Zerozero
·1 de diciembre de 2023
«A malta de Sporting e Benfica vinha cá para chamar nomes ao Pinto da Costa»

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·1 de diciembre de 2023
Centenário, o Estádio São Luís faz hoje 100 anos de vida. Incrível, e verídico. Também incrível é a travessa de cadelinhas à mesa com António Boronha, presidente do Farense nos anos 80 e 90 [1989 a 1992 e 1995 a 1998, além de vice presidente da FPF entre 1998 e 2002], ali ao lado do Mercado de Faro, em Setembro, por altura da Vuelta. E o entrevistado é que inicia a entrevista - esta é a PARTE I de uma conversa que ainda passou pelas relações com os presidentes de Benfica e Sporting, além dos muitos atos falhados na Seleção Nacional.
Viu ontem a Vuelta?
Não, então?
O João Almeida, que grande contrarrelógio.
Vê sempre?
Vejo tudo: Tour, Giro, Vuelta.
E a Volta a Portugal?
Vi muitas etapas aqui no Algarve, quando era miúdo, no tempo em que a Volta fazia três etapas seguidas cá em baixo, estilo chegada a Monchique, depois Lagos-Loulé e, finalmente, partida de Tavira. Saía de casa e os meus pais não me viam durante três dias. Eu e um grupo de amigos gostávamos de acompanhar a Volta e lá íamos todos felizes.
E o futebol?
Ia com o meu avô. Sabe que vivia aqui por cima [e aponta para a porta ao lado da nossa mesa].
Nãããão, a sério?
Sério, sério. Vivia aqui por cima, no primeiro andar. Devia ter uns cinco, seis anos de idade, mas lembro-me perfeitamente: o meu avô chegava, eu descia as escadas, entrava no carro e íamos ao São Luís.
Maravilha.
Sou o sócio 24 do Farense, lembro-me bem do pelado e lembro-me muito bem de uma eliminatória da Taça de Portugal com o Covilhã. O guarda-redes deles era o Rita e o nosso Queimado conseguiu falhar o golo a dois metros da linha.
Apanhou a subida do Farense à 1.ª divisão, em 1970?
Não, porque saio daqui para a faculdade em 1966 e só voltei depois da tropa, em 1974.
Andou por onde?
Lisboa, África, Mafra, Madeira.
Madeira, que luxo.
Acharam que eu gostava de mar e toma lá. Era o tempo em que se demorava 50 minutos para ir do aeroporto até ao Funchal.
O Farense, então, é uma experiência mais tarde.
Assumi em Junho de 1989. Enquanto presidente, ganhei ao Sporting e ao Benfica. Só nunca consegui ganhar ao FC Porto, levava sempre na pá.
Ainda se lembra da sua primeira contratação?
Eischhhhhh, onde andava ele?
Na 2.ª divisão jugoslava. Foi o Bukovac quem me falou dele, paguei 4 mil contos. Mais tarde, quando já era dirigente da federação portuguesa, encontrava muito o Lemajic nas UEFA’s e FIFA’s desta vida, porque ele representava Montenegro.
O Boronha entra em 1989. Porquê e como?
Ahahahah, boa, boa. Ora bem, o [Fernando] Barata vai-se embora três meses antes do fim do campeonato, juntamente com o treinador inglês Malcolm Allison, que era um doido. O Paco Fortes estava lesionado e foi promovido a jogador-treinador, embora não tivesse habilitações para estar no banco. Bom, eram outros tempos.
E depois?
O Paco até faz uma ponta final porreira, só que descemos à mesma. Perdemos em casa com o Espinho. Nesse entretanto, há que eleger um presidente. Eu estava entre a câmara municipal e o clube, mas não queria nada com a câmara. Então meti-me no Farense, fui eleito em Junho de 1989. Descemos a 21 Maio e sou eleito no dia 5 Junho. Às seis da tarde desse dia, peguei no Paco e fomos a uma cervejaria ali em baixo. Convidei-o para ser treinador a tempo inteiro, a ele e ao Fanã. Aceitaram, combinámos um salário e foi o que se sabe em 1989/90: uma época de sucesso, com subida garantida à 1.ª divisão em Março, título de campeão da 2.ª, zona sul, mais chegada à final da Taça de Portugal. Veja bem, subimos nesse ano à frente de equipas com melhor orçamento que o nosso, como era o caso do Olhanense. Quando eles iam a Lisboa, ficavam no Hotel Altis. E nós numa pensão marreca.
