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·29 de julho de 2025

Acredite: o Pará tem muito a ver com os primórdios da Inter e da seleção italiana

Imagem do artigo:Acredite: o Pará tem muito a ver com os primórdios da Inter e da seleção italiana

Colaboração de Caio Brandão

Mais acima, registro antes da primeira final da Olimpíada de 1928: o capitão uruguaio José Nasazzi; o fundador interista Aquiles da Gama Malcher como bandeirinha; o árbitro Job Mutters; o outro auxiliar, Jean Langenus (que seria juiz da final da Copa de 1930); e o capitão argentino Luis Monti, vencedor do Mundial de 1934 pela Itália


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Cidade em que nasceu Sócrates, de passagem pela Fiorentina, Belém comemora 410 anos de fundação em 2026. Quando ela completou 400, em janeiro de 2016, a Trivela relembrou os paraenses que já defenderam a Seleção – em nota cuja introdução destaca que um nativo, Aquiles da Gama Malcher, esteve entre os fundadores da Inter e foi, inclusive, autor do primeiro gol da história do clube, e logo em clássico com o Milan. Mas teve mais: ele foi juiz, inclusive em final de Olimpíada, e técnico, até mesmo no Corinthians. Além disso, Giuseppe, seu irmão, também esteve na gênese da Beneamata, da Associação Italiana de Árbitros e do próprio selecionado da Itália.

Nada disso impede que Aquiles, grafado em vida sob a antiga forma Achilles (e mais conhecido em Milão pela versão italiana Achille), seja curiosamente esquecido na cidade natal, onde seus sobrenomes têm força e remontam até à Cabanagem. Ele tampouco costuma ser lembrado no resto do Brasil. Em 29 de julho, quando se completa novo aniversário de sua morte, contamos um pouco dessa história – passando pelo intercâmbio italiano com a metrópole da Amazônia, cheio de episódios relacionados com os Gama Malcher.

Antecedentes italianos em Belém

O meridiano pactuado ainda antes de 1500 por Portugal e Espanha no Tratado de Tordesilhas se estende de Belém até Laguna. Mas foi somente após franceses fundarem São Luís, já em 1612, que Portugal buscou consolidar seu domínio no norte brasileiro: os repeliu dali em novembro de 1615 e, usando a capital maranhense como entreposto, realizou expedição que chegou em 12 de janeiro de 1616 ao que hoje é a Cidade Velha de Belém. O bairro inclusive possui um marco, que merece reparos, e delimita por onde passaria o meridiano de Tordesilhas, em frente ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

Para garantir a presença portuguesa, os europeus construíram um forte, ainda presente na paisagem. Mas, ao longo do século XVII, os domínios de Portugal na América se expandiram para além do meridiano de Tordesilhas. Nos anos 50 do século XVIII, a capitania do Pará foi governada por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do próprio Marquês de Pombal. Furtado estava mais preocupado com a delimitação da nova fronteira luso-espanhola na região.

O chamado “Forte do Castelo” começou a se defasar para funções militares, mas o cartógrafo bolonhês requisitado para trabalhar na demarcação fronteiriça possuía dotes de arquiteto. Antonio Giuseppe Landi chegou em 1753 a Belém, mais de um século antes da imigração italiana no Brasil ganhar forma.

Cúpula da Paróquia de Sant’Ana da Campina, uma das obras que o italiano Antonio Landi projetou em Belém nos anos 1700. E local de batismo de uma das irmãs de fundadores da Inter (Arquivo/Caio Brandão)

O “Giuseppe” foi aportuguesado para “José”: Landi passaria as quatro décadas seguintes na capital paraense, projetando construções ou reformulações de prédios diversos na Cidade Velha e no bairro vizinho da Campina, conferindo um estilo único às construções barrocas e neoclássicas de Belém – mesclando desenho italiano com materiais portugueses. Uma delas, a Paróquia de Sant’Ana da Campina, seria tão “italiana” que teria ligeiras reformas para ficar mais lusitana, segundo exposição do Museu de Arte Sacra de Belém. Essa paróquia se situa na Rua Padre Prudêncio, que era antes conhecida como “Rua do Landi” por ser onde o arquiteto morava, empenhado na obra da igreja dedicada à santa da qual era devoto.

Outra das obras de Landi são a Igreja de São João Batista, situada na Rua João Diogo. Ela chegou a ser a Igreja de Sé em Belém até o italiano trabalhar na conclusão da reforma da Catedral Metropolitana (de onde começa o Círio de Nazaré), em cuja lateral começa a Rua Dr. Malcher. Essas ruas não tinham esses nomes enquanto Giuseppe viveu: João Diogo Clemente Malcher e o médico (daí o “Dr.”) José da Gama Malcher foram políticos já da Belém da Borracha, no século XIX. Tempos em que a cidade enriqueceu de modo equiparável ao chamado Eixo Rio-São Paulo.

Dos resquícios arquitetônicos do Ciclo da Borracha, o mais grandioso é o Theatro da Paz, cuja decoração foi assinada por um romano, Domenico De Angelis. O teatro está situado na Praça da República e uma das vias de acesso a ela é a Avenida Governador José Malcher (que logo antes de chegar à praça passa ainda pelo palacete onde morava o engenheiro de sugestivo sobrenome, Francisco Bolonha).

Panorama vertical do interior do Theatro da Paz, decorado no século XIX por Domenico De Angelis – e onde muito trabalhou o pai de fundadores da Inter (Arquivo/Caio Brandão)

Claro: muita água passou pelos igarapés que margeavam a cidade entre as obras de Landi e a Era da Borracha. Belém não concordara de imediato com a independência brasileira. Foram quase dois anos até isso ocorrer e um dos líderes dessa adesão foi outro italiano, provavelmente chamado Giovanni Balbis – que virou por aqui o “João Balbi”, outro nome de rua. Acostumada a reportar-se diretamente a Lisboa, a capital paraense acabou marginalizada por Dom Pedro I e pelos regentes que o sucederam. O ranço foi se tornando recíproco e, pouco mais de 10 anos depois da adesão à independência, eclodiu a Cabanagem. O primeiro líder empossado pelos cabanos? Félix Antônio Clemente Malcher…

Como Belém respingou em Milão

Félix Antônio Clemente Malcher era um dos filhos de Antônio José Malcher de Revigelly, que seria um imigrante holandês segundo reportagem “Uma família paraense”, publicada em 1989 pelo jornal O Liberal. Nasceu em família relativamente abastada, a ponto de acabar vítima do movimento popular cabano que ele próprio ajudara. Foi sepultado na Igreja do Carmo, um dos templos religiosos em que Antonio Landi trabalhou – facilmente acessível na Cidade Velha de Belém após um caminho curto em que o interessado passa pelas sedes náuticas do trio Paysandu, Tuna Luso e Remo. João Diogo Clemente Malcher era filho de Félix.

Uma das filhas de Antônio José e, portanto, irmã de Félix (bem como tia de João Diogo), foi Anna Michelle Malcher. Ela foi casada com um tenente de outra família bem relacionada, o português João da Gama Lobo – parente, por exemplo, de Manoel da Gama Lobo d’Almada, governador no século XVII do que hoje é o Amazonas.

Félix Clemente Malcher, tio-tataravô de fundadores da Inter, é um dos cinco simbolicamente sepultados nessa obra de Oscar Niemeyer (Arquivo/Caio Brandão)

Desse casamento entre Anna Michelle e João da Gama surgiu a família Malcher da Gama, a originar diversos ramos; a filha Anastácia Malcher da Gama Lobo, ao casar-se com João Coelho da Gama e Abreu, gerou a família Gama Abreu – um dos descendentes dela foi o Barão do Marajó, homenageado com a rua Gama Abreu, outra das que dão acesso à praça onde fica o Theatro da Paz.

Outra filha de Anna Michelle e de João da Gama foi Maria do Carmo Malcher da Gama Lobo. Ela casou-se com um primo, o major Aniceto Francisco Malcher, originando o ramo Gama Malcher: José da Gama Malcher, o “Dr. Malcher”, foi filho deles. Além de nome de rua, também é homenageado com uma estátua na Cidade Velha. Essa escultura fica justamente em pracinha atrás de outro templo religioso assinado por Landi, a Igreja das Mercês.

