
Calciopédia
·24 June 2025
Em 1969, o Milan resistiu ao Massacre da Bombonera e levou seu primeiro título mundial

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A décima edição da Copa Intercontinental, realizada em 1969, era uma das mais aguardadas da história. De um lado, o Milan, campeão da Copa dos Campeões após bater o Ajax por 4 a 1 e se consagrar bicampeão europeu. Os rossoneri buscavam seu primeiro título mundial, já que em 1963 haviam sido derrotados pelo Santos de Pelé. Do outro lado, o Estudiantes de La Plata chegava após conquistar a Taça Libertadores da América com relativa facilidade: 3 a 0 no placar agregado contra o Nacional, do Uruguai. Os argentinos almejavam conquistar o mundo pela segunda vez, após a vitória sobre o Manchester United, no ano anterior. Porém, a decisão ficaria marcada pela violência dos sul-americanos e não pelo futebol.
Na época, a Copa Intercontinental era disputada em duas partidas, uma na Europa e uma na América do Sul, e o vencedor seria o time que levasse a melhor no placar agregado. Em caso de empate, o número de gols marcados serviria como critério de desempate. Até aquela altura, os sul-americanos levavam vantagem, com seis conquistas contra três europeias – duas delas, da Inter, ambas sobre o Independiente.
O Milan vinha de uma década dourada. Além dos títulos europeus de 1963 e 1969, conquistara a Recopa Uefa em 1968, a Serie A de 1962 e 1968, e a Coppa Italia de 1967. Em sua segunda passagem pelo Diavolo, o técnico Nereo Rocco, um dos precursores do catenaccio, liderava uma equipe de defesa sólida e de ataque veloz, liderado por nomes como Gianni Rivera, Néstor Combin, Pierino Prati e o ítalo-brasileiro Angelo Sormani.
O Estudiantes de La Plata, por sua vez, era conhecido por seu estilo objetivo e pelo uso excessivo da força física, com faltas ríspidas e muitas vezes desleais. O lema era “vencer a qualquer custo”, e sua tática de linha de impedimento era criticada pela imprensa da época. Apesar do elenco mais limitado, o time contava com nomes como Carlos Bilardo (que seria o técnico da Argentina campeã mundial em 1986), Oscar Malbernat, Néstor Togneri e Juan Ramón Verón – pai de Juan Sebastián Verón. Os pincharratas já haviam faturado a Libertadores em 1968 e 1969, o Campeonato Argentino de 1967 e a Copa Intercontinental de 1968 – sempre com seu estilo de jogo violento, criticado até pela imprensa europeia. Mesmo ciente do histórico dos platenses, o Milan não hesitou em disputar as duas partidas, determinado a conquistar o título que ainda lhe faltava.
No jogo de ida, disputado em 8 de outubro de 1969, em San Siro, o Estudiantes abusou da linha de impedimento e recuou para explorar contra-ataques. Mas a tática do técnico Osvaldo Zubeldía falhou. