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·23 de julho de 2025

A tragédia de Renato Curi marcou o Perugia e fez o estádio do clube mudar de nome

Imagem do artigo:A tragédia de Renato Curi marcou o Perugia e fez o estádio do clube mudar de nome

Há jogadores cuja morte interrompe uma trajetória promissora; outros, porém, tornam-se imortais justamente por desaparecerem durante uma curva ascendente, condensando no vazio que deixam uma comoção duradoura e um mito transmitido através das décadas. Renato Curi jamais foi uma estrela nacional no futebol italiano de sua época, mas sua história virou símbolo de um time em ascensão que desafiava as potências dos maiores centros da Itália e de uma tragédia que nunca foi plenamente digerida. Sua presença persiste não apenas no nome de um estádio ou nas flores deixadas anualmente em sua memória, mas naquilo que ele representava para o Perugia naquele exato instante em que sua vida parou, em outubro de 1977, quando tinha apenas 24 anos.

Nascido em 20 de setembro de 1953, em Montefiore dell’Aso, nas Marcas, Curi se mudou ainda criança para os Abruzos, devido ao trabalho do pai. Por lá, na adolescência, cultivou como paixões o violão, a fotografia e o modelismo, além do futebol. No esporte, deu seus primeiros passos na minúscula Marconi Pescara e ingressou nas divisões de base do Giulianova, onde se formou como um meio-campista de técnica discreta, movimentação intensa e inteligência tática acima da média.


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Renato despontou para o futebol profissional nos anos 1970, quando o clube abruzês viveu sua melhor fase histórica. Depois de ter ganho a quarta divisão pelos giallorossi, entre 1971 e 1973, ele foi titular absoluto da equipe que chegou a disputar a Serie C com ambições concretas de um inédito acesso à segundona – em 1972-73, o time treinado por Giovan Battista Fabbri foi vice-campeão do Grupo B da terceirona, quatro pontos atrás da promovida Spal, e semifinalista da Coppa Italia da categoria. Ali, seu estilo já começava a se destacar: sem chamar atenção pelo físico ou por firulas, era um construtor persistente, daqueles que entregam equilíbrio ao meio-campo e regulam o ritmo da partida com passes curtos, pressão constante e disciplina.

As atuações regulares o levaram ao Como, então na Serie B, onde seguiu sua escalada pessoal. Na temporada 1973-74, ainda jovem, enfrentou seu primeiro salto de exigência competitiva, mas não tardou a se adaptar. Os lariani eram ambiciosos e, sob as ordens de Giuseppe Marchioro, tentavam retornar à elite. Curi encontrou ali um contexto em que sua regularidade se tornava virtude. Não era protagonista em campo, mas ganhava crédito como homem de confiança de técnicos e colegas – uma reputação que o acompanharia até o fim.

O Como acabou batendo na trave pelo acesso: foi quarto colocado na Serie B, quatro pontos atrás da Ternana, última das três promovidas. Curi acabou não permanecendo para contribuir com o acesso biancoblù. Mas seria fundamental na promoção do Perugia, clube com o qual assinou no verão europeu de 1974.

A transação com o Como parecia corriqueira, por ser mais uma entre tantas transferências entre agremiações de menor expressão do futebol italiano. Porém, na capital da Úmbria, sua vida e sua carreira mudaram de forma decisiva: o Perugia o contratou, juntamente ao colega Franco Vannini, para reforçar um time que sonhava em alcançar a Serie A pela primeira vez. À época, o clube biancorosso vinha de uma campanha de briga contra o rebaixamento para a terceirona, mas se colocava como aspirante a voos maiores a partir do momento em que o comando técnico foi confiado a Ilario Castagner, ex-atacante grifone na década de 1960. E foi justamente o novo treinador o responsável por levar Curi ao estádio Santa Giuliana.

Em maio de 1973, quando ainda era comandante dos juvenis da Atalanta, Castagner foi enviado para a Sardenha para assistir a uma partida entre Torres e Giulianova, pela terceirona. Era uma tarde triste e chuvosa em Bérgamo – a Dea perdeu o confronto direto com o Vicenza, pela última rodada da Serie A, e foi rebaixada. Assim mesmo, Ilario, com um guarda-chuva em mãos, embarcou num voo rumo à ensolarada ilha para observar um jogador. Não era Curi, mas ele ficou encantado com o futebol de Renato: ao livro “Perugia – Um amor”, o treinador se declarou impressionado com o primor técnico, os passes, os movimentos rápidos e curtos, o jeito de jogar sem a bola, a determinação nos desarmes e o fato de o meia sempre atuar de cabeça erguida. O suficiente para indicar sua contratação à diretoria biancorossa, um ano depois.

