Alfréd Schaffer tem o seu lugar mais do que reservado no hall de lendas da agremiação capitolina. Ele foi ninguém menos do que o homem que levou a Loba ao seu primeiro scudetto.
Pioneirismo é algo, de fato, marcante. Se o seu time, caro leitor, não for o maior vencedor de uma determinada competição, tenho certeza que poder chamá-lo de “primeiro campeão”, se for o caso, é um legítimo e honroso acalento. Ao mesmo tempo, no entanto, é perdoável que você, torcedor romanista – principalmente se estiver chegando agora a essa apaixonada jornada –, não conheça Schaffer. Afinal, contar uma história dos anos 1940 parece tão, tão distante, não é mesmo? Meu avô me dizia, por exemplo, que os brasileiros pouco sabem sobre o futebol antes de 1950. É nesta década que temos a nossa grande primeira referência histórica do quanto o futebol pode ser cruel, com o Maracanazo, e também do quanto ele pode ser o esporte da realeza, com os campos conhecendo um tal de Edson.
Pois bem, depois de tanto divagar, é hora de falar sobre Alfréd – permita a um romanista a liberdade de chamá-lo pelo primeiro nome em alguns momentos. Nascido em 13 de fevereiro de 1893, na capital Budapeste – à época pertencente ao Império Austro-Húngaro –, Spezi, como era conhecido, teve uma juventude marcada pelo crescimento em um ambiente de constantes mudanças políticas. Sob a multiculturalidade de sua realidade, herdou traços de gentileza e carisma, o que se elevou quando chegou ao futebol, primeiramente por clubes amadores da região. Spezi, inclusive, apelido que recebeu nos relvados, significa algo como “companheiro” ou “amigo” em alemão coloquial.
Ao longo de sua carreira como jogador, que começou a decolar no MTK Budapest, Schaffer foi um centroavante de talento e fino trato com a pelota. Times tradicionais como o Nürnberg, o Basel e o Sparta Praga foram alguns dos que contaram com os seus serviços. Tal sorte foi compartilhada pela seleção húngara, embora apenas em amistosos. Foram 15 gols marcados em 12 jogos. Uma marca de respeito, mesmo que os adversários não tenham sido tão variados – foram 14 duelos contra a Áustria e um diante da Suíça. No geral, de 1912 a 1926 os campos contaram com o seu talento dentro deles.
Sua jornada como técnico seguiu imediatamente após o término de sua carreira como jogador, mas vale a curiosidade de que, de 1919 a 1920, ele não só jogou pelo Nürnberg, como também comandou o time alemão. De início, então, “oficial” no finado DSV München, em 1926, Spezi rapidamente elevou o seu patamar e teve passagens vitoriosas pelo MTK Budapest e também pelo Rapid Bucareste. Com seu nome ganhando notoriedade, em 1940 foi contratado pela Roma. Mas não sem antes, em 1938, ter dirigido, ao lado de Károly Dietz, a Hungria vice-campeã mundial. Na ocasião, perdeu a final para a Itália, por 4 a 2.
Adepto da escola tática húngara, aficionada por um esquema que passou a ser conhecido como WM – traduzindo, uma espécie de 2-3-2-3 –, Schaffer logo abriu os trabalhos para impor o seu estilo de jogo. Contudo, sua primeira temporada completa – ele chegou nas quatro últimas rodadas da Serie A anterior, substituindo Guido Ara – resultou em pouco a ser salvo pelos giallorossi.
A agremiação da capital terminou em 11º lugar em um campeonato que, naqueles tempos, tinha 16 clubes. Foram 29 pontos divididos em nove vitórias, que valiam apenas dois na época, 11 empates e 10 derrotas. O Novara, rebaixado em 15º lugar – somente os dois últimos vivenciavam o descenso – terminou com 27, apenas dois a menos do que a Roma, o que mostra que a temporada vermelha e amarela não foi das mais fáceis. Ainda assim, a diretoria resolveu seguir com o treinador.
