Calciopédia
·03 de junho de 2024
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O caminho da Itália para o seu primeiro título mundial, em 1934, foi complicadíssimo. Embora a Nazionale tenha recebido a mãozinha da arbitragem em algumas situações naquela Copa do Mundo, é inegável que os azzurri tiveram muitos méritos para superarem adversários duríssimos. Principalmente o timaço da Áustria, nas semifinais. E, naquela partida, marcada por um intenso duelo de precursores do estudo tático no esporte, ainda era necessário considerar a rivalidade entre os países e a freguesia italiana no confronto.
Itália e Áustria são nações vizinhas e, ao longo da história, seus atuais territórios foram alvo de muitas disputas. Em momentos anteriores e posteriores à unificação italiana, parte considerável do norte do país, por exemplo, esteve sob jurisdição do Império Austríaco e do Império Austro-Húngaro – até mesmo cidades grandes e importantes, como Milão, palco do embate da semifinal da Copa de 1934.
Antes da Primeira Guerra Mundial (1914-18), Itália e Áustria-Hungria faziam parte da Tríplice Aliança, mas os itálicos mudaram de lado e apoiaram a Tríplice Entente, em função de promessas territoriais. O compromisso foi cumprido após a derrota austro-húngara e os italianos anexaram, à luz da assinatura do Tratado de Saint-Germain-en-Laye, que dissolveu a monarquia vizinha, as terras que hoje correspondem à região do Trentino-Alto Ádige (conhecida como Südtirol, em alemão, ou Tirol do Sul, em português) e a outras províncias – atualmente, partes de Croácia e Eslovênia.
A relação conturbada entre os países respingava no futebol, embora a rivalidade não descambasse para a violência nos gramados. Nas primeiras décadas do século XX, enquanto os britânicos relutavam em se misturar com os outros países na modalidade que inventaram e desenvolveram, o esporte se aperfeiçoava tática e tecnicamente na Europa Central e na Península Itálica, tendo como protagonistas dessa nova fase os treinadores Hugo Meisl, da Áustria, e Vittorio Pozzo, da Itália.
Meisl e Pozzo treinaram as seleções de seus países por cerca de duas décadas e seus trabalhos foram contemporâneos em mais ou menos 10 anos. Nesse período, desenvolveram uma rivalidade saudável nos campos, mas também uma relação de amizade – e uma camaradagem que resultou em inovações táticas. A dupla se empenhou para encontrar soluções que superassem a tradicional pirâmide (2-3-5), primeiro modelo de jogo emplacado no esporte, e o WM (3-2-2-3) do inglês Herbert Chapman, conhecido como “sistema” na Itália.
Uma jogada confusa, com trombada entre Meazza e o arqueiro Platzer, da Áustria, levou ao decisivo gol de Guaita (Keystone/Hulton Archive/Getty)
Pozzo desenvolveu o chamado WW ou Metodo (2-3-2-3), privilegiando preparação física, a força de seus atletas e um meio-campo mais povoado, de modo a estruturar um esquema taticamente muito equilibrado para a época. Já ao longo do Rio Danúbio, que corta Áustria e Hungria, inclusive banhando as capitais Viena e Budapeste, eram outras as adaptações feitas pela chamada Escola Danubiana, da qual Meisl era um dos expoentes. Austríacos e húngaros optavam por uma releitura do 2-3-5, mas com mais mobilidade – principalmente no caso do centroavante, que tinha um posicionamento mais recuado como base e era convidado a articular o jogo. Ao contrário do que preconizava o treinador italiano, os professores da Europa Central enfatizavam trocas de passes e a habilidade individual dos jogadores.
Os embates entre os técnicos inovadores não se davam apenas no campo teórico. Na prática, aliás, Itália e Áustria se enfrentavam frequentemente, tanto em amistosos quanto na Copa Internacional, competição idealizada por Meisl em 1927 e tida como precursora da Eurocopa. Em suas cinco edições profissionais completas, o torneio reunia os italianos e seleções da Europa Central – Áustria, Checoslováquia, Hungria e Suíça, além da Iugoslávia, que só participou da última. Ali, os austríacos construíram uma expressiva vantagem no confronto com a Nazionale: até o Mundial de 1934, foram 13 jogos, com incríveis oito vitórias alvinegras e somente uma dos azzurri.
A freguesia da Itália ficou escancarada poucos meses antes do Mundial, na própria Copa Internacional. Em fevereiro de 1934, no estádio Benito Mussolini, atual Olímpico Grande Torino, em Turim, a Áustria aplicou um sonoro 4 a 2 sobre os azzurri – com direito a tripletta de Karl Zischek. E o craque Matthias Sindelar, maior nome do Wunderteam, o “time das maravilhas” austríaco, sequer participou daquele duelo. Isso levou Pozzo a rever alguns conceitos, como a titularidade dos veteranos Umberto Caligaris e Virginio Rosetta, pilares da seleção e da Juventus tricampeã italiana consecutiva, que depois chegaria a cinco scudetti em série. Além de promover Luigi Allemandi e Eraldo Monzeglio ao onze inicial da Nazionale, o técnico intensificou a preparação física.