Essa final da Taça com o Estrela foi extraordinária. O Farense eliminou quem na meia final?
O Belenenses, no Restelo. Um golo de Mané no prolongamento. Coitado, já morreu, num acidente. No autocarro para baixo, meti-me com ele e disse-lhe ‘Mané, você marcou um golo na terra do menino Jesus.’
E ele?
Acreditava, ahahahaha.
E a final?
Foi uma coisa única, basta dizer que a cidade de Faro ficou deserta.
E o António ficou no banco ou…?
Fui para a tribuna, juntamente com o Primeiro-Ministro Cavaco Silva, metido ali porque o presidente Mário Soares não gostava de futebol. Grandes histórias, Rui. Adiante, empatámos e voltámos a Faro para regressar ao Jamor daí a uma semana.
E a derrota desanimou-vos?
Nunca é bom, claro, mas o nosso ambiente sempre foi bom. Sempre, sem exceção. Havia uma ligação muito especial, uma ligação familiar entre todos. Lembro-me de um dia em Março, nas vésperas de um jogo com um dos grandes, a televisão veio cá para falar dos três meses de salários em atraso. Entrevistaram o Eugénio e chatearam-no pelos salários em atraso. O baixinho fugiu sempre à questão, ahahah. Éramos uma família porreira.
E a época seguinte, já na 1.ª?
Envolve muito mais dinheiro, entre receitas, transmissões televisivas etecetera. A cinco jornadas do fim, ganhámos 1:0 em Alvalade e jogámos para a Europa até à última jornada, só que perdemos em casa com o Marítimo, que estava para descer.
Estou a ver aqui, o golo do Farense ao Sporting foi do Curcic.
Contratei-o ao Antuérpia, da Bélgica, novamente através do Bukovac. Era grande amigo dele, do Bukovac.
E amigos presidentes da 1.ª divisão, quem eram?
Linhares, do Salgueiros, e Paulo de Carvalho, do Rio Ave. O presidente do Chaves, escapa-me agora o nome, emigrante dos EUA, também era porreiro. E o do Famalicão também. Uma vez fomos jogar a Famalicão e alguns dirigentes do Farense levaram as mulheres. À noite, agarrámos no autocarro do clube e demos boleia ao presidente do Famalicão para jantar connosco. Com o Pinto da Costa era uma relação de amor-ódio.
Ai sim?
Na primeira época, houve aqui a invasão.
Num Farense-FC Porto?
Farense perdeu 1:0. O Rui nem imagina: quando o FC Porto jogava aqui, a malta de Sporting e Benfica vinham cá para chamar nomes ao Pinto da Costa, ao Octávio Machado e até ao Artur Jorge. O golo do FC Porto foi no último minuto, a arbitragem foi contestada e o FC Porto viu-se grego para sair do estádio, tal a confusão de pessoas fora de si. Então disse ao Pinto da Costa para entrarem no nosso autocarro que os levava ao aeroporto. Falei com a polícia e acertámos um plano de virar à esquerda à saída do estádio. Só que o motorista, de tanto habituado a virar à direita, enganou-se e virou à direita. Fomos de encontro à multidão e o autocarro foi apedrejado. Os gajos do Porto todos cagados. Todos, menos o Octávio e o Pinto da Costa a comerem a sua sandes e a beber o seu sumol. Houve mesmo um central do Porto que se cagou literalmente, borrou-se mesmo. Quando chegámos ao aeroporto, o Pinto da Costa ofereceu-se para ser testemunha quando o caso fosse a tribunal desportivo.
E foi a tribunal?
Claro, apanhámos três jogos. Sabes quais foram?
Nem ideia.