Valeu a pena, pois Schaffer comandou a Loba numa excelente campanha na Coppa Italia, que era disputada, naqueles tempos, assim que a Serie A terminasse. Entre maio e junho de 1941, o húngaro deu vida a uma nova Roma, que eliminou Fanfulla, Novara (que havia sido rebaixado à segundona), Fiorentina e Torino. Na final, após um 3 a 3 na ida, os giallorossi caíram na volta, por 1 a 0, para o maior Venezia da história. Um time que contava com Ezio Loik e Valentino Mazzola, que iriam formar o mítico Grande Torino meses depois.
Por mais que os resultados em campo fossem importantes, um outro contexto não podia ser ignorado: o da II Guerra Mundial. Em junho de 1940, desfalcada de munição para combate, a Itália, ainda sob a tutela do fascismo, declarou guerra à Inglaterra e à França. Em outubro, uma derrota na tentativa de invadir a Grécia colocava em xeque a capacidade de liderança do ditador Benito Mussolini, em um cenário no qual o país começava a mergulhar fundo em situação de miséria. Os anos seguintes só foram de pioras no cenário. O futebol, mais do que nunca, era uma valiosa válvula de escape para um momento de tantas e tamanhas incertezas.
Schaffer ficou conhecido por faturar o primeiro scudetto romanista e obter a conquista com esquema tático pouco usual na Itália (Arquivo/AS Roma)
De volta aos gramados, aqueles tempos não foram de total prejuízo para os romanistas. Apesar da má campanha na Serie A e do vice da Coppa Italia, o jovem filho de um padeiro desfilava em campo: Amedeo Amadei, autor de uma tripletta na já mencionada decisão. Com apenas 19 anos, o talentoso atacante herdou a vice-artilharia dos pontos corridos nacionais, com 18 gols marcados, ao lado de Romeo Menti, da Fiorentina. Ettore Puricelli, destaque do campeão Bologna, foi o goleador máximo, com 22 tentos.
Estava claro que o jovem goleador era o nome ao qual Schaffer deveria se agarrar para desenvolver um trabalho de destaque, superando as desvirtudes de sua primeira temporada completa. Mas não se engane, outros bons talentos abrilhantavam o plantel giallorossi, como o capitão e seguro goleiro Guido Masetti e os pontas Miguel Ángel Pantó, oriundo da Argentina, e Naim Krieziu, da Albânia. Com jogadores versáteis para um esquema igualmente capaz de se transformar ao longo das partidas, o húngaro logo mostrou por que não demoraria para colocar o seu nome no panteão de deuses romanos – ou melhor, da Roma.
A jornada na temporada de 1941-42 não teve o melhor início. No primeiro jogo, contra o Novara, a derrota por 1 a 0 sacramentou de cara a eliminação na Coppa Italia e o troco dos piemonteses, eliminados na edição anterior do torneio no tapetão, devido a agressões da torcida azzurra ao árbitro Giuseppe Scarpi, quando os capitolinos venciam por 2 a 1 e encaminhavam a classificação no campo. Mas o pontapé de partida na Serie A logo apagaria a impressão negativa deixada. Nas primeiras 17 rodadas, somente o Genoa, que venceu a Roma por 2 a 0 na quarta dessas partidas, teve a força necessária para derrotar os giallorossi. Nove vitórias e sete empates foram os outros resultados no período.
O esquema WM, mencionado no início do texto, ainda não era tão comum no futebol italiano. Enquanto os times do país eram majoritariamente adeptos de formações mais conservadoras e ligadas à tradição do chamado “metodo” de Vittorio Pozzo e também ao catenaccio, que surgiu na década de 1930 e privilegiava os ferrolhos defensivos, Alfréd tinha em mãos um esquema que podemos chamar de revolucionário para os padrões daquele tempo. Transitando entre o 2-3-2-3 e o 3-2-2-3, a Roma jogava de forma que permitia aos meio-campistas ajudarem tanto na defesa quanto na criação. Quem disse que box-to-box é uma invenção atual?
A ideia de Spezi era clara: seu time deveria ser sólido defensivamente, mas também precisava ser letal. Dando um pequeno spoiler – de algo que aconteceu nos anos 1940 (?) – do que será contado ao longo do texto, adiantamos: a Roma não só teve a melhor defesa da competição, levando 21 gols em 30 jogos, como teve o segundo melhor ataque, com 55 marcados, atrás apenas dos 60 do Grande Torino. Foi necessário mais de uma temporada para os jogadores se acostumarem com a tática, mas valeu a pena.
