Zerozero
·16 September 2024
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·16 September 2024
Paulo Alves, eleito o melhor treinador da II Liga há duas temporadas, está atualmente sem clube. Após o título de campeão do segundo escalão e consequente subida do Moreirense em 2022/23, o antigo ponta-de-lança teve uma curta passagem pelo Lugo, da terceira divisão espanhola. Ainda à procura do projeto certo para voltar ao ativo, fez ao zerozero um balanço dos seus últimos anos como técnico em Portugal.
zerozero - Paulo, bem-vindo. Depois de uma grande experiência no Moreirense, as coisas no Lugo não correram tão bem. O que tem andado a fazer por estes dias?
Paulo Alves - Obrigado. Nesta altura o que posso fazer é ir acompanhando o que se passa no futebol, estar por dentro da realidade das equipas da primeira e segunda liga, para quando surgir a oportunidade ter conhecimento de todas elas.
ZZ - Sabendo o que sabe hoje, teria aceitado o projeto do Lugo ou teria evitado?
PA - Teria aceitado. Foi um projeto que me aliciou bastante, de um clube que tinha estado cerca de 15 anos na segunda liga, um clube com muita história, com muito apoio popular, e o desafio era muito interessante e passava por fazê-los regressar à segunda liga espanhola. Mas o que aconteceu depois foi surreal, porque demos a volta a uma sequência negativa e ao fim de uma série de dois empates e duas vitórias decidiram mudar de treinador. Até hoje não me explicaram a razão, não sei o que aconteceu, sinceramente. Mas voltaria a aceitar.
ZZ - Depois de ter sido campeão no Moreirense e de ter sido eleito o treinador do ano na segunda liga, não foi abordado para continuar. Ficou magoado com isso?
PA - No futebol, para mim, não há mágoas. Sou um treinador muito simples e objetivo. No início daquela época até achava que ia ser catastrófico. O que se passou no Moreirense foi de facto algo extraordinário. Por tudo aquilo que encontrei após uma época de descida de divisão, com um balneário completamente em pantanas, conseguimos dar a volta a tudo isso e atingir o que nós atingimos. Foi algo de extraordinário. O problema é que ofuscámos algumas pessoas, que até tiveram responsabilidades na descida, e que, pela influência que têm no clube, arranjaram forma de que eu não ficasse. Pior do que isso, continuam a passar a imagem de que sou um treinador desatualizado, questionam os meus métodos. Mas eu pergunto: como é que um treinador que consegue o que eu consegui, sendo campeão e batendo todos os recordes, com maus métodos? Isso não existe.
O jogador de hoje é exigente, questiona muito. Se um treinador não tem bons métodos, boas ideias, não vai ter sucesso. O que acontece, por vezes, é que se confunde a simplicidade com essa tal desatualização. Isso hoje está um bocadinho enraizado no futebol. Se um treinador não consegue explicar uma situação simples de jogo como se fosse um cirurgião a explicar um processo cirúrgico, está desatualizado. Isso não é assim. Não sei porque é que que fazem isto.
O ano da descida foi complicadíssimo e tivemos de resolver muitos problemas. Muitos jogadores pediam-me, a chorar, para sair porque não estavam felizes no Moreirense, um deles o melhor marcador da equipa na subida (André Luis). Sou um treinador simples, mas estou dentro do que é o futebol moderno, tenho todas as habilitações para treinar qualquer competição no mundo.
ZZ - Tem sentido algumas portas a fecharem-se depois dessa má relação no Moreirense?
PA - Não tive má relação com ninguém. O problema é que há pessoas que agem nos bastidores e na primeira oportunidade que têm de liderança espalham-se ao comprido. E isso intimida e ofusca as pessoas. O feedback que tenho tido é esse, porque já estive praticamente contratado por clubes e à ultima hora surge sempre essa ideia. E ela vem desse sítio especifico.