O camelódromo que hoje toma conta da pracinha camufla que ela foi um dos palcos mais violentos da Cabanagem. Fala-se em oitocentos cabanos mortos ali por atiradores posicionados no teto dos prédios que circundam a praça, onde havia um depósito de armas que interessavam aos revoltosos. Um dos mortos na tentativa de tomada foi um dos líderes do movimento, Antônio Vinagre – mencionado aqui por ter sido sepultado em outra das obras que passaram pela mente de Landi, a Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Pelos 150 anos da Cabanagem, o governo do Estado encomendaria obra de Oscar Niemeyer para servir de túmulo aos líderes, mas não pôde localizar nem os ossos de Vinagre e nem os de Félix Malcher; os sarcófagos que os representam sob o Memorial desenhado por Niemeyer foram preenchidos com terra dessas igrejas.

Estátua de José da Gama Malcher – avô de fundadores da Inter – na Praça das Mercês, palco de guerra na Cabanagem (Arquivo/Caio Brandão)

Debelada a Cabanagem, João Diogo Clemente Malcher, mesmo sendo filho de um dos líderes da revolta, pôde se estabelecer na política local como presidente da câmara municipal. Nos anos 70 do século XIX, convivia na câmara com o parente José da Gama Malcher (o “Dr.”), filho do mencionado casal de primos de João Diogo – Aniceto e Maria do Carmo. Uma das crias do Dr. Malcher também se chamou Aniceto e foi tabelião do juízo de casamentos no fim do século XIX. Um outro foi José Cândido da Gama Malcher.

Ao contrário dos parentes, José Cândido não virou político e nem nome de rua (o “Governador José Malcher” foi outra pessoa), mas, como maestro, foi compositor dos arranjos do hino do Pará. E propiciou o intercâmbio Belém-Milão. Já era objeto de notícia em 1873, quando O Liberal do Pará reportou que iria estudar em Nova York. Mas o que mais interessa aqui é uma publicação do mesmo jornal ocorrida já em 1881: “chegou ontem da Europa, no vapor inglês Cearaense, o sr. José Cândido da Gama Malcher, filho do nosso distinto e honrado chefe dr. José da Gama Malcher (…). O sr. José Cândido foi graduado em composição pelo real conservatório de música de Milão (…). Nós o cumprimentamos cordialmente e faremos votos para que em breve ocupe a brilhante posição a que tem jus pelos seus estudos e talento manifesto”.

Essa chegada triunfal também foi reportada em 1881 no jornal A Constituição, a complementar que “o maestro Malcher” também se propunha a dar aulas de italiano.

Registros do maestro José Cândido da Gama Malcher na imprensa paraense no século XIX. Ele é o pai de dois fundadores da Inter

O livro Atualidade da Ópera, organizado em 2012 por Maria Alice Volpe para a série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, complementa que o maestro fora enviado pelo pai aos EUA para estudar engenharia, mas, “cedendo à sua tendência natural para a música, transportou-se, em 1876, para Gênova, matriculando-se um ano mais tarde no Conservatório de Milão”. Parece ter se tornado poliglota para além do italiano e do inglês, idioma do qual chegou a dar aulas em 1895 no Liceu Paraense (atual Colégio Paes de Carvalho, vizinho de quarteirão da Academia Paraense de Letras, onde antes se situava o conservatório de Belém): o antigo Almanaque Laemmert o listou como tradutor juramentado também de espanhol, francês e até de alemão.

Quando José Cândido voltou a Belém, o pai era o presidente interino da Província. Cenário propício para que o Theatro da Paz ficasse sob as mãos do maestro, que pôde convencer Carlos Gomes a fazer temporadas na casa e, por fim, radicar-se na capital paraense – embora a convivência de ambos os gênios descambasse para rivalidade.