Mostrando-se quase imbatível, a Roma, naturalmente, empolgava o seu torcedor. Para uma torcida órfã de títulos naqueles primeiros 15 anos de existência da agremiação, a evolução tática era um deleite para os olhos. Schaffer parecia apresentar uma surpresa a cada jogo. Seu time era montado para desempenhar uma pressão alta, retomar a bola rapidamente e valorizar sua posse. Com jogadores jovens e fisicamente fortes, os momentos de aceleração e explosão eram cuidadosamente calculados para ferir ao máximo os adversários. Qualquer semelhança do futebol moderno com a escola austro-húngara não é mera coincidência.
A consistência era um fator determinante. Embora o encanto das 17 primeiras rodadas tenha chegado perto de quebrar, com três derrotas nas quatro jornadas seguintes, a Roma rapidamente voltou aos trilhos. Tanto que não sofreu mais nenhum revés ao longo da campanha. As vitórias por 7 a 0 contra o Liguria e 6 a 0 contra a Inter, nos tempos em que tinha Ambrosiana no nome, foram as cerejas do bolo para coroar a obsessão tática de seu treinador. O equilíbrio entre defesa, meio e ataque atingia o ápice de sua harmonia.
Os triunfos conquistados nas duas últimas rodadas, ambas por 2 a 0 contra Livorno e Modena, abriram os pulmões para os gritos plenos de seus torcedores. Em 14 de junho de 1942, a Roma conquistava a sua primeira liga e Alfréd Schaffer entrava para a história de uma agremiação cuja torcida sabe como poucos como valorizar aqueles que lhe garantem o mais honesto sentimento de felicidade.
A foto oficial dos campeões: Schaffer se encontra atrás do presidente Edgardo Bazzini, de camisa branca (Arquivo/AS Roma)
Ah, e não nos esqueçamos de Amadei. Como esperado, o atacante assumiu o protagonismo. Novamente, terminou o campeonato com 18 gols e, também de novo, na suficiente e honrosa vice-artilharia, desta vez acompanhado por Renato Gei (Fiorentina) e Silvio Piola (Lazio). O dono da maioria das bolas na rede foi Aldo Boffi, responsável por 22 dos 53 tentos do Milan no torneio. Ao final da competição, a Roma teve 42 pontos, conquistados com 16 vitórias e 10 empates. As poucas derrotas, quatro no total, foram determinantes para a vantagem de três pontinhos sobre o Torino e de quatro diante do Venezia. Além disso, repetindo, teve a melhor defesa e o segundo melhor ataque.
O título da Serie A de 1941-42 ficou marcado como o ponto culminante da era Schaffer no clube. A vitória trouxe prestígio à Roma e alimentou o orgulho de uma torcida tão cheia de… orgulho! Além de consolidar a loba na elite do futebol italiano, o húngaro também trouxe à instituição uma mentalidade vencedora. A Loba pode ter poucas taças, mas tem a obrigação de brigar por todas.
Na temporada seguinte, Spezi não teve a oportunidade de seguir com o seu trabalho vencedor. Por uma série de fatores, sua jornada teve fim na 10ª rodada do Campeonato Italiano, quando ostentava uma campanha de meio de tabela, ainda em estágio de crescimento, e a manutenção na Coppa Italia. Em decorrência da guerra e do cada vez mais decadente momento vivido pelo país, estabilidade era uma palavra folclórica. O caos econômico e político levou os clubes a enfrentarem momentos de grande dificuldade financeira, logística e até mesmo de recursos humanos. Mas não foi só isso.