ZZ - Quando sobe, constrói uma base que se evidencia muito na época seguinte na primeira liga. Sente-se parte desse sucesso do Moreirense?
PA - As pessoas têm de perceber que sou low-profile, não sou de me pôr em bicos de pés. Hoje julga-se mais pela embalagem do que pelo conteúdo e há pessoas que têm mais capacidade para se vender. Eu, quando chego ao Moreirense, não tinha nada para agarrar. A equipa estava completamente destruída, tive de fazer tudo de raiz.
O caso do Gonçalo Franco é um bom exemplo. Quando me reúno com o presidente do Moreirense, na entrevista, ele diz-me, ao fim de meia hora, que me vai contratar porque eu lhe disse coisas que ele pensava há 20 anos mas que nunca ninguém lhe tinha dito.
Quando soube que ia ser o treinador do Moreirense, falámos mais a fundo sobre os temas e acabámos por falar do [Gonçalo] Franco. O presidente disse-me assim: 'Se eu tivesse partido uma perna, já tinha recuperado. Agora os 500 mil euros que paguei ao Leixões pelo Franco, nunca mais os vou ver'. Achei aquilo engraçado, mas sem trabalhar com ele não conseguia dizer muita coisa.
Passado uns dias, em reunião de pré-época, os técnicos que transitaram do ano anterior, disseram-me que o Franco era o melhor exemplo ao nível das métricas de GPS que o clube tinha. Dados de jogo, de treino, metros de alta intensidade, quilómetros percorridos. Quando fomos treinar, começo a ver o Franco a correr para todo o lado, a pressionar os centrais, a pressionar o guarda-redes. Tive de definir e ajustar o que o Franco tinha de fazer, a delimitar o raio de ação. Os dados de GPS baixaram substancialmente, mas a época começou e logo no mês de Agosto o Franco ganha o prémio de médio do mês e faz uma época extraordinária.
Logo no final dessa época houve propostas. O Moreirense decidiu, e bem, ficar com ele mais um ano para lhe dar mais visibilidade, e não foi preciso o presidente partir uma perna para recuperar o investimento. Até duplicou ou triplicou os valores do Franco.
Sinto que houve ali muito trabalho, sobretudo ao nível psicológico e de motivação de jogadores que não estavam bem no clube. O trabalho que fizemos levou a que o clube fosse campeão mas também a construir bases para o que o Moreirense é hoje.
ZZ - Percebemos, das suas últimas entrevistas, que é mais criterioso a escolher os projetos. O que é que já não aceita?
PA - Defini para mim que, depois do ano do Moreirense, jogar por títulos é muito estimulante e motivador. Já recusei alguns projetos onde senti que seria difícil atingir essa bitola. Não tem a ver com orçamentos ou os nomes de equipas. Fui campeão no Moreirense mas já tinha sido campeão com uma equipa muito, mas mesmo muito barata. Sei disso porque fazia também de diretor desportivo e estava por dentro dos valores do mercado. Estou à espera que surja esse desafio, que acredito que vá acabar por surgir, porque é o que realmente me estimula, lutar por títulos. Sei exatamente como se chega lá.
ZZ - Passou por várias gerações de futebolistas, enquanto jogador primeiro e depois enquanto treinador. Que diferenças encontra nas gerações?
PA - Há seguramente diferenças entre gerações. O jogador de hoje é um jogador mais exigente no trabalho, tem à volta um staff que o apoia, nem sempre bem, mas que lhe define o trabalho que tem de fazer.
ZZ - É um grande desafio para os treinadores?
PA- É um desafio. Às vezes colocam-nos situações complicadas. No meu tempo era tudo muito mais simples, os treinadores tinham mais margem de manobra. Hoje os clubes estão muito mais apetrechados em tecnologia que apoia os jogadores e treinadores, a ciência ajuda muito no desenvolvimento do jogador e temos de estar por dentro disso tudo. Quem não dominar isso, hoje em dia, é difícil. Mas há coisas que se mantêm da mesma forma. A gestão de homens é semelhante.
