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·28 de setembro de 2020

A má conduta do poderoso Luciano Moggi o transformou em defenestrado do futebol

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Não há meio termo quando o assunto é Luciano Moggi. Ele foi anjo e vilão; competente e ilegal; afetuoso e, mesmo assim, capaz de conquistar um batalhão de inimizades. O famoso ex-dirigente possivelmente é mais conhecido por ter sido o rosto do Calciopoli, o esquema de manipulação de resultados que enviou a Juventus à Serie B. Mas ele também esteve por trás da Roma campeã nos anos 1980, do título europeu do Napoli com Diego Maradona e de toda a pavimentação da Juventus como representante da elite do futebol entre as décadas de 1990 e 2000.

A obtenção desses resultados em âmbitos esportivos, por caminhos certos ou escusos – e revelando todas as brechas do sistema italiano – colocam Moggi como uma das figuras icônicas da Serie A. Tanto é que ele, punido com suspensão em 2006 e posteriormente banido do futebol por suas ações irregulares contra a ética desportiva, segue dando seus pitacos sobre o mundo da bola porque algumas pessoas ainda querem ouvi-lo. Seja pela controvérsia por receber o Leão de Ouro de Veneza, em 2019, seja por sua avaliação, meses atrás, de que a reação italiana ante o novo coronavírus era, “como o Calciopoli” – exagerada. Moggi propôs congelar a classificação do campeonato depois que notou que não era só uma gripezinha mesmo.


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Função: prodígio

As ferrovias da década de 1960 são de suma importância para a vida de Moggi pré-futebol. Proveniente de uma família de classe baixa, abandonou a escola aos 13 anos para trabalhar na estação Civitavecchia, em Siena. O futebol era uma paixão e, ainda adolescente, ele visitava jogos por toda a Toscana com Graziano Galletti, um padeiro que fazia meio expediente como olheiro para os clubes locais.

A escalada à gerência da empresa anda concomitantemente à frustração de Moggi. Ele, um ex-jogador frustrado por ter um futebol medíocre, estava cansado de fazer longas viagens para buscar compromissos na Serie D em troca de um punhado de liras – e farto, também, do emprego mal remunerado na ferrovia. A aposentadoria precoce do ex-zagueiro, no fim dos anos 1970, veio a calhar para tomar o esporte para ele.

Entenda: Moggi sempre foi um prodígio para o futebol além do campo. Ele viajava durante o dia, cumpria expediente na bilheteria durante a noite e empilhava inúmeros relatórios sobre os jogadores observados. O futebol italiano estava num processo de evolução ágil, e buscava atingir um nível de profissionalismo diferente e à frente dos outros centros europeus, com super cartolas e jogadores com status de astros. Foi um desses dirigentes, inclusive, que abriu as portas do jogo para Moggi.

Italo Allodi teve uma carreira de ascensão absurda, na qual levou o Mantova à Serie A desde a quarta divisão, no fim dos anos 1950, e participou ativamente do período de imenso sucesso da Grande Inter na década seguinte, quando a Beneamata foi tricampeã nacional e bi do continente. Allodi foi chamado pelo diretor administrativo Giampiero Boniperti para assumir a chefia do futebol na Juventus e recrutou o juventino fanático Moggi para trabalhar na equipe de olheiros em 1968.

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Moggi não se interessava somente pelas habilidades do jogador. Os relatórios dele continham informações a rodo sobre a personalidade e a situação familiar de cada um. O biógrafo de Lucianone, Marco Travaglio, costuma defini-lo como “um segundo pai, um irmão mais velho”. Até porque Moggi tinha lábia. Desde sempre, em meio a um italiano despretensioso e dialetal, ele era astuto e extrovertido. O próprio Travaglio comenta que o toscano falava sobre tudo e ouvia sempre. Ele já era um mestre na arte de se fazer notar, e o primeiro golpe deste mestre atende pelo nome de Paolo Rossi.

O futuro dirigente entrou no jogo de vez quando sugeriu o atacante depois passar de por Florença e observá-lo na Virtus Cattolica. Também indicou um lateral que estava no segundo ano como profissional depois de passar pelas séries B e D, e foi estourar somente na Juventus: a lenda Claudio Gentile. O olheiro não esteve sozinho nessa empreitada. Ele organizou uma rede de observação através dos contatos dele para, assim, monitorar centenas de jogadores em toda a Itália.