O músico paraense não parecia ter receio de desagradar a família ou críticos preciosistas: se nos anos 70 seu virtual tio-avô João Diogo anunciava recompensas a quem encontrasse escravos em fuga, nos anos 80 uma ópera de teor abolicionista feita pelo maestro, Bug-Jargal, precisou aguardar até 1890 para ser encenada no Theatro da Paz e ser então questionada pela ousadia de empregar instrumentos de carimbó para cantorias em italiano. Esta última informação consta em Maestro Gama Malcher, publicado em 2005 por outro musicólogo, Vicente Salles.

A certidão de batismo (à esquerda) e a certidão de óbito (à direita) de dois filhos do casal José Cândido e Palmira, respectivamente para Anna Cândida e para Aquiles

O maestro passou os anos 80 do século XIX no vaivém entre Belém e Milão, onde encomendava a impressão dos seus livretos. Tanto o livro Atualidade da Ópera quanto a dissertação As Trilhas Amazônicas de Ettore Bosio (apresentada em 2018, na UFPA, por Amanda Brito Paracampo) assinalam que nessa cidade italiana foi onde ele conheceu a esposa Palmira Belatti e que ali também nasceu o primeiro de 11 filhos do casal.

O site FamilySearch pôde encontrar certidões alusivas a dois desses filhos: a de batismo, em 1900, de Anna Cândida – merecendo atenção de que a cerimônia se deu na mesma Paróquia de Sant’Ana projetada por Landi e que um dos padrinhos foi “o desembargador Gentil Bittencourt”, hoje nome da avenida onde se endereça a sede atual do Conservatório Carlos Gomes; e a de óbito, em 1958, por “insuficiência cardiorrenal”, de Achilles da Gama Malcher. Era essa a grafia correta no português para o nome “Aquiles” quando este fundador da Inter nasceu, em 1892.

No auge do prestígio, José Cândido também se tornou primeiro patrono de uma das cadeiras de Academia Brasileira de Música. Mas um século bastou para que terminasse ofuscado na própria terra: em 1989, o jornal Diário do Pará chegou a assinalar que costumava ser confundido com o ex-governador José Malcher. Em 2006, a notícia de que outra das óperas do maestro, Iara, voltaria ao Theatro da Paz recebeu destaque até no Jornal do Brasil, em matéria que o chamou de “visionário”.

O football chega aos paraenses, os paraenses chegam ao calcio

O tal ex-governador José Malcher era bisneto do “Dr.” Malcher por linhagem diferente: outro dos filhos deste (e, portanto, irmão do maestro) chamou-se Aniceto Francisco da Gama Malcher, que foi no século XIX tabelião do ofício de casamentos. Ele teve um filho de mesmo nome, Aniceto Carneiro da Gama Malcher – primeiro presidente da Assembleia Paraense, clube social mais associado à elite belenense. E este Aniceto, por sua vez, foi o pai do governador (de 1935 a 1943), cujo nome completo era José Carneiro da Gama Malcher. Para fins de nome de rua, reduziu-se para “Governador José Malcher” apenas.

Joaquim de Lamare e José Carneiro da Gama Malcher listados como colegas de escola. À direita, Botafogo “juventino” campeão de 1910 com cinco paraenses (dois De Lamare e três Sodré), todos descendentes de ex-governadores do Pará (Wikimedia)

Um dos colegas de escola de José Carneiro foi um certo Joaquim de Lamare. Este era filho de um homônimo que governou o Pará no século XIX. E foi pai dos dois primeiros paraenses da Seleção Brasileira: Rolando de Lamare (ajoelhado à esquerda na foto acima) e Abelardo de Lamare (sentado ao meio, com a bola) inclusive estiveram ambos no próprio jogo inaugural dela, contra o Exeter City, em 1914. Jogavam no Botafogo, clube que se vestia de Juventus, inclusive com calção branco ao invés de preto.

O clube carioca já tinha influência “paraense” antes dos De Lamare aportarem e antes mesmo de Belém testemunhar o surgimento de Remo ou Paysandu. Um dos fundadores do alvinegro (em 1904), afinal, foi Emanuel Sodré. Seu pai, Lauro Sodré, governou o Pará entre 1891 e 1897 e de 1917 a 1921 – e hoje dá nome oficial para aquele Palácio de Governo projetado por Antonio Landi. Outros filhos desse governador a se tornarem figuras dos primórdios botafoguenses foram Benjamin Sodré, penúltimo sentado na foto acima, e Lauro Sodré Filho, último sentado. Preparavam terreno para futuros conterrâneos, como Nilo Murtinho Braga, tio da atriz Rosamaria Murtinho, ou Octávio Moraes, filho da carnavalesca Eneida de Moraes, ambas belenenses de nascença; ou, sobretudo, para Quarentinha, ex-estudante de colégio que levava o nome de Lauro Sodré.