Após a conquista do título, as prioridades do clube mudaram. As de Schaffer, também. Irrequieto com a guerra e com a esposa, que tinha uma cervejaria em Munique, na Alemanha, o húngaro vivenciou um episódio traumático que serviu como gota d’água, em 8 de novembro de 1942. Naquele dia, a Roma deixou o seu hotel no balneário de Rapallo para seguir, de trem, até a vizinha Gênova, onde enfrentaria o Liguria. Porém, no meio do caminho, sirenes indicando um ataque aéreo dos Aliados soaram e a composição parou na estação de Recco, onde foi atingida por outra locomotiva, num acidente que deixou feridos. Os giallorossi não foram bombardeados, mas a partida foi cancelada e todo a situação fez com que Alfréd decidisse sair do país.
Quatro rodadas depois, nas quais somou uma derrota no clássico com a Lazio, Schaffer se demitiu da Roma com o retrospecto de 36 vitórias, 29 empates e 19 derrotas em 84 jogos, além do scudetto. Alfréd deixou em seu lugar o amigo, também húngaro Géza Kertész, que já tinha carreira no futebol italiano, inclusive na rival capitolina. O seu sucessor, aliás, é uma figura emblemática e morreria antes do final da guerra, como herói e mártir: foi fuzilado pelos nazistas porque ajudava a salvar judeus durante o holocausto. A propósito, algumas fontes afirmam que Alfréd também teria origem judaica, embora não seja crível que um hebreu pudesse trabalhar na Itália Fascista e na Alemanha Nazista enquanto vigoravam as leis raciais.
Aliás, vale um aparte sobre como o país de Schaffer e Kertész se relacionava com a nação italiana naquele momento e o que o desenrolar desse vínculo impactaria no esporte. Resumindo uma complexidade, Hungria e Itália, outrora aliadas do Eixo, tornaram-se futuramente inimigas na II Guerra, embora não tão diretamente. É que, em 1943, o território itálico se dividiria em dois, conquistado pelos Aliados do centro ao sul, enquanto a chamada República de Salò seria mantida como estado fantoche nazista em sua parcela setentrional. Assim, os campeonatos nacionais de futebol foram interrompidos.
De 1942 a 1945, o Ferencváros, da Hungria, e o Bayern de Munique, na Alemanha, foram os últimos clubes a ter o técnico à disposição. No time de seu país, venceu a taça nacional em 1943 e 1944. Em 1945, teve a carreira e a vida abreviadas. Em 30 de agosto, três dias antes do fim da II Guerra Mundial, faleceu na Baviera, na cidade de Prien am Chiemsee, aos 52 anos. Schaffer faleceu, veja só a ironia, num vagão de trem, em circunstâncias nunca esclarecidas. Seu corpo foi encontrado na estação ferroviária local por um torcedor dos Roten, que o identificou.
Embora a causa da morte ainda seja uma incerteza – e, provavelmente, sempre será –, acredita-se que os horrores da Guerra foram os responsáveis por levá-lo a outro plano. Para o torcedor romanista, que teve o privilégio de sorrir e festejar mesmo durante um dos piores momentos da história da humanidade, Schaffer sempre será imortal.
Alfréd Schaffer Nascimento: 13 de fevereiro de 1893, em Budapeste, Áustria-Hungria Clubes como jogador: Tatabánya (1912-14), MTK Budapest (1914-19, 1922-23), Basel (1919-20*), Nürnberg (1919-21), Wacker München (1921-22), Sparta Praga (1922 e 1925-26) e Austria Vienna (1923-25) Títulos como jogador: Campeonato Húngaro (1917, 1918 e 1919), Campeonato Alemão (1921), Copa da Áustria (1924) e Campeonato Austríaco (1924) Carreira como treinador: Nürnberg (1919-20 e 1934-35), DSV München (1926-27), Wacker München (1927-28 e 1930-32), Berliner SV (1929-30), MTK Budapest (1933-34 e 1935-37), Hungria (1938), Rapid Bucareste (1939-40), Roma (1940-42), Ferencváros (1943-44) e Bayern de Munique (1944-45) Títulos como treinador: Campeonato Húngaro (1936 e 1937), Copa da Romênia (1940), Serie A (1942) e Copa da Hungria (1943 e 1944)
*Schaffer fez um jogo de liga pelo Basel e algumas partidas “teste” no clube. Por isso as datas podem se confundir com a sua passagem pelo Nürnberg, onde foi jogador e treinador.