Entre eles estava o padeiro Galletti, que insistiu na dica por Gaetano Scirea, jovem meio-campista da Atalanta mas que já era bastante cotado para jogar na zaga. Moggi desconfiava da capacidade aérea daquele jogador emergente, mas se deixou convencer e conseguiu fazer a cabeça do presidente Boniperti: para Luciano, Scirea seria o herdeiro de Sandro Salvadore. Não contente em trazer um dos futuros grandes jogadores da história do esporte, Moggi ainda conseguiu capturar o ala Franco Causio, encontrado na terceira divisão. O olheiro, cada vez mais, se tornava um fenômeno. Mas sem cargo oficial: era apenas um consultor.

Boniperti e Allodi não eram somente profissionais com opiniões fortes; eles eram centralizadores. A colisão entre eles em 1973 fez a corda estourar no lado mais fraco, com a demissão do diretor – parte da explicação foi perder a Copa dos Campeões para o Ajax. Moggi, enquanto isso, subiu na hierarquia da Juve com o título de observador-chefe. Só que ele não ganha um trabalho no clube; apesar do status, ele é um colaborador externo. E nessa batalha travada também contra o presidente, homem forte da família Agnelli, Moggi perde. Se a Juventus não estava interessada em garantir uma posição oficial no clube, a Roma tinha uma disponível.

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O dinheiro move o mundo

Moggi mudou-se para Roma e tornou-se consultor de Gaetano Anzalone, presidente romanista entre 1971 e 1979. O giallorosso estava num jejum de títulos quando ultrapassou a Juve e outros concorrentes para contratar o cobiçado atacante genovês Roberto Pruzzo. Sozinho, o atleta não foi capaz de colocar a Roma como postulante ao título, mas contribuiu para redimensionar uma nova ordem do futebol italiano (saiba mais no Calciopizza #47: Platini vs Pruzzo) e enfurecer um traído Boniperti, que via a Juve perder terreno como destino único para jogadores acima da média.

Na década seguinte, veríamos uma Velha Senhora ainda lutando na zona mais alta da tabela, porém com adversários muito mais prontos para bater de frente com ela. Desde a Roma, que conquistaria o scudetto anos depois, até a Inter, a Fiorentina de Allodi, o Napoli e outros rivais mais surpreendentes, como Torino e Verona.

Roma foi excelente para Moggi assim como Moggi foi excelente para Roma. Ele abraçou a capital, que lhe retribuiu como território ideal para enraizar ainda mais a rede de contatos. Ali, na velha cidade, estavam os políticos, magistrados, diplomatas, jornalistas e outros envolvidos no esporte que ele precisava para manipular a hierarquia do futebol italiano.

Dia sim, outro também ganhavam regalias do diretor: queijos, garrafas de bebida, relógios, passagens aéreas… Esse tipo de relação era benéfica para ambas as partes. Como Moggi tinha uma conversa fácil e era uma boa companhia, a imprensa entendeu que era ótimo tê-lo do seu lado. E aqui, de certa forma, o sistema Moggi começa a ser explicado – e, 30 anos depois, seria oficialmente diagnosticado como Calciopoli.

Moggi levava uma vida profissional bem política, trabalhando longe dos holofotes. Ele era amigo de todos e de ninguém, pois o que move o mundo é o dinheiro. Por isso é bem importante colocar a internacionalização da Serie A nos anos 1980 em perspectiva: era muito dinheiro para muita gente. Um movimento errado e as fortunas se esvaíam; uma jogada certa e a bufunfa era multiplicada.

O olheiro (e depois diretor) Moggi nasce no e pelo sistema corrupto italiano, com a presença de escândalos desde a década de 1930 e com a máfia bastante próxima a partir dos anos 1970. Veja, por exemplo, que o primeiro trabalho oficial de Luciano foi com Allodi, o dirigente que foi acusado de subornar os árbitros das semifinais vencidas pela Inter contra Borussia Dortmund e Liverpool no bicampeonato europeu consecutivo e também na semifinal da mesma competição, contra o Derby County, quando estava na Juve.