Com Curi no time, a temporada 1974-75 acabou sendo memorável para os umbros: o Perugia terminou como campeão da Serie B, garantindo pela primeira vez o acesso à elite nacional. Renato foi peça-chave no sucesso, com sua consistência, posicionamento e capacidade de leitura das jogadas, além de quatro gols marcados – sendo dois sobre o Verona, também promovido, numa vitória fundamental para o título, já na reta final do certame.

Ainda sem o seu característico bigode, Curi se destacou com a camisa do Giulianova nas divisões inferiores (Il Centro)

O Perugia nunca havia chegado tão longe, e sua ascensão alimentava o sentimento de que algo especial estava se formando. Era a aurora de um ciclo que desafiaria o centro de gravidade do futebol nacional. Curi, que chegou a ser convocado para representar a seleção italiana da Serie B, encarnava esse projeto em campo. Apesar do farto bigode, era um garoto de 21 anos que inspirava dias ainda melhores para uma cidade já em festa.

No primeiro ano do Perugia na Serie A, 1975-76, Curi não apenas manteve sua vaga entre os titulares como se consolidou como um dos motores do time, com muita regularidade. Com ainda mais espaço na equipe de Castagner, Renatino foi um de seus destaques, ao lado do líbero Pierluigi Frosio, do volante Aldo Agroppi, do já citado meia Vannini e do atacante Walter Novellino.

Naquela temporada, o meia marcou três gols na surpreendente campanha de oitavo lugar dos umbros, e um deles entrou para a história por ter feito o Torino ser campeão italiano – e pela narração do lendário Sandro Ciotti, que transmitia o duelo em Perugia, ser interrompida por Enrico Ameri, que estava em Turim e mostrou o barulho da torcida grená, simultaneamente. Com o empate do Toro com o Cesena e a vitória dos grifoni sobre a Juventus, pelo placar mínimo, no novo estádio Comunale de Pian di Massiano, o scudetto ia para o lado granata do Piemonte.

Aqui, cabe um parênteses. Em 1975, quando o Perugia já flertava com o acesso à Serie A, a prefeitura da cidade já estava viabilizando a construção de um novo estádio, já que o antigo Santa Giuliana, próximo ao centro histórico da cidade, era considerado obsoleto. O projeto iniciado em 1967 saiu do papel em paralelo ao título dos biancorossi. O Comunale, localizado na região de Pian di Massiano, também recebia o apelido de Ferro di Cavallo, bairro em que foi erguido. Seria o palco da tragédia de Curi, pouco depois.

Até lá, o meia brilhou naquele gramado. Para além do gol sobre a Juventus, se consolidou como um dos grandes intérpretes do time de Castagner, que se inspirava no futebol total holandês e impressionava a Itália. No campeonato seguinte, 1976-77, a ambição do Perugia aumentava, devido à insistência de seu treinador naquela proposta moderna de jogo, com trocas de posições, pressão e intensidade. A equipe mantinha um desempenho sólido e, através dele, flertava com vagas na Copa Uefa: após o oitavo lugar da campanha anterior, emplacou um sexto posto. Renatino atuou em 28 das 30 partidas daquela trajetória, todas como titular.

Não à toa, o meio-campista já era visto pela torcida como símbolo grifone. Nessa condição, iniciou 1977-78 como titularíssimo, até sofrer uma lesão que o deixou fora da quinta rodada da Serie A, contra o Bologna. Curi treinou bem durante a semana e, se sentindo recuperado, falou com Castagner que queria voltar na jornada seguinte, contra a Juventus. Afinal, o Perugia era um dos times que lideravam o campeonato, ao lado da Velha Senhora, e ele não queria ficar de fora do confronto direto.

Naquele dia 30 de outubro de 1977, o roteiro da vida preparara um bocado de coincidências. O calendário da Serie A previa o duelo entre Perugia e Juventus, mas também um embate entre Atalanta e Vicenza, em Bérgamo – se repetia, portanto, o confronto do dia em que Castagner observou Curi pela primeira vez e se encantou. Na Úmbria, chovia forte e Castagner, daquela feita, esquecera o guarda-chuva. Apesar do temporal que deixava o gramado impraticável para o futebol, o Comunale de Pian di Massiano estava lotado e tinha clima efervescente para mais uma batalha importante na campanha da Serie A. Porém, certamente o público não estava preparado para uma tragédia.

Aos 52 minutos de jogo, pouco após o início segundo tempo, Curi correu alguns metros, então refugou, curvou-se e caiu. Seu coração havia parado. Não houve imagens daquela queda: as câmeras que captavam as emoções da partida estavam voltadas para uma cobrança de lateral prestes a acontecer. Quando tentaram encontrar Renato, as lentes só mostraram um corre-corre de jogadores, médicos e maqueiros em volta do atleta.

