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Calciopédia

·30 July 2025

Entre lago paradisíaco e mansões luxuosas, o Como toca projeto ambicioso e controverso

Article image:Entre lago paradisíaco e mansões luxuosas, o Como toca projeto ambicioso e controverso

Uma idílica cidade à beira de um dos lagos mais belos da Europa voltou a ter um representante na elite do futebol italiano em 2024. Após 21 anos, o Como retornou à Serie A e, em sua primeira temporada de volta ao campeonato, em 2024–25, surpreendeu ao terminar na 10ª colocação, incomodando grandes equipes do país. Mas, por trás do conto de fadas, há um projeto ousado, endinheirado e também controverso, pela origem de seus recursos, que coloca o clube no centro de debates sobre os rumos do esporte na contemporaneidade.

Quem está por trás?

Fundado em 1907, o Como foi comprado em 2019 por investidores pouco convencionais: os irmãos Robert Budi Hartono e Michael Bambang Hartono, bilionários indonésios donos do Bank Central Asia e do grupo Djarum, gigante do setor de tabaco e fabricante das marcas Black e L.A., comercializadas no Brasil. Eles assumiram o controle da empresa antes dos 25 anos, devido à morte do pai, Oei Wie Gwan, em 1963. Em seguida, tiveram de esconder sua origem étnica durante o governo de Suharto na Indonésia, que impôs restrições aos sobrenomes chineses. Assim, escolheram Hartono como alcunha pública.


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Inicialmente, a aquisição dos Hartono no Como foi tida como um investimento da SENT Entertainment, empresa de mídia ligada ao serviço de streaming Mola, ambas de propriedade da família. Nesse período, a administração do clube passou por executivos ocidentais, incluindo até mesmo o ex-jogador Dennis Wise, ídolo do Chelsea e membro do elenco da Inglaterra na Euro 2000. Em 2024, com o acesso do time à Serie A, o indonésio Mirwan Suwarso (cuja foto encabeça o texto) passou a acumular os cargos de CEO do Mola e presidente da agremiação lariana.

Homem de confiança dos Hartono, Suwarso é a interface entre os empresários pouco presentes e a Itália. Budi e Bambang jamais assistiram uma partida do Como no Giuseppe Sinigaglia ou em qualquer outro estádio. Até agora, o clube recebeu apenas raras visitas de Widowati, a Giok, esposa do primeiro dos citados, e de Victor, filho do casal e primeiro na linha de sucessão.

São bastante raras as visitas à Itália feita por integrantes da família Hartono, dona do Como: na foto, Giok segura camisa do clube (Getty)

Apesar da distância, a escolha dos bilionários irmãos Hartono por investir no Como certamente não foi fruto do acaso, mas sim de uma estratégia que envolve prestígio e posicionamento. Com um patrimônio conjunto que ultrapassa os 43 bilhões de dólares, os indonésios são os donos da maior fortuna entre todos os proprietários de clubes italianos e estão na lista dos mais potentes de toda a Europa. Os empresários enxergaram na agremiação sediada às margens do deslumbrante Lago de Como não apenas uma porta de entrada no futebol europeu, mas um ativo com valor simbólico e imobiliário incomparável.

Afinal, o clube está ancorado num dos cenários mais luxuosos e exclusivos da Itália, localizado a cerca de 40 km de Milão, uma das capitais mundiais da moda e o principal centro financeiro do país. Repleto de mansões, o lago é frequentado por magnatas, estrelas de Hollywood e figuras da aristocracia global. Investir no Como é associar sua marca não só ao glamour e à tradição da Serie A, mas também ao estilo de vida sofisticado que o Lario, como é chamado, representa: um ambiente em que negócios, turismo de elite e cultura se entrelaçam com naturalidade. Não é à toa que volta e meia a diretoria recebe famosos nas tribunas de honra do Sinigaglia, situado na orla da cidade.

Os irmãos articulam um projeto calcado no entretenimento, no turismo e na transformação do Como em uma marca global de lifestyle. Isso tudo apesar do histórico da indústria que sustenta a fortuna da família: o cigarro, com todas as implicações sociais e de saúde pública que carrega.