Na Roma, o surgimento de Dino Viola inviabilizou a permanência de Moggi no clube. O choque foi parecido com aquele entre Boniperti e Allodi em Turim, anos antes, e Lucky Luciano não fez questão de esconder que não foi com a cara do novo presidente. O dirigente não gostava do estilo de Viola e o mandatário tinha taquicardia sempre que o dia do pagamento se aproximava. O toscano custava caro não pelo salário, mas sim pelo “imposto Moggi” – termo inventado pelo próprio Viola para identificar recibos de champanhes, pernoites em suítes milionárias ou outros mimos do cartola aos jogadores.

Assim, em dezembro de 1979, Lucianone foi demitido. A gota d’água provavelmente foi o episódio imediatamente posterior à vitória da Roma contra o Ascoli. Viola foi ao vestiário dos visitantes para cumprimentar o presidente rival, Costantino Rozzi, e ouviu uma série de xingamentos dele sobre o árbitro Claudio Pieri. Rozzi estava possesso porque acreditava que o juiz havia prejudicado o Ascoli e pediu para Viola conversar com Moggi porque ele sabia sobre o assunto.

Luciano foi flagrado pelo estafe do Ascoli jantando com o árbitro na noite anterior. Quando Leo Armillei, secretário do clube marquesão, entrou no restaurante, todos da mesa de Moggi levantaram e deixaram o local imediatamente. De acordo com Luigi Girardi, advogado bianconero, Lucianone retornou, cumprimentou Armillei, perguntou quem estava à mesa do Ascoli e também saiu. Moggi, então funcionário da Roma, conta a história de outra maneira: ele foi ao restaurante que sempre costuma visitar e lá estavam o árbitro e os assistentes, que o convidaram para beberem juntos.

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O cume é alto

Moggi inventou a função de diretor de futebol. Sondado pelo Napoli no começo de 1980, o toscano preferiu a proposta da Lazio, que lhe ofereceu um contrato em tempo integral para ter um papel de mediador entre presidência e jogadores. A ele cabia resolver todos os problemas internos da equipe, antecipar movimentos de mercado e, que dirá, persuadir árbitros.

De fato, a década não foi tão gloriosa para a carreira de Lucky Luciano. Enquanto a Lazio acertava com o dirigente, corria a investigação sobre a manipulação de resultados com colaboração ativa dos jogadores, conhecida como Totonero. As suspeitas estavam focadas na agremiação celeste, mas seis equipes foram punidas (Avellino, Genoa, Lazio, Milan, Palermo e Perugia) e os jogadores laziali Bruno Giordano, Pino Wilson, Lionello Manfredonia e Massimo Cacciatori foram presos. O nome de Moggi não apareceu em nenhum dos documentos processuais da Totonero – o que é particularmente estranho, uma vez que ele era onipresente no submundo do futebol italiano quando o escândalo estourou.

Para a temporada, o cartola contratou o técnico Ilario Castagner para comandar o time romano. A única meta para o mercado de transferências era o meia holandês Willy van de Kerkhof. Moggi satisfez a vontade do treinador, porém, jogou contra: acabou contratando o irmão gêmeo do desejado, o atacante René, ou por um erro crasso, ou para economizar dinheiro.

A chegada do outro Van de Kerkhof a Roma foi comemorada igualmente, porque ele também era um grande jogador, mas a finalização do negócio coincidiu com a notificação oficial do rebaixamento da Lazio à Serie B como punição pelo esquema de manipulação de resultados. René voltou à Holanda no mesmo pé porque a federação italiana, à época, ainda não permitia estrangeiros na segunda divisão. Ademais, com o presidente Umberto Lenzini doente, o clube passou às mãos de Aldo – seu irmão – e nada correu bem. Os salários ficaram atrasados ao longo do campeonato, prêmios não foram pagos e os jogadores ameaçaram um boicote.

A subida de Moggi foi rápida, mas a breve queda foi acentuada. A Lazio passou a confiar em Antonio Sbardella para a função de mediador dentro do clube, dando a ele a função de Luciano e excluindo o cartola do organograma. O toscano disse, à época, que se sentia “como um cachorro espancado”. Dá para entender, portanto, que a passagem de Moggi pelo clube foi, no mínimo, turbulenta e, marginalizado, recebeu a dica: volte para Turim. A sugestão foi do amigo e vice-diretor do Corriere dello Sport, Ezio De Cesari. O Torino precisava de um diretor de futebol e o clube, com novo presidente, estava com ambições renovadas – ainda que tivesse expectativas mais baixas.

Moggi ficou no Toro durante cinco anos, entre 1982 e 1987. Com ele por lá, o clube conseguiu boas campanhas: quinto, segundo e quarto lugares respectivamente, contando a partir de 1982-83. A agremiação tinha um orçamento bastante competitivo desde que Sergio Rossi, fundador e presidente da Comau (braço da Fiat) assumiu o time.

Fora do campo, Moggi viu suas contratações decolarem: o meia Patricio Hernández, ex-Estudiantes, e o atacante Walter Schachner, ex-Cesena, lideraram o time em gols; e Júnior, ex-Flamengo, e Aldo Serena, emprestado pela Inter, carregaram a equipe para o vice em nacional em 1985. Só que o Torino implodiu em 1987: Lucianone pediu demissão em meio à briga com a diretoria, no meio do alvoroço que também levou ao afastamento de Rossi da cadeira da presidência.

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O trabalho seguinte foi em Nápoles e Moggi tratou de levar consigo do Toro o lateral-esquerdo Giovanni Francini e de juntar Careca à equipe campeã, no intuito de atualizar o repertório de feitiços do icônico trio MaGiCa – primeiramente formado por Maradona, Giordano e Andrea Carnevale. A importante conquista da Copa da Uefa de 1989 andou em paralelo com a dificuldade do novo cartola de conviver com os problemas extracampo do craque argentino.

Maradona e Moggi eram muito próximos. Contudo, o relacionamento entre os dois começou a se desgastar devido às festanças noturnas de que o argentino costumava participar e ao uso de cocaína por parte do craque. Quando membros presos da Camorra começaram a colaborar com as autoridades e, em depoimentos, mencionaram ao tribunal um suposto conluio de Maradona com a organização mafiosa, o escândalo fugiu ao controle do dirigente.

Trair Moggi foi praticamente um pecado capital, pelas palavras de cartola. E, após Diego testar positivo para cocaína em exame antidoping realizado em março de 1991, Moggi entregou o cargo e retornou ao Torino. Vale dizer, no entanto, que deixou um presente bastante valioso aos napolitanos: outro baixinho habilidoso que atendia pelo nome de Gianfranco Zola.

A Roma tentou uma nova contratação, mas ouviu um não. O retorno para o lado grená de Turim foi bem-sucedido por um breve período, até que o Torino submergisse em sua maré de azar absurda e costumeira. Até lá, bancou a contratação do excelente Enzo Scifo e as chegadas dos artilheiros Walter Casagrande e Carlos Aguilera, conquistou uma Coppa Italia e conseguiu um vice-campeonato da Copa Uefa. Essa passagem pelo Piemonte, no entanto, ficou marcada por um escândalo durante a temporada de 1991-92.

O dirigente e o clube tiveram de responder às acusações de exploração sexual e favorecimento da arbitragem na disputa do torneio europeu. O processo detalhava que três prostitutas – ou intérpretes, como Moggi as chamou – receberam 2 milhões de liras cada para saírem com árbitros no mesmo período em que o Toro conseguiu três vitórias como mandante.

Em depoimento à Justiça, o presidente Gian Mario Borsano afirmou que Lucky Luciano era o responsável pela garantia de hospitalidade à arbitragem estrangeira e que era o seu empregado que se ocupava pessoalmente de arrumar as acompanhantes, pagas através de um esquema de caixa dois. Ou seja, de recursos financeiros do Toro não contabilizados oficialmente e não declarados aos órgãos de fiscalização competentes.

A corte torinesa concluiu que houve tentativa de corromper os juízes em favorecimento ao clube, mas os réus foram inocentados. Primeiro, em uma estratégia da defesa, Luigi Pavarese – colaborador de Moggi – assumiu toda a culpa, livrando o chefe. Depois, o processo não teve continuidade por questões técnicas: as ocorrências não constituíam exploração sexual, não havia evidências da ligação entre Luciano, Pavarese e as mulheres, e a própria Uefa não levou o caso adiante.

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“Não acredite em Moggi”

Moggi não aguentou mais de uma temporada na Roma dividida de 1993-94, envolta na confusão da copropriedade do clube entre os dois presidentes, Franco Sensi e Pietro Mezzaroma. Voltar para a Juve e usar o clichê “tudo mudou” para qualquer intervalo de tempo cai como uma luva para essa situação, claro.