Aquelas imagens são o único vestígio doloroso de uma época em que a medicina esportiva ainda era incipiente. Não havia desfibriladores nem ambulância à beira do gramado nem protocolo de primeiros socorros eficientes. Os colegas de time tentaram reanimá-lo, os médicos improvisaram o que podiam e o carregaram para os vestiários. Clelia, esposa de Renato, grávida de poucos meses e já mãe da bebê Sabrina, correu até lá, mas não o encontrou: fora levado diretamente ao hospital. Na transmissão, se desejava que não fosse nada de grave, mas era.

Contra a Juventus, Curi teve maior momento de destaque de sua carreira e também o fim de sua vida (Guerin Sportivo)

Não grave o suficiente para que a partida fosse interrompida naqueles tempos sem protocolos para situações do gênero. Assim que Curi saiu de campo na maca, a bola voltou a rolar no Comunale de Pian di Massiano – ainda não se sabia, mas o nome do estádio estava começando a mudar ali. Como se nada tivesse acontecido, sem qualquer sinal de choque, Antonio Matteoni substituiu Renato, os times continuaram a jogar e produziram um insosso 0 a 0.

Quando o jogo terminou, Ciotti, dono da mesma famosa voz radiofônica que narrara o gol de Curi contra a Juventus, em 1976, emergiu na programação da Rai para anunciar que os esforços para salvar Renato foram em vão. O meia morreu aos 24 anos, vítima de um infarto fulminante, diante de quase 30 mil espectadores, em um jogo televisionado, no auge de sua forma física. Diante da mesma Velha Senhora em que havia obtido máximo destaque, Renatino viu a chama da vida se extinguir.

O falecimento de Curi gerou polêmica, longas discussões e um processo judicial. O próprio Renato costumava dizer, em tom de troça, que tinha um “coração louco”, com batimentos cardíacos irregulares que o obrigavam a correr muito durante as partidas. O fato é que a arritmia foi constatada pelos peritos médicos durante a sua autópsia e descrita como uma “doença crônica capaz de causar morte súbita”.

Alguns dirigentes do Perugia foram processados, mas absolvidos. O médico do clube e o seu homólogo do Centro Técnico Federal de Coverciano, os dois profissionais que atestaram que estava apto à prática esportiva, também passaram ilesos na primeira instância. Contudo, após recurso, foram condenados a um ano de prisão, mas em regime aberto. Clelia, a viúva, recebeu uma indenização financeira e voltou a viver em Pescara, onde criou sozinha Sabrina e Renato, que nasceu oito meses depois da morte do homônimo pai – o qual só pôde conhecer por fotos, vídeos e relatos.

Em novembro de 1977, menos de um mês depois de sua morte, o estádio Comunale de Pian di Massiano passou a se chamar Renato Curi. No ano seguinte, em Pescara, nasceu um time com seu nome – que, na década de 1990, se fundiria com a Angolana. A Renato Curi Angolana chegaria a disputar a Serie D em várias edições, de 1999 a 2014.

Mais do que uma homenagens, aqueles gestos representavam uma espécie de “canonização laica”: o meia passou a ser um símbolo maior do que o futebol que demonstrava. Tornou-se sinônimo de uma era, um sentimento, uma identidade. Seu nome sobrevive em placas, faixas e na liturgia dos tributos anuais e pontuais que lhe são dedicados. Curiosamente, a praça esportiva que leva seu nome está localizada num endereço que também recorda esportistas falecidos: a Esplanada Caduti di Superga, batizada assim em memória do lendário Grande Torino, que desapareceu num acidente aéreo, em 1949.

Em 1977-78, o Perugia – que já jogava bem – passou a jogar para honrar o legado de Curi: novamente fez um bom desempenho e, sétimo colocado, com os mesmos pontos do Napoli, sexto, ficou fora da Copa Uefa pelo saldo de gols. O time viria a ter sua melhor campanha justamente na temporada seguinte à morte do meia. Em 1978-79,  terminaria o campeonato invicto, com 11 vitórias e 19 empates, na segunda colocação, três pontos atrás do Milan. A equipe de Castagner se tornou a única imbatível a não ser campeã nacional e se tornou referência na Serie A.

O vazio que Curi deixara, contudo, jamais foi preenchido. A sensação de que ele poderia ter sido a alma daquele vice-campeonato permanece até hoje entre os torcedores que viveram o ciclo glorioso do Perugia. Contudo, no vácuo que sua morte deixou, Renatino virou presença eterna. E, até hoje, cada jogo dos grifoni, principalmente em casa, carrega um traço invisível do meio-campista que se tornou eterno ao ver seu coração parar no meio de uma corrida.

Renato Curi Nascimento: 20 de setembro de 1953, em Montefiore dell’Aso, Itália Morte: 30 de outubro de 1977, em Perúgia, Itália Posição: meio-campista Clubes: Giulianova (1969-73), Como (1973-74) e Perugia (1974-77) Títulos: Serie D (1971) e Serie B (1975)

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