O primeiro com o Sporting, no Barreiro. O segundo com o Benfica, em Setúbal. O terceiro com o União da Madeira, no Montijo. Fizemos quatro pontos em seis possíveis, o que seria normal mesmo em São Luís, mas as receitas é que foram ao ar. E eram Sporting mais Benfica. Aliás, o Benfica era o clube que mais enchia o estádio.
E depois?
Quando fui jogar ao Porto, já na segunda volta, fui recebido como se fosse o presidente da república. Na segunda época, o Farense-FC Porto bateu no fim-de-semana das eleições legislativas.
E qual foi o problema?
O FC Porto tinha um jogador castigado e dois lesionados. O Pinto da Costa mete então o seu pau mandado João Rodrigues, da Federação Portuguesa de Futebol, que até era um grande benfiquista mas fazia tudo o que Pinto da Costa lhe dizia, a adiar o jogo.
Uyyyy.
Eu bati o pé. Eles do Porto alegavam que o jogo era sábado e não dava tempo para chegar ao Porto e votar nas eleições. Todo um drama, estás a ver? Liguei ao Cavaco, vê bem.
Ahahahahah.
Estava ele a fechar a campanha, no Rossio. Não tínhamos, nós do Farense, dinheiro para mandar cantar um cego, mas falei com um amigo meu da TAP e dissemos que estávamos em condições de fretar um avião para a viagem ida e volta do FC Porto. Nada feito, mantinha-se a ideia de adiar o jogo. Então, o dirigente João Pedro Carvalho teve a ideia de abrir o estádio e fazer como se houvesse jogo. Ele até mandou fazer faixas, imprimiu-as em Olhão. Uma delas dizia ‘Rodrigues piu piu vai para a p*** que te pariu’. A gente abriu o estádio, as bancadas encheram-se de 15 mil gajos e fiz um discurso empolgante para as massas, ahahahah. No dia seguinte, fomos primeira página em quase todos os jornais nacionais.
E o jogo foi mesmo adiado?
De Outubro para Fevereiro. Empatámos 1:1. Mas antes desse jogo, ameacei o João Rodrigues, porque tínhamos perdido a receita do jogo. Fizemos as contas à lotação esgotada ao preço mais caro dos bilhetes e dava 16/17 mil contos. Mais uns pozinhos, levámos a conta para os 24 mil. Meti num carro e fui à reunião da direção da federação. E disse ‘isto é muito simples, dão-nos os 24 mil contos e metemos uma pedra em cima do assunto; daqui não saio.’ Sabia perfeitamente que a federação não tinha dinheiro nenhum, mas era a única forma de fazer pressão.
E a federação?
O João Rodrigues chamou-me ao gabinete, ligou ao Roberto Carneiro, então o ministro da educação, que era amigo do ministro da administração interna, e prometeu resolver o assunto.
Como?
Libertou o dinheiro do policiamento dos jogos e fez-me um cheque de 12 mil contos. Pronto, já era metade. O resto ficou selado num acordo verbal de cavalheiros. Saio do gabinete e deviam estar uns 100 jornalistas nas escadas da Praça da Alegria,. O Ribeiro Cristóvão mandou raptar-me e levou-me à RTP, com batedores da polícia e tudo. Entrei nos estúdios da RTP e imaginas a conversa do ‘ele pagou, ele não pagou’ e eu com aquele paleio da treta. Aquilo era complicado e o Ribeiro remata a entrevista com ‘bom, já percebemos senhor presidente, vai chegar ao Algarve com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma’. E eu levei instintivamente a mão ao bolso do casaco. Bem, o gesto foi detetado pelo Cartaxana pai, do Record, e ele escreveu que não acreditava que eu tivesse saído da federação sem nada na mão. Sabes qual foi o resultado dessa cena?
Qual?
Naquele tal discurso às massas no São Luís, bati na federação e, ao de leve, no FC Porto. Quando fui jogar às Antas, levei o meu filho de oito anos, almoçámos tripas, levantei os bilhetes à porta do estádio e o Pinto da Costa tinha-me mandada para um camarote lá na ponta.
Inimigos até quando?
Voltou tudo à normalidade no ano seguinte. O Pinto da Costa fez as pazes comigo.
[A parte II da entrevista pode ser lida aqui]