Eram 21 anos desde a demissão por Boniperti até a admissão por Vittorio Chiusano, vice-presidente da longa gestão bianconera anterior. A equipe havia mudado (afinal são pelo menos cinco gerações do futebol), a diretoria não era a mesma e o ambiente era outro: Moggi saiu campeão da Itália e finalista europeu; retornou para uma equipe que não vencia o campeonato desde a saída de Michel Platini, oito anos antes.

A influência do diretor geral no Belpaese atingiu níveis inimagináveis nesta década e na seguinte, mas é necessário destacar outras duas figuras tão importantes quanto para esse processo: o vice-presidente Roberto Bettega, ex-jogador lendário daquele time dominador dos anos 1970, e o administrador-delegado Antonio Giraudo. Juntos, eles eram a Tríade, representantes do início da revolução bianconera.

Em campo, o trabalho na primeira temporada foi um primor. A janela do verão praticamente pavimentou a equipe que levantaria a Europa no ano seguinte. Moggi levou Marcello Lippi e Ciro Ferrara – o zagueiro, velho conhecido dos tempos de Nápoles – e contratou cinco meio-campistas para dar profundidade ao elenco: Paulo Sousa, Didier Deschamps, Robert Jarni, Luca Fusi e Alessio Tacchinardi. Eles se juntaram a Antonio Conte e Angelo Di Livio, enquanto Andreas Möller voltou à Alemanha. O título italiano nesta época e o vice da Copa Uefa, com Gianluca Vialli e Fabrizio Ravanelli empilhando gols, fez com que a primeira questão complicada tivesse de ser resolvida: o que fazer com Roberto Baggio?

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Porque, com Lippi, o fantasista italiano acabou relegado. Quando foi contratado, Lippi deu a letra: o time não seria de Baggio – como era com Giovanni Trapattoni, quando o Divino Codino foi eleito Bola de Ouro, em 1993. O pênalti perdido na final da Copa do Mundo contribuiu para um início de ano mambembe, mas a lesão ao bater uma falta para marcar um bonito gol contra o Padova, nas primeiras semanas do campeonato, emperraram a sequência do camisa 10.

Durante o processo de recuperação, Ravanelli e Vialli continuaram jogando bem – e muito –, enquanto Alessandro Del Piero se mostrava preparado para o desafio. Tanto é que, ao fim da época, Lippi e a Tríade estavam convencidos de que a Juve não precisava mais de Baggio justamente porque aquele moleque cabeludo que veio da base daria conta do recado – algo que não foi bem visto pela torcida. A oferta ao jogador de 28 anos foi cortar o salário, uma vez que as finanças do clube estavam prejudicadas, ou tchau. No mês seguinte, Robi foi apresentado pelo Milan, após rejeitar propostas de Manchester United, Blackburn, Roma e Real Madrid.

Baggio foi campeão italiano na temporada seguinte, fazendo parceria com George Weah no Milan muito bem montado por Fabio Capello. Um time tão sólido que venceu o campeonato com oito pontos de vantagem para a Juve, vice. Moggi também viu sua equipe ser eliminada para a Atalanta na Coppa, mas, ao fim da temporada, comemorou a conquista do continente ao derrotar o Ajax, em Roma. O pênalti derradeiro de Vladimir Jugovic acabou com a seca de 11 anos sem o troféu – neste intervalo, os rossoneri venceram a Champions League três vezes – e fez o dirigente alcançar o pináculo.

Este auge esportivo, em termos de conquistas continentais, foi breve. Sim, a Juve falhou em conquistar outra Champions desde então (e sonha com o troféu até os dias atuais), mas a Tríade arranjou uma forma de manter o time como candidato ao título europeu até a eclosão do Calciopoli. A Velha Senhora ainda papou seis Serie A – contando os títulos revogados – durante um período bastante próspero para a liga, que teve a evolução da Inter com Ronaldo; Roma, Lazio e Parma endinheirados; e o Milan de Carlo Ancelotti.