No mesmo 1910 em que o Botafogo vencia pela primeira vez isoladamente o Estadual (a ponto de o ano constar na letra original do hino composto por Lamartine Babo), a recém-criada Inter ganhava seu primeiro título italiano. Os nerazzurri haviam sido fundados apenas dois anos antes para abrigar jogadores de todas as nacionalidades, em contraponto ao vizinho Milan. Aquiles/Achilles, ainda assim, teve o nome “italianizado” para Achille. E entrou para a história ao fazer o primeiro gol interista e do clássico com o vizinho, ainda em janeiro de 1909.

O fundador da Inter foi noticiado no Brasil já em 1950, e reportado como italiano mesmo: teve contrato experimental como técnico do Corinthians (registro do Jornal de Notícias). À direita, certidão de óbito do seu irmão José Gama Malcher Filho, em 1941

Irmão de Aquiles e nascido em Milão em 1887, Giuseppe Gama Malcher entrou para a história do futebol italiano por várias questões. Primeiro, era um dos presentes no restaurante Orologio no encontro que originou a Inter e foi nomeado “tesoureiro” na reunião do dia seguinte, conforme o manuscrito de Giorgio Muggiani conservada no arquivo nerazzurro. Também está presente na primeira foto da equipe, tirada em 1909, surgindo de chapéu e bigode entre os atletas.

Multifacetado, Giuseppe também foi atleta de 100 metros rasos e um entusiasta da arbitragem. Em 1911, no mesmo restaurante em que a Inter foi fundada, participou da reunião que fundou a AIA, a Associação Italiana de Árbitros, e fez parte do primeiro conselho de dirigentes da entidade. Entre 1908 e 1912, foi um dos pioneiros do ofício no futebol do Belpaese. Cabe aqui um parênteses: Umberto da Gama Silva Malcher, o mais novo dos irmãos, nasceu em 1895 noutra cidade (Orta Novarese, no Piemonte, mas perto de Milão), e também seguiu o caminho do apito. Ele foi juiz de elite de 1920 a 1934, inclusive dirigindo partidas na edição inaugural da Serie A, em 1929-30. Morreria na capital da Lombardia, em 1942, durante a II Guerra Mundial. Nenhum deles, entretanto, cumpriu serviço militar na Europa, devido à origem brasileira.

Voltemos a Giuseppe Gama. Um ano antes de fundar a AIA, ele também foi indicado como um dos membros da primeira comissão técnica da seleção italiana para a partida de estreia dos azzurri, também em 1910, contra a França, na lendária Arena Civica de Milão, que foi inaugurada em 1807, com a presença de Napoleão Bonaparte. Mais velha praça esportiva da capital da Lombardia, recebe jogos até hoje. Giuseppe eventualmente emigrou a Belém, e, conforme seu atestado de óbito acima, virou José Gama Malcher Filho. Seguiu ligado ao futebol, sendo presidente do Remo entre 1917 e 1918; em sua gestão, o clube adquiriu casa própria no Baenão.

Aquiles, por sua vez, teve uma estadia intermitente na Inter, mas também participou com gol em outro clássico histórico – o 6 a 1 sobre a Juventus em 4 de janeiro de 1914, até hoje a maior goleada do clube milanês no Derby d’Italia. As partidas históricas acabaram camuflando que, em vida, ele pouco se firmou como jogador, se notabilizando muito mais como árbitro. Nessa função, já naturalizado italiano (o que ocorreu em 1919), apitou na Olimpíada de 1928, tanto como juiz principal como também como bandeirinha – papel que exerceu na primeira das duas finais entre Argentina e Uruguai.