ZZ - E o staff de treinadores também aumentou, por isso o treinador principal tem de se preocupar mais com a gestão de homens do que a performance?
PA - Sim, por isso é que eu digo que há gente para tudo. Mas a gestão mental ainda é a charneira de uma equipa de futebol. Podemos ter essa tecnologia toda, se não conseguirmos gerir um balneário e colocar toda a gente no mesmo caminho, não vamos conseguir.
ZZ - Tem algum caso específico em que tenha ignorado a ciência e seguiu apenas o feeling e a coisa correu bem?
PA - Tenho. No Moreirense tenho uma história de início de época em que os jogadores não queriam lá estar. A pré-época foi feita com jogadores que não queriam lá ficar. Tínhamos 13 ou 14 jogadores e não podíamos treinar na totalidade do campo, isso fazia com que não atingíssemos os valores de referência, em termos de GPS, que o clube tinha das épocas anteriores.
O departamento de performance começou-me a pressionar para fazer o treino compensatório, fazer aberturas no final do treino. Só que isso ia interferir com a mentalidade dos jogadores, com a questão pessoal dos jogadores, que estavam ali contrariados, que se queriam ir embora, as coisas não estavam fáceis, e eu defini: não se faz treino compensatório nenhum. Só vamos atingir estes valores quando tivermos o grupo fechado, com 20 e poucos jogadores, e a partir daí sim, após três ou quatro semanas vamos atingir esses valores. Ao fim dessas semanas estavam-me a dar os parabéns porque tinha gerido bem.
Mas daí se explicam algumas coisas. O mal estava feito. O que sai da situação é que «o Paulo não dá importância ao GPS», o que é completamente errado. Hoje já ninguém passa sem GPS, são fundamentais na gestão das cargas e prevenção de lesão. Naquele caso, se tivesse feito o tal treino compensatório, perdia a confiança daqueles jogadores. Mas não é isso que define a minha gestão de homens, que é o que eu considero o principal fator de sucesso de uma equipa.
ZZ - Passou como treinador na Arábia Saudita, numa fase diferente do futebol árabe. Já previa este boom?
PA - Era uma fase diferente, não tinha este investimento. Já lá estava o Jorge Jesus, mas sem esta dimensão de agora. É um futebol essencialmente de televisão. Cheguei a fazer jogos de 100 espectadores no estádio. Acho que é isso que estão a tentar transformar. E têm uma coisa que é fundamental: dinheiro que nunca mais acaba, podem fazer o que bem entendem.
É muito difícil fazer de um árabe um grande profissional, porque não tem essa paixão. Toda esta leva de jogadores que vai para lá é para tentar dar outra mentalidade.
ZZ - Teve dificuldade em aplicar essa mentalidade?
PA - Muitas dificuldades. É o principal. Coisas que aqui são básicas como começar um treino às 10 horas. Há sempre um que chega às 10h10 e está tudo bem para ele. Se lhe disseres que está atrasado, ainda te pergunta «E então? Qual é o problema?».
ZZ - No seu percurso como treinador há uma passagem pelo Irão que foi caricata. O que aconteceu?
PA - Foi uma situação surreal. Foi um clube de segunda liga, que estava a fazer uma aposta muito grande para subir de divisão. O presidente era uma pessoa com muito dinheiro e queria fazer o clube regressar à primeira divisão 30 ou 40 anos depois. Uns anos mais tarde até conseguiu fazer isso. O clube até era bom, com boas condições para treinar, não começámos mal, as coisas estavam a correr mais ou menos.
Entretanto vim a perceber, através do meu intérprete, a contrapartida do presidente do clube para voltar a trazê-lo para a primeira liga era que a câmara lhe cedesse uns terrenos para construir um estádio novo e uns prédios, onde faria permuta e negócio.