A Djarum tem como especialidade os cigarros de cravo, com sabores e aromas que atraem os jovens. A Indonésia é um país em que a publicidade de produtos de tabaco é liberada sem restrições e, em consonância com isso, lida com altos índices de tabagismo. Estima-se que 70% dos homens fumam e não é raro ver menores de idade apreciando os kreteks – nome local dado aos cigarros de cravo. Estudos indicam que cerca de 200 mil mortes anuais na nação insular tenham ligação direta com o fumo.

Às margens do Lario, o estádio Sinigaglia tem localização privilegiada (Getty)

Sem dúvidas é um contrassenso faturar bilhões com drogas e investir em esporte. Isso, contudo, não é novidade para os Hartono, considerando que a empresa da família fundou, em 1974, um clube de badminton – o PB Djarum. Em meados da década de 2010, a agremiação recebeu críticas internacionais pelo fato de crianças e jovens vestirem uniformes com designs idênticos aos maços de cigarros do grupo e, após pressão de ONGs, uma comissão para proteção de menores do governo da Indonésia teve de apertar o cerco junto à companhia, ainda que nenhuma atitude drástica tenha sido tomada. Os bilionários também já patrocinaram a primeira divisão de futebol e competições de automobilismo de seu país natal.

Operação e planos futuros

A entrada dos Hartono no clube injetou capital estrangeiro e visões de negócio que vão muito além das quatro linhas. Com isso, o Como se tornou um raro exemplo de um time italiano controlado por um conglomerado asiático, com um modelo de gestão inspirado na Premier League e na Disney, passando a operar como uma empresa criativa de futebol – algo que se vê atualmente também na Inter, para citar um caso similar. Os indonésios têm alguns sócios famosos, tal qual Cesc Fàbregas, acionista e atual técnico da equipe, e Thierry Henry, investidor e membro do conselho administrativo.

No centro do projeto esportivo do Como está o craque espanhol Fàbregas, que por lá encerrou sua carreira como jogador e deu seus primeiros passos como técnico. O ex-meia foi interino durante a campanha de acesso e, ainda sem licença para comandar o time à beira do campo por mais tempo do que prevê uma permissão especial concedida pela FIGC, a Federação Italiana de Futebol, foi o nome por trás do galês Osian Roberts, chefe de desenvolvimento de atletas, que assinava como comandante. Com os problemas burocráticos solucionados, o catalão foi efetivado e foi encarregado de lidar com os desafios comascos na Serie A.

Depois da boa e surpreendente campanha em 2024-25, na qual nem pareceu um time que estava longe da elite havia 21 anos, o Como mudou de patamar nas ambições. O objetivo agora é disputar vaga nas competições europeias. Para isso, o clube manteve Fàbregas, que esteve na mira de Bayer Leverkusen, Roma e Inter – sendo que os nerazzurri chegaram a se mover concretamente para tentar levar o jovem técnico a Milão.

Enquanto o conselheiro Henry oferece status ao projeto comasco, o presidente Suwarso atua como homem de confiança dos Hartono (Getty)

Um dos motivos que fizeram Fàbregas permanecer no Como foi a capacidade de investimento dos lombardos, que fazem aportes inimagináveis para um clube saído da segunda divisão. Entre sua chegada à Serie A e o meio de julho de 2025, os lariani investiram 200,5 milhões de euros, sendo o time que mais gastou em reforços na Itália e o sétimo no mundo no período, empatado com Liverpool, Juventus e Al-Nassr, à frente dos demais sauditas e de potências como Barcelona, Paris Saint-Germain e Bayern de Munique. Nesse mesmo mês, os biancoblù teriam rejeitado 45 milhões de euros pelo senegalês Assane Diao, adquirido em janeiro por 12 mi – e só avaliariam vendê-lo por 75. O atacante, aliás, simboliza o principal perfil de contratações da equipe, que deseja ativos valorizáveis.