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A personalidade de Moggi era intempestiva. As coisas precisavam ocorrer de acordo com o controle que exercia. Assim que venceu a Champions, a Juve passou pela primeira grande renovação. Ele não queria mais ouvir a ladainha de Vialli por uma renovação de contrato e o enviou para o Chelsea; o artilheiro bianconero na Europa, Ravanelli, foi para o Middlesbrough – e a Velha Senhora ainda se desfez de Pietro Vierchowod, Massimo Carrera e Paulo Sousa.

Entre os novos contratados estavam Christian Vieri, Alen Boskic e Zinédine Zidane. O trio foi desfeito rapidamente, logo após a derrota na final europeia, contra o Borussia Dortmund, em 1997. Menos de um ano depois de conquistar o título, Jugovic foi mandado juntamente com Boksic para a Lazio, Attilio Lombardo saiu para o Crystal Palace e o Atlético de Madrid quebrou o recorde de transferências da época para ter Vieri. Sobre esta última, a história.

Aos 23 anos, Bobo Vieri era considerado um dos bons prospectos para o futuro da seleção depois de uma sólida temporada de estreia na Serie A. Em Turim, terminou o ano somente um gol atrás do artilheiro Del Piero – mesmo afastado do time por algumas rodadas depois de uma briga com Lippi no intervalo de uma partida contra a Atalanta. Parecia que o atacante teria uma carreira longa em bianconero, até pela vontade do presidente honorário Umberto Agnelli em mantê-lo. Por fim, Moggi disse que ele era inegociável.

Mesmo? Conta Vieri: “um dia, Moggi me chamou com aquela sua forma tranquila de falar e com os olhos quase fechados. Disse-me que estava preparado para prolongar o meu contrato, mas não podia ir mais além do que 2 milhões de liras por temporada [cerca de 269 mil euros, em valores atuais]”, disse o atacante. “O Atlético me oferecia 3,5 milhões. E a reunião terminou ali. Admito que pensei somente no dinheiro”, completou. E, assim, o atacante viajou à Espanha. Na Itália, a Juve embolsou o quádruplo do valor que desembolsou para tirá-lo da Atalanta e, popularmente, sedimentou-se o mantra de jamais se acreditar em Moggi.

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Amizades e desafetos

O telefone de Moggi não parava de tocar. Durante o Calciopoli, os investigadores chegaram a afirmar que ele atendia ou fazia uma média de 416 ligações por dia – uma média de uma a cada três minutos e meio. No fim dos anos 1990, Moggi tinha cerca de 30 reuniões diárias porque ele tinha um compromisso moral com todos os contatos dele e não conseguia dizer não. O jeitão agradável e despojado do diretor faziam-no ser mais poderoso, temido ou odiado, de acordo com Ancelotti, dependendo do que você queria.

O fim da linha de Lippi em bianconero aconteceu com a temporada 1998-99 em andamento, após uma derrota para o Parma. As conversas com Ancelotti aconteciam há algumas semanas, e o treinador ouviu da Tríade que o então técnico da Juve não estava feliz. O pré-acordo entre Carletto e Moggi furou a sua transferência para a Turquia no último instante, visto que o técnico era o preferido para assumir o Fenerbahçe.

Resumidamente, a passagem de Ancelotti por Turim durou dois anos e meio e, de forma oficial, Lippi foi recontratado depois de um par de vices no campeonato. Carletto não era benquisto pela torcida, por mais que a diretoria tentasse acalmar os ânimos depois de ultras terem exibido uma faixa xenófoba em sua estreia contra o Piacenza: eles diziam que “porcos não podem treinar”, ofendendo as raízes interioranas do emiliano. Ancelotti sempre foi um rival juventino: disputou título contra o bianconero pela Roma e atuou pelo Milan na década de 1980, além de ter buscado interromper a dualidade vitoriosa Juve-Milan com o Parma, no fim dos anos 1990.

Em sua biografia, o treinador contou que a Tríade sempre o tratou bem, fazendo-no “sentir como o melhor treinador de todos”. Com o passar do tempo, porém, Moggi e Giraudo começaram a emular o trejeito de Agnelli: no vestiário, só tinham olhos para Zidane e Del Piero, e Carletto era relegado. Por isso – ou devido a isso, ou também por isso –, ele criou laços com alguns jornalistas.

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Foram estes que avisaram que o tempo dele na Juventus estava contado, justamente depois de uma renovação de contrato bastante complicada, que ocorreu após a eliminação da Liga dos Campeões. Moggi recebeu uma ligação de Ancelotti no dia seguinte ao empate da Roma, com o famoso gol de Hidetoshi Nakata. Ouviu de Carletto se ele sabia por qual razão Umberto Agnelli queria conversar. Moggi desligou imediatamente e, na reunião, o treinador ouviu prontamente que estava demitido.

No livro, Ancelotti traz três possibilidades sobre a saída forçada mesmo com contrato renovado. Para ele, ou a Juventus queria manter o moral da equipe alto enquanto continuava em busca do título; ou  minar qualquer tentativa de que ele arranjasse emprego em clube grande naquele momento – o Milan havia acabado de despachar o interino Cesare Maldini e a Inter mandou Marco Tardelli embora no mesmo fim de semana; ou, por fim, estabelecer um bom relacionamento com o Parma, como uma ajuda indireta para as contratações de Gianluigi Buffon e Lilian Thuram – o goleiro afirmou, anos depois, que só concordou em fechar negócio depois que Moggi interviu na compra.

Nesse morde e assopra que mantinha seu personagem vivo, o diretor não teve qualquer problema de trabalhar ao lado de Fabio Capello a partir de 2004, apesar das brigas públicas que eles tiveram em 1974. Juve e Roma travavam uma disputa intensa pelo título nacional e o então jogador dizia que Moggi pagava jogadores e agentes ilicitamente; o cartola replicava, afirmando que os romanos eram favorecidos pela arbitragem.

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“Uma história muito italiana”

Os ventos mudaram em 2005 ainda que ninguém soubesse qual seria o final da história. Primeiramente, os mental games de Moggi não corresponderam: dizer que jamais contrataria Kaká por ter esse apelido (que alude a “caca”, “cocô” em italiano) foi um tiro no pé incrível. Depois, o Rei do Mercado parecia que tinha perdido a mão. Nem parecia o mesmo espertinho que, em 1999, conseguira fazer com que a Inter assinasse com um medíocre Cyril Domoraud apenas porque o elogiou muito durante o processo de scouting em Marseille. Lucky Luciano ficara sabendo que a Juve e a Beneamata observavam o mesmo jogador e, por isso, precisou despistar a rival.

Só que as negociações de 2005 eram bem discutíveis. Se passou a perna na Inter novamente ao convencê-la a trocar Fabio Cannavaro por um goleiro reserva (Fabián Carini) e fechou acordo com um dos atacantes mais promissores da Europa (Zlatan Ibrahimovic), pagou um caminhão de dinheiro para tirar Emerson de Roma a um ano do fim do contrato e, no ano seguinte, pagou outra quantia exorbitante por um Patrick Vieira em declínio. Em campo, os resultados apareceram: bicampeonato italiano em 2005 e 2006. Fora deles, se formou uma tempestade.

Escrevendo sobre a bomba Calciopoli, o Guardian perguntou a Gianni Bandini, colunista da Gazzetta dello Sport: por que agora? “É uma história muito italiana”, respondeu. Manipulação de resultados, relacionamentos antiéticos e acordos ilegais, doping, corrupção: a Itália sempre viveu com muitas acusações e poucas ações penais ante os atos duvidosos ou criminosos que tomavam o debate público concomitantemente à injeção de dinheiro no campeonato.

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Porque a história remonta desde os anos 1920, quando ocorreram as mutretas do “título falso” do Bologna (sobre o qual falamos aqui) e o chamado “Caso Allemandi”, no qual o defensor juventino Luigi Allemandi teria sido subornado para entregar um clássico para o Torino – que conquistou a taça, mas teve o scudetto cassado no tapetão. Ainda temos exemplos na década de 1960 (com acusações de doping de jogadores do Bologna e da Inter compra de arbitragem pelos nerazzurri), e aos montes a partir de 1970 (com a máfia entrando no jogo) e 1980 (o já citado Totonero e o Totonero bis, em 1986), quando o campeonato se torna o mais rico do mundo.