Após um jogo em que ganhámos, num dérbi local, as pessoas estavam muito contentes. O presidente aproveitou essa situação e foi à câmara exigir esses terrenos, mas não lhe foi feita a vontade. O homem chateou-se e fechou a porta. Disse a toda a gente: «Não ponho aqui mais dinheiro. Quem quiser ficar fica, quem não quiser não fica». Ainda fiquei mais 15 dias, para ver se as coisas se compunham, mas ao fim de 15 dias começámos a ter problemas de pagamentos e vim embora.
ZZ - Aproveitando a sua experiência no nosso campeonato, vimos uma declaração sua de 2022 onde antevia dificuldades de adaptação de Roger Schmidt a Portugal. Não aconteceu logo, mas veio a acontecer mais tarde. O que o fez «adivinhar» isto?
PA - Defrontei uma vez o Roger Schmidt, e teve um desportivismo extraordinário, que raramente vejo noutros treinadores, quando os eliminámos na Taça da Liga com o Moreirense. Veio-me dar os parabéns e dizer que tinha gostado muito da equipa.
No entanto, eu acho que quando nós não conseguimos inspirar a nossa equipa, quando não se sente uma reciprocidade entre treinador e equipa...
ZZ - Não havia empatia?
PA - Não havia empatia. O homem não conseguia. Eu olhava para ele no banco e ele não tem expressão. Passa o jogo de mãos nos bolsos, não transmite uma inspiração, não há uma vibração.
Além de outros problemas incompreensíveis a nível de gestão, de substituições. Tinha de acabar mal, infelizmente para o Benfica e para ele. Não se conseguiu adaptar ao futebol português.
ZZ - E Vítor Bruno? Disse uma vez que ser adjunto não é a mesma coisa que ser treinador principal. Esperava que tivesse este início?
PA - Contínuo a dizer a mesma coisa, não é a mesma coisa ser adjunto do que ser principal. O Vitor Bruno tem tido essa capacidade de juntar todos os pedaços, de resolver as questões de jogadores que se incompatibilizaram com o Sérgio. O Vítor tem conseguido juntar isso e revitalizar alguns jogadores e isso tem sido muito importante. É uma pessoa sensata. Mas só podemos ver mais à frente onde vai dar esta gestão, ainda é muito cedo. O FC Porto é um clube super exigente, as vitórias têm de ser umas atrás das outras, e só mais à frente podemos comprovar isso. Mas é um bom princípio.
ZZ - E Ruben Amorim? Qual é a maior qualidade? É a gestão de grupo?
PA - Sim, fundamentalmente a gestão humana. É algo que admiro no Ruben, que é a comunicação. Não sei qual é a comunicação que ele tem com os jogadores, mas posso imaginá-la.
ZZ - Não há de ser muito diferente da que vemos?
PA- Exatamente. Não há de ser, nem pode ser diferente, senão estava a contradizer-se.
Tem as suas ideias de jogo e a capacidade de as desenvolver, e elas resultam. Mas sem uma comunicação objetiva, clara e simples sobre os jogadores, explicando as coisas publicamente. Quando chega ao balneário diz exatamente a mesma coisa.
Um treinador não tem que ser obrigatoriamente justo, nem pode ser. Tem é que ser coerente e verdadeiro. Quando os jogadores percebem isso, alguns são injustiçados mas não são enganados.
Esse é o grande mérito dos grandes treinadores. Por exemplo, o Ancelotti? Todos os jogadores dizem que ao nível tático é a coisa mais simples que pode existir, mas é correto com os jogadores, e deixa-os expressarem-se. Há muita gente que quer robotizar os jogadores, definir os comportamentos todos dos jogadores. Essa não é a melhor maneira de um jogador se expressar. Os jogadores têm de saber que há regras, há comportamentos a ter, mas depois tem que ter capacidade de se libertar, de se expressar, e de poder ser ele.
O sucesso que o Ruben Amorim tem tido não se pode dissociar de tudo isto que referi e que tem feito dele um dos melhor treinadores nacionais.