Mais do que investir em campo – e os gastos poderiam ter sido ainda maiores, caso o ex-milanista Théo Hernandez tivesse aceitado a proposta lariana –, o Como constrói um ecossistema: reformou sua sede, criou uma linha de roupas com a Adidas, lançou uma plataforma de mídia própria (a Como TV), oferece experiências que misturam futebol, turismo e gastronomia à beira do lago e vende seus produtos em lojas de luxo no centro histórico da cidade. Nas redes sociais, só se comunica em inglês. No Instagram, ainda faz publicações bilíngues, mas no X, por exemplo, não há uma só postagem em italiano.

A estrutura do clube também visa sustentabilidade a médio prazo. O Como, tal qual afirmamos, busca talentos jovens a serem valorizados e vendidos com lucro, tem atraído patrocínios de grandes empresas como Uber e Satispay, e uma base de fãs internacional cada vez maior – 12% das vendas online, por exemplo, já são provenientes dos Estados Unidos.

Em busca de sustentabilidade, o novo objetivo da diretoria é permitir que parte dos torcedores assista às partidas do time de graça. E talvez num Sinigaglia reformado, já que, em fevereiro de 2025, a gestão apresentou um projeto de requalificação da praça à prefeitura, com previsão de conclusão em 2028. Já no fim de julho, durante a Como Cup, que teve participação de Ajax, Celtic e Al-Ahli, Surwaso afirmou que o clube visa ampliar a procura por patrocinadores e reajustar os preços dos camarotes para abaixar os custos e, num prazo de três anos, tornar gratuito o acesso aos setores mais populares da arena, tal qual faz o Fortuna Düsseldorf, da Alemanha. A própria competição em que a declaração foi dada faz parte do esforço de atrair mais atenção do público e recursos para a agremiação.

Acionista e técnico do Como, Fàbregas é um dos nomes centrais do projeto do time lariano (Getty)

A água não é límpida em todos os trechos do lago

Apesar da estética sofisticada e da eficiência organizacional, o projeto do Como levanta questões éticas e simbólicas. A origem do capital incomoda parte dos torcedores, especialmente por vir de uma indústria associada ao vício e à degradação da saúde pública, tal qual escrevemos alguns parágrafos acima.

Além disso, há quem critique o distanciamento dos donos da agremiação em relação à sua comunidade tradicional. O medo é que o Como se torne mais uma vitrine para o turismo de luxo do que um verdadeiro clube popular. Algumas campanhas, como a “Semm Cumasch” – “nós somos comascos”, no dialeto local –, visam reforça o sentimento de pertença e mostrar a cidade e os seus moradores ao resto do mundo. A pergunta que fica é: até que ponto é possível conciliar um projeto cosmopolita com as raízes locais de um time sediado numa comuna de menos de 90 mil habitantes e que jogava a quarta divisão em 2019?

Na Itália, o Como ainda é exceção. O modelo mais comum de modernização vem de grandes times tentando se reerguer, tal qual o Milan na gestão RedBird, ou da tentativa de profissionalização interna. Fora da Bota, o projeto lembra experiências como a do Brighton na Inglaterra, com scout inteligente e crescimento orgânico, ou a do City Football Group – com clubes integrados em rede global; teia, aliás, que inclui o italiano Palermo, da Sicília.

O projeto dos Hartono, contudo, tem suas peculiaridades e está tentando algo singular: elevar um clube tradicional e centenário, transformando-o num competidor de elite a partir de um cenário turístico de prestígio, fundindo futebol, hospitalidade, branding e mídia. É como se o esporte fosse apenas uma das engrenagens de um plano maior (e mais ambicioso) de reposicionamento urbano e internacional.

O Como é hoje um laboratório vivo do futebol contemporâneo. Ele combina uma gestão empresarial visionária, um modelo agressivo de investimento, um cenário de cartão-postal e uma estratégia globalizada de marca. Sua jornada será medida não apenas pelos resultados em campo, mas por sua capacidade de lidar com os dilemas que ele mesmo gera: até que ponto o dinheiro pode redesenhar a identidade de um clube sem esvaziar sua alma?

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