Gama também buscou uma carreira de técnico, sendo terceiro colocado com o Bologna na Serie A de 1932-33, após substituir o húngaro József Nagy na reta final da competição. Passou ainda por Venezia (na época, chamado de Serenissima), Matera e Nissena (atual Nissa), sempre na década de 1930. Em 1950, foi até contratado pelo Corinthians.

Tal como o pai, Aquiles acabou esquecido na terra natal, inclusive pela “concorrência” familiar. José Maria da Gama Malcher presidiu o que hoje é a Funai; Celso Cunha da Gama Malcher foi, em 1953, o primeiro prefeito de Belém eleito desde 1912, encerrando décadas de cargos outorgados via nomeação pelo governador do Estado; Clóvis Cunha da Gama Malcher seria reitor da Universidade Federal do Pará; e seu filho de mesmo nome é um dos juristas que assinaram, na década passada, o anteprojeto do novo Código Comercial. Mesmo que a pesquisa se refira somente a futebol, o nome mais lembrado no Brasil é de um sobrinho de Aquiles, Alberto Monard Gama Malcher, igualmente árbitro. Era filho de José da Gama Malcher Filho, o Giuseppe, como chega a ser mencionado no atestado de óbito deste.

Giuseppe Gama Malcher, de chapéu e bigode, à direita, como dirigente nerazzurro na primeira foto oficial da equipe (Arquivo/Inter)

Alberto nasceu em Belém em 3 de março de 1920 e, ainda jovem, esteve em um Re-Pa histórico resgatado em 2025: aos 25 anos de idade, foi quem apitou na maior goleada do Clássico-Rei da Amazônia, o 7 a 0 do Paysandu, jogo que completou 80 anos em julho de 2025, na semana anterior ao fechamento deste texto. Segundo a Enciclopédia do Esporte Paraense, publicada em 2018 por Ferreira da Costa, esse resultado demonstrou a seriedade de Alberto, por este ser reconhecido torcedor remista.

Promovido para se desempenhar nos campeonatos do Sudeste, angariou prestígio rapidamente: foi representante da arbitragem brasileira no Sul-Americano de Campeões vencido pelo Vasco em 1948 e, principalmente, na Copa do Mundo de 1950. Seu obituário pela revista Veja, em 1978, também registra que teria sido o primeiro juiz brasileiro a ousar expulsar Pelé.

Em Milão, sim, Aquiles é reconhecido. Sobretudo por quem valoriza a história nerazzurra, como ninguém menos que o filho da lenda Giacinto Facchetti: ator, escritor e diretor teatral com foco em temas educativos e esportivos, Gianfelice enfatizou em 2024 o gol histórico do paraense, em conversa com o canal Forza Inter Brasil.

Por fim, vale dizer que o intercâmbio Belém-Milão naquela Belém da Borracha teve mais gente. Antônio Faciola, maranhense de nascença (em 1865), graduou-se no Conservatório dessa cidade italiana. Estabeleceu-se em Belém a ponto de ter sido até prefeito interino da cidade, em 1930. Hoje é reconhecido como primeiro proprietário do Palacete Faciola, outro resquício daquela Belle Époque belenense, situado a poucos passos das sedes sociais da dupla Remo e Paysandu – clube presidido por Jorge Faciola por diversas vezes entre 1950 e 1962 e, nos anos seguintes, por outros nomes da comunidade ítalo-paraense, casos de Giorgio Falangola e Romulo Maiorana.

Mais tarde, o lombardo Alfredo Tragni, que foi presidente de Meda e Como, realinharia as relações entre o Pará e a Itália através do futebol. A partir da década de 1950, tornou-se um bem-sucedido industrial madeireiro, importando matéria-prima da América Latina, da África Ocidental e da Índia para as fábricas de móveis e artesanato da Brianza, área histórica da Lombardia que compreende comunas das províncias de Milão, Monza, Como e Lecco. Sua relação com o estado do norte do Brasil foi tão intensa que o seu nome chegou a batizar um estádio de Outeiro, distrito de Belém – posteriormente, a praça esportiva homenagearia Luiz Omar Pinheiro e ganharia uma alcunha mais popular: Mamazão.

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