Enquanto a Itália chegava ao confronto de semifinal com a Áustria na condição de freguesa e cansada pelo duplo empenho com a Espanha, nas quartas, o Wunderteam de Meisl confirmava a reputação de uma equipe que só havia perdido duas vezes de 1931 até ali – curiosamente, um desses tropeços representou justamente a única vitória da Nazionale no histórico do confronto até aquele momento. Na Copa de 1934, Sinderlar, Josef Bican, Josef Smistik e companhia limitada haviam superado a França (3 a 2 na prorrogação) e eliminado a forte Hungria (2 a 1). Eram os favoritos na “final antecipada” de Milão, cidade que, lembramos, já havia sido parte do Império Austríaco.
Antes de a bola rolar, a Itália recebeu uma ajudinha que caiu do céu. Um temporal se abateu sobre a capital da Lombardia, deixando o campo de San Siro muito pesado, com bastante lama. Isso não era nada bom para a Áustria, que gostava de trocas de passes e tinha como principal nome um jogador cujo apelido era, por conta da magreza e aparente fragilidade, Der Papierene – “lenço de papel”, em português. As condições não eram ideais para que Sindelar, o “Mozart do futebol” regesse sinfonias. Ou para que Bican, um atleta que, posteriormente, no Sparta Praga, se tornaria um dos maiores goleadores da história, encontrasse as redes. Por outro lado, era um quadro favorável para a Nazionale efetuar cruzamentos à área e impor a força física de suas peças.
Quatro jogadores ultrapassaram a linha da meta austríaca e Eklind validou o gol italiano (Profimedia)
Essa força ficou evidente logo aos 19 minutos, no contestado gol que decidiu a semifinal de Milão. Após um cruzamento na área, o goleiro Peter Platzer segurou a bola, mas Giuseppe Meazza, o mesmo que levaria o estádio a ser rebatizado com seu nome anos mais tarde, chegou na dividida. Seria falta, mas o árbitro sueco Ivan Eklind entendeu que o austríaco não tinha o controle da redonda. A pelota saiu rolando, tocou na trave e sobrou para Enrique Guaita, que chegou chutando tudo o que via pela frente. Dentro das redes terminaram o arqueiro, os dois atacantes italianos e Angelo Schiavio, que chegou em seguida e já foi fazendo a festa.
Após o lance conturbado que gerou o gol italiano, a Áustria teve dificuldades de criar, por conta do terreno pesado e da voracidade de Luis Monti, justamente o responsável por marcar Sindelar – que terminou anulado na partida. Nas raras vezes em que o Wunderteam conseguiu produzir oportunidades dignas de nota, o capitão Gianpiero Combi apareceu para fazer defesas. Assim, a Itália garantia seu lugar na final em sua própria casa.
Na coluna que mantinha no jornal La Stampa, Pozzo relembrou a derrota por 4 a 2 para a Áustria em Turim e a considerou fundamental no percurso da Nazionale. “Permita a homens de caráter, que deram um passo em falso, a oportunidade de serem si mesmos novamente, de enfrentarem outra vez a mesma tarefa e os mesmos adversários e verá o que acontecerá. Este foi o princípio do qual parti e a equipe respondeu bravamente a essa chacoalhão, que mexeu com seu amor próprio”, escreveu, exaltando a têmpera e a coragem de seus jogadores.
Segundo Pozzo, aquela era uma equipe com uma “vontade de ferro”, que não sucumbia ao cansaço das partidas e das viagens, que jamais se dobrava aos adversários. Um grupo que havia superado as desconfianças de alguns torcedores, que achavam parte dos jogadores envelhecidos. Para o técnico, era um time que não abaixava a cabeça para ninguém e que, tal qual um batalhão de soldados numa guerra, lutaria até o fim na decisão contra a Checoslováquia, tão danubiana quanto a Áustria.
Itália: Combi; Monzeglio, Allemandi; Ferraris, Monti, Bertolini; Meazza, Ferrari; Guaita, Schiavio, Orsi. Técnico: Vittorio Pozzo. Áustria: Platzer; Cisar, Sesta; Wagner, Smistik, Urbanek; Zischek, Biscan, Sindelar, Schall, Viertl. Técnico: Hugo Meisl. Gol: Guaita (19′) Árbitro: Ivan Eklind (Suécia) Local e data: estádio San Siro, Milão (Itália), em 3 de junho de 1934
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