
Calciopédia
·8 de julio de 2025
O que explica o alinhamento das torcidas organizadas do Livorno ao comunismo?

In partnership with
Yahoo sportsCalciopédia
·8 de julio de 2025
Poucos clubes no mundo carregam uma identidade tão politicamente marcada quanto o Livorno. Em seus estádios, não há apenas futebol: há punhos cerrados, bandeiras vermelhas, cantos de resistência. Mais do que paixão pela modalidade, os torcedores expressam, jogo após jogo, um comprometimento ideológico que atravessa gerações. Em tempos de crescente despolitização e de mercantilização do esporte, o time amaranto se mantém como um símbolo para aqueles que acreditam que as arquibancadas são um espaço de expressar ideais e lutas. Mas como se forjou essa relação tão visceral entre uma equipe da Toscana e o comunismo? A resposta está nas ruas, nas fábricas e no porto da cidade.
O Livorno, fundado no ano de 1915 representa o espírito da cidade portuária de mesmo nome. A comuna da região da Toscana, fortemente marcada por sua origem operária, tradição de resistência ao fascismo e alinhamento ideológico à esquerda, é considerada o berço do comunismo na Itália, por ter sido palco da fundação do Partido Comunista (PCI; inicialmente abreviado PCd’I), em 1921, durante um congresso que expôs as diferenças entre socialistas e comunistas. Esse cenário político impregnou a identidade da cidade e, inevitavelmente, a da agremiação esportiva – que, relembramos, é mais antiga do que a sigla.
O Livorno, assim como sua torcida, reflete os valores políticos, históricos e culturais da classe trabalhadora e do antifascismo. As arquibancadas do estádio Armando Picchi se transformaram em um espaço de manifestações à esquerda, onde tremulam estandartes vermelhos, a foice e o martelo, além de homenagens a notórios símbolos do comunismo internacional, como Lênin e Che Guevara – sem falar em bandeiras de Cuba, União Soviética e, mais recentemente, Palestina. O clube deve ser entendido por meio de uma lógica de protesto, onde futebol e política se entrelaçam.
Em visita ao Olímpico, ultras do Livorno provocam rivais da Lazio (Getty)
Para compreender melhor a atuação do Livorno e de seus torcedores, é necessário analisar a cidade “rebelde” e sua aproximação com os ideais progressistas. Desde o início do século XX, a comuna da região da Toscana desafia as autoridades italianas vigentes. Seus bairros, de origem operária, eram extremamente antifascistas e resistiam à ascensão do governo de extrema direita de Benito Mussolini, na década de 1920.
Os fascistas afirmavam que não conseguiam adentrar na cidade toscana por conta da heterogeneidade de sua população, especialmente nas periferias. Os habitantes de Livorno eram diversos: mestiços, fugitivos, judeus, muçulmanos, protestantes, entre outros, formando uma cidade com raízes populares, alimentadas pela abertura de seu porto desde o século XVI.
A comuna era vista como um local subversivo, revoltoso e com alma libertária. Além disso, o Partido Socialista Italiano estava fortemente enraizado em Livorno, já que muitos trabalhadores foram atraídos pela esquerda após a I Guerra Mundial (1914-18) e durante o chamado Biennio Rosso, marcado pelo aumento de greves e ocupações de fábricas e terras. A Revolução Russa de 1917 serviu como ponto de referência à sigla, que também tinha força nas eleições municipais.
Bandeiras vermelhas e imagens com o rosto de Che Guevara são comuns na torcida do Livorno (Getty)
No entanto, durante o XVII Congresso Nacional do PSI, em 1921, surgiram tensões entre os socialistas, que seguiam uma linha mais reformista, liderada por Giuseppe Emanuele Modigliani, e os comunistas, que clamavam pelo viés revolucionário. Esses últimos romperam e fundaram um novo partido, o PCI, com o objetivo de focar nas atividades militantes nos bairros, ruas e praças de Livorno, especialmente no distrito proletário de Garibaldi, além da vigilância contra os fascistas.
Apesar das tensões internas, o PCI colaborava com militantes anarquistas, sindicatos e outras forças populares. Isso evidenciava a natureza libertária e plural do comunismo livornês, mesmo com elementos contraditórios.
Embora o fascismo tenha destruído grande parte de sua organização em 1926, o PCI se tornou o maior partido comunista a propagar a bandeira da foice e do martelo no mundo ocidental, alcançando um pico de 34% de apoio e 12 milhões de votos após a II Guerra Mundial (1939-45). A propósito, durante o conflito, Livorno foi um bastião da resistência ao nazifascismo, já que sua população teve forte atuação na luta partigiana.
Mensagens de cunho social, como esta, em apoio às vítimas de terremotos no Haiti e em L’Aquila, são comuns no Picchi (Getty)
Entre a década de 1970 e o início da de 1980, o PCI atingiu seu ápice, tendo no mínimo um terço dos assentos em todas as esferas parlamentares da Itália – conselhos regionais, equivalentes às assembleias legislativas estaduais brasileiras; Câmara dos Deputados; Senado e Europarlamento. Grande parte do eleitorado do partido se concentrava (e se concentra, até hoje) na Toscana, região em que Livorno está localizada, e nas vizinhas Úmbria e Emília-Romanha. Juntas, formam o chamado triângulo vermelho do país.
Apesar da tradição, no início dos anos 1990, o grupo comunista foi extinto dos debates políticos da social-democracia italiana e confluiu no Partido Democrático (PD) e em outras siglas menores, inclusive havendo a fundação de um novo PCI, em 2016. Depois da cisão, muitos militantes – honrando a identidade operária local – permaneceram ativos em espaços de colaboração e resistência ao fascismo, influenciando a torcida do Livorno. A memória coletiva de resistência se perpetuou nas gerações seguintes e se estendeu ao universo das organizadas.
Por essa perspectiva, o Livorno é considerado o lado vermelho do futebol italiano. Seus torcedores, conhecidos como labronici, junto com os moradores da cidade, sempre se posicionaram contra a extrema direita, com uma posição bem definida: “se você é torcedor do Livorno, é comunista, é de esquerda”. Os ultras mantêm postura ativa em temas como antifascismo, antirracismo, direitos trabalhistas e luta de classes, e pregam o combate à xenofobia e ao preconceito dentro do esporte. Além disso, a cidade é considerada por muitos um ambiente seguro para essa forma de torcer.
Com seu posicionamento anticapitalista, os ultras do clube amaranto também contestaram demissões em massa na Fiat (Getty)
Diversos jogadores relevantes foram projetados ou se destacaram grandemente pelo Livorno. Por exemplo, Marco Amelia, Giorgio Chiellini, Raffaele Palladino, Antonio Candreva, Igor Protti, Mario Magnozzi e os mais emblemáticos deles: os irmãos Alessandro e Cristiano Lucarelli – este último, terceiro maior artilheiro do clube, atrás de Magnozzi e Protti. Comunista declarado, o ex-atacante frequentemente afirmava que “a política está em todo lugar, e esta é a camisa que visto”.
Além de torcedor do Livorno e filho da terra, Lucarelli comemorava seus gols com o punho erguido, símbolo de luta, e ajudou a criar, em 1999, a maior torcida do clube, a Brigate Autonome Livornesi – Brigadas Autônomas Livornesas, em português. Nos anos em que vestiu a camisa amaranto (2003-07 e 2009-10), usou o número 99, em homenagem aos ultras da BAL.
A organizada BAL deixou de existir em 2005, depois de receber diversas punições sob o escopo daspo – ou seja, a proibição de acesso a eventos esportivos. Numa de suas seis temporadas de existência, seus membros chegaram a receber 500 ganchos. Grande parte dessas sanções se deram por conflitos com os ultras rivais de Lazio, Verona e Triestina, aderentes a ideologias de extrema direita. No fim das contas, as suspensões fizeram com que o grupo toscano optasse por encerrar suas atividades.
Uma despedida ao sul-africano Nelson Mandela e bandeiras antifascistas: um dia normal no Picchi (Getty)
Em seguida, surgiu a Curva Nord Livorno 1915, que é composta pelos subgrupos Prima Linea 1915, Brigata Seleuco Tronieri e Frenetici 1915. Juntos, estão sempre presentes no setor norte do estádio Armando Picchi, imbuídos de um sentimento de luta política, com cânticos como “Bella Ciao” e “Bandiera Rossa”.
Avanti popolo, bandiera rossa Alla riscossa, alla riscossa Avanti popolo, bandiera rossa Alla riscossa, trionferà Bandiera rossa la trionferà Bandiera rossa la trionferà Bandiera rossa la trionferà Evviva il comunismo e la libertà
O Livorno foi um tradicional militante da elite do futebol italiano dentre o início da década de 1920 e o fim da de 1940. Os amaranto chegaram a ficar afastados do topo por 55 anos, até tornarem a vivenciar a primeira divisão de 2004 a 2008 e também nas temporadas 2009-10 e 2013-14. Entretanto, péssimas administrações e resultados decepcionantes levaram o clube a amargarem um dos períodos mais nefastos de sua história: foi rebaixado diversas vezes, perdeu atletas para times mais estruturados e, em 2021, após falir por inadimplência, teve que reiniciar a partir da Eccellenza Toscana, equivalente ao quinto nível da modalidade na Itália. Como o nome indica, o torneio é disputado de maneira regionalizada.
Após o fim da maior organizada, as torcidas do Livorno se uniram em um único grupo (Getty)
O Livorno subiu para a Serie D em 2022, depois de ter sido vice-campeão da categoria e ter herdado a vaga do Figline, punido por ilícito esportivo. Em 2025, o time foi campeão da quarta divisão mesmo em meio a protestos da torcida contra Joel Esciua, ítalo-brasileiro que é presidente do clube desde 2023 – em maio de 2024, torcedores explodiram duas bombas artesanais em frente ao hotel em que o proprietário se hospeda quando viaja até a cidade toscana.
Esciua se recusa a vender suas cotas a Andrea Locatelli, empresário livornês que trabalhava na Infront, companhia de marketing esportivo especializada em negociar a venda de direitos de TV – como os da Serie A. Com o projeto “Livorno Somos Nós”, inspirado no modelo 50 + 1 do futebol alemão, o toscano visa entregar o controle acionário aos torcedores, que se associariam e teriam poder de decidir os rumos do time. O plano é apoiado por Cristiano Lucarelli e Protti, mas, ao menos por enquanto, está restrito ao campo das ideias.
Mesmo com os muitos altos e baixos ao longo de sua história, o Livorno nunca se limitou a ser apenas um time de futebol dentro das quatro linhas. Através de sua torcida, sempre ergueu suas bandeiras e defendeu suas convicções, atuando em favor de sua cidade e dos ideais em que a maior parte de seus moradores acredita. A relação entre o clube, a comuna e o comunismo transcendem o esporte, formando um tripé de resistência e identidade que permanece vivo até os dias de hoje.