Ninguém deu muita atenção quando o excêntrico dono do Perugia, Luciano Gaucci, acusou Juventus, Moggi, Itália, Deus e o mundo pela falência do clube dele, em 2005. Entre os alvos de sua fúria conspiratória estava a GEA, uma empresa de agenciadores que era presidida por Alessandro, filho do diretor bianconero. “Eles nos rebaixaram em 1993 [nota: o Perugia havia subido para a segunda divisão, mas foi condenado a continuar na Serie C1] e me baniram por três anos porque encontrei com um árbitro uma vez. Moggi encontrou-se com centenas e nada aconteceu com ele”, disse. Essas acusações públicas de Gaucci estavam cobertas de razão – ainda que, inicialmente, o alvo dos investigadores nem era Lucky Luciano.

Quando o presidente do Perugia botou a boca no trombone, aconteciam duas investigações judiciais sobre corrupção no futebol: uma em Turim, buscando evidências sobre doping na Juventus, e outra em Roma, sobre o papel da máfia em apostas ilegais e interferência na arbitragem. Ambas foram encerradas como infundadas, mas vale dizer: a treta sobre doping era antiga e provocou muitas discussões envolvendo o Ajax, que segue lembrando a história da final europeia perdida em 1996 justamente pelo uso de fórmulas proibidas, e o técnico Zdenek Zeman, um dos principais antípodas de Moggi na Itália e também dos grandes denunciadores da Juventus naquela década.

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Os grampos telefônicos usados nas investigações foram essenciais para a descoberta daquilo que viria a ser o Calciopoli. A presença do Milan nas gravações inviabilizou a investigação pública por politicagem – já que Silvio Berlusconi, presidente rossonero, ocupava o cargo de primeiro-ministro da Itália. Contudo, a história tomou o país quando os magistrados contaram à imprensa.

A própria disputa da Copa do Mundo não passou incólume ao processo judicial. Houve a suspeita de que Moggi – dono de seis aparelhos de celular e mais de 300 chips – tentou influenciar Lippi a convocar uma quantidade menor de jogadores juventinos para evitar lesões. Os grampos continuaram a revelar a influência de Luciano, que participou de cerca de 100 mil chamadas em nove meses de 2005.

Essas ligações mostraram seu envolvimento em esquemas sofisticados, mas também em episódios “menores”, como escrevemos neste texto. Situações que passavam pela irritação dos diretores da Juve por Ibrahimovic não ter ido mal num amistoso (conforme previamente acertado) para forçar a saída do Ajax ou pelas ameaças feitas a Fabrizio Miccoli através de um intermediário, que dizia que o atacante nunca mais seria relacionado pela Velha Senhora. Lucky Luciano e o Romário do Salento, nem precisava dizer, tinham um péssimo relacionamento.

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Por fim, o técnico da seleção levou cinco atletas bianconeri para a Alemanha, e 13 dos 23 atletas da lista final pertenciam aos clubes que estavam imersos na sujeira do Calciopoli. Nada foi encontrado que provasse alguma irregularidade nas ações de Lippi, tampouco para Cannavaro e David Trezeguet, entrevistados como testemunhas nas alegações contra a GEA. Enquanto isso, Buffon foi acusado de envolvimento com apostas ilegais, mas acabou absolvido.

É claro que o acontecimento do Calciopoli foi determinante para a biografia de Moggi, mas vale ler o texto já citado para ter detalhes sobre o processo do esquema de manipulação de resultados. Aqui, fica o resumo: Luciano recebeu um gancho de cinco anos e foi banido do futebol juntamente a Giraudo e Innocenzo Mazzini. A Juventus foi punida com a cassação dos scudetti de 2005 e 2006 e teve o rebaixamento para a Serie B decretado. O processo da empresa de agenciamento foi anulado e, a partir de 2015, os crimes do Calciopoli prescreveram. O cartola já não podia ser julgado.

Até 2006, quando a operação Calciopoli foi deflagrada e os magistrados começaram a colher os depoimentos às vésperas da Copa do Mundo, Moggi esteve presente, ali no gramado, em 15 títulos da Juventus: seis scudetti, quatro Supercopas Italianas e um troféu de Coppa Italia, Intertoto, Liga dos Campeões, Intercontinental e Supercopa Uefa. A volta para o grupo sempre seleto dos principais concorrentes aos títulos de qualquer competição teve um custo alto para a Juventus. Nem tanto para quem a colocou neste caminho: afinal, como falamos na abertura do texto, o Rei do Mercado virou colunista e volta e meia aparece nos palcos mais badalados do showbiz itálico. Lucky Luciano.

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