Trivela
·26 de novembro de 2022
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·26 de novembro de 2022
A Copa do Mundo possui uma magia de apresentar ao restante do planeta, sobretudo ao público que não é tão fanático por futebol, figuras que nunca chegariam ao estrelato em grandes clubes. A Austrália, com seu elenco mais limitado dos últimos anos, compete num nível acima do esperado. A aplicação e o senso coletivo fazem a diferença para os Socceroos seguirem vivos no Grupo D. E o herói da vitória por 1 a 0 sobre a Tunísia é desses típicos jogadores comuns, que passariam batidos em qualquer circunstância, mas acabam brilhando no maior palco de todos graças a um estalo. O nome de Mitchell Duke ganha o mundo como um personagem simpático, que comemorou seu gol decisivo com homenagem aos filhinhos, Jaxson e Chloe. Um centroavante de 31 anos que atua na segunda divisão do Campeonato Japonês e vinha sendo questionado por sua titularidade no ataque australiano.
A referência à família parece algo natural a Mitchell Duke. Nascido em Liverpool, região de Sydney, ele é o segundo mais novo numa casa de nove irmãos. E sua relação carinhosa com os filhos é algo que transparece em todas as suas redes sociais. Jaxson, o mais velho, foi o mascotinho do centroavante ao longo de sua carreira. Quando o menino nasceu, em 2016, Duke revelou: “Minhas prioridades mudaram completamente e agora tudo é sobre meu filho e minha família. Quero garantir a melhor vida possível a ele. No futebol, isso me dá uma motivação extra para ter sucesso”. Era um momento difícil para o atleta, em recuperação de uma grave lesão ligamentar. Seis anos depois, as palavras parecem se pagar.
Os torcedores de seus clubes costumam definir Duke como alguém que trabalha duro – “hard worker” é o termo usado inclusive em bandeirões das torcidas no Japão. E num país como a Austrália, onde o futebol é incipiente, o esforço precisou vir desde cedo. A juventude do centroavante era bastante atarefada. Ele atuava nos times de base do Central Coast Mariners, mas também no Blacktown City FC, um dos clubes semiprofissionais mais tradicionais do país. Além disso, acumulava três empregos: era assistente de vendas, entregador e ainda funcionário do aeroporto local. “Sempre trabalhei duro e me esforcei para alcançar minhas paixões e objetivos”, descreve-se Duke em seu perfil no LinkedIn (!), que ainda mantém ativo – uma rede social que a maioria absoluta dos convocados à Copa do Mundo não tem, logicamente.
A eclosão de Mitchell Duke no futebol aconteceu mesmo com a camisa do Central Coast Mariners. O centroavante nem tinha números tão impressionantes, mas marcava seus gols e contribuiu à conquista da A-League em 2012/13, como um reserva que saía do banco para resolver. Isso rendeu as primeiras chances na seleção australiana em 2013, quando tinha 22 anos. Numa convocação sem os principais nomes, Duke participou do Campeonato da EAFF, que reúne seleções do Extremo Oriente. Marcou gols contra Japão e China, mas as derrotas dos Socceroos na campanha não o ajudaram. Quando estreou no time principal, ao lado de astros como Mark Schwarzer e Mark Bresciano, os australianos tomaram um 6 a 0 do Brasil de Felipão no Mané Garrincha, em setembro de 2013. Depois disso, o atacante ficaria seis anos sem ser convocado. Teria que ralar bastante.
A primeira experiência de Mitchell Duke no Japão aconteceu a partir de 2015. Assinou com o Shimizu S-Pulse, acabou rebaixado na primeira temporada e rompeu o ligamento cruzado do joelho numa partida da segundona. Contudo, exatamente uma semana depois da lesão, Jaxson nasceu. O primogênito virou seu talismã nas partidas da J-League e o clube conquistou o acesso imediato à primeira divisão. Curiosamente, o protagonista na promoção foi outro desses heróis efêmeros de Copas: o norte-coreano Jong Tae-se, aquele que chorou no hino durante a estreia contra o Brasil em 2010. Depois de se recuperar, Duke era reconhecido mais pelo espírito de luta do que necessariamente pelos gols. Presente em mais uma temporada e meia na primeira divisão japonesa, o australiano anotou apenas cinco tentos em 106 aparições pelo S-Pulse.
Mitch Duke estava no Japão na época da Copa do Mundo de 2018. E o centroavante se portava como um legítimo torcedor dos Socceroos nas redes sociais, sem qualquer tipo de vaidade. A esta altura, sua convocação parecia um devaneio. “AUSTRÁLIAAAAAAAAAAAAA! Rússia, aí vamos nós! Muito bem, rapazes, honraram seu país, fiquem orgulhosos por vocês!”, escreveu Duke em seu Twitter, após a classificação ao Mundial. Antes da estreia contra a França, ele também enfatizou: “Todo o país apoia vocês e mal posso esperar para vê-los fazerem a Austrália e vocês mesmos orgulhosos”. Mal sabia ele que sua história mudaria em poucos anos.
O retorno de Mitchell Duke à Austrália aconteceu no início de 2019, para vestir a camisa do Western Sydney Wanderers. Disputou meia temporada, antes de estourar com o novo clube em 2019/20. O centroavante virou capitão e atravessou o melhor momento da carreira, com 14 gols em 26 partidas pela A-League. Não passava despercebido dos Socceroos, ainda mais quando o técnico da seleção já era Graham Arnold, exatamente quem o lançara no Central Coast Mariners e com quem conquistou o título nacional em 2012/13. A volta do atacante aos Socceroos após seis anos aconteceu em junho de 2019. Arnold confiava em seu pupilo.
A excelente fase de Mitch Duke no Western Sydney Wanderers o levou ao futebol saudita. Não emplacou no Al-Taawon, mas seu único gol parecia um presságio: aconteceu no Catar, numa vitória por 1 a 0 sobre o Al-Duhail pela Champions Asiática. O centroavante retornou para mais meia temporada no Western Sydney Wanderers em 2020/21 e recuperou parcialmente sua fome de gols. Paralelamente, ganhou uma missão importante de Graham Arnold na seleção da Austrália. Num momento em que as atividades dos Socceroos eram retomadas após a fase mais aguda da pandemia, o atacante foi escolhido para ser um dos jogadores acima dos 24 anos nas Olimpíadas de Tóquio. Os australianos caíram na fase de grupos, mas venceram a Argentina. O triunfo por 2 a 0 teve duas assistências de Mitch.
A visibilidade nas Olimpíadas garantiu um novo contrato para Mitchell Duke retornar ao Japão. O centroavante assinou com o Fagiano Okayama, clube modesto da segunda divisão. Era uma escolha profissional que o afastava temporariamente da família. Com Chloe recém-nascida e Jaxson em idade escolar, os filhos permaneceram na Austrália com a mãe. Mitch ficava mais tempo longe das pessoas mais amadas, mas tinha um objetivo em mente e não esmoreceria.
Enquanto batalhava na segundona japonesa, Duke manteve seu posto na seleção da Austrália, inclusive na fase decisiva das Eliminatórias. O atacante costumava entrar no segundo tempo, mas reafirmava a condição de xodó de Graham Arnold. Mitch marcou gols nos dois jogos contra a China e também contra Omã no hexagonal final do qualificatório asiático. O treinador costumava elogiá-lo pela capacidade física no ataque e pelo espírito de luta. Continuou o bancando, mesmo que a fase na J2 com seu clube não fosse nada espetacular.
Mitchell Duke teve números não mais que razoáveis no Fagiano Okayama em 2022. Anotou oito gols em 36 partidas e a equipe disputou o acesso, com a terceira colocação e a queda nos playoffs da segundona japonesa. Em contrapartida, a aposta de Graham Arnold até cresceu. Escalou o centroavante como titular diante do Peru, na partida da repescagem que definiu a classificação para a Copa do Mundo. Mesmo sem marcar, Duke não precisava comemorar mais somente no Twitter. E, chamado para o Mundial, ele também seria titular na estreia diante da França, a mesma adversária que assistiu pela TV em 2018. O camisa 15 não produziu muito em campo, com destaque a uma pancada de fora que passou zunindo ao lado da trave. Foi no momento em que os Socceroos deram um susto inicial nos atuais campeões do mundo, antes de engolirem a goleada por 4 a 1.
Desde antes da Copa, muitos australianos defendiam que o titular no ataque da seleção deveria ser Jamie Maclaren. O centroavante empilhou gols e prêmios individuais pela A-League nas últimas temporadas, grande estrela no ataque do Melbourne City. Todavia, não possui a melhor relação com Graham Arnold. E foi na base da teimosia do técnico que, enfim, Duke recompensou o voto de confiança com seu papel heroico diante da Tunísia. O tão questionado atacante garantiu a vitória dos Socceroos no Catar.
Com sua presença física, Mitchell Duke brigou por todas as bolas. A Austrália fez um ótimo trabalho para travar a criação da Tunísia entre seus volantes, e o centroavante deu muita combatividade para atrapalhar essa construção. Além disso, teve seus escapes em busca das finalizações. No lance do gol da vitória, Duke foi excepcional. Primeiro, o camisa 15 realizou o pivô para proteger a bola na intermediária e preservar a posse. Depois, enquanto os companheiros tramavam o lance pela esquerda, o atacante disparou e estava no meio da área para dar opção ao cruzamento de Aziz Behich. A bola veio mascada, mas Duke fez do limão uma limonada: um leve desvio de cabeça, no canto do gol, sem chance de defesa. Lembrou até Jared Borgetti, num dos tentos de cabeça mais lembrados das Copas, no México 1×1 Itália de 2002. Na Austrália, vão se lembrar mesmo de Mitch.
A comemoração de Mitchell Duke, com o sorriso expresso e a dedicatória aos filhos, fazendo o “J” de Jaxson e o “C” de Chloe, tornou o personagem ainda mais querido. Depois de passar os últimos meses longe das crianças, trabalhando no Japão, a euforia tem mais significado. Certamente os torcedores mais corneteiros deixaram de lado as contestações (pertinentes) ao centroavante protegido do técnico. A batalha travada por Duke em campo se manteve até os 19 do segundo tempo, quando ele deu lugar a Maclaren no ataque. No banco de reservas, voltaria ao papel de torcedor e comemoraria a forma como os companheiros seguraram o resultado, em especial pela excelente apresentação feita por Harry Souttar no miolo da zaga e por Aaron Mooy na cabeça de área.
Mitchell Duke terá pelo menos mais uma partida em Copas do Mundo, contra a Dinamarca. As chances de classificação da Austrália permanecem pequenas, mas resistem. E a vitória sobre a Tunísia já garante um resultado melhor do que a encomenda, quando os Socceroos pareciam mais cotados a saírem zerados. Se a insistência do técnico com um atacante da segundona japonesa parecia um erro, no fim é essa escolha que dá mais sabor à participação dos Socceroos. Os dois filhinhos de Mitch e outras tantas gerações de sua família poderão se orgulhar por muito tempo da alegria que o centroavante gerou a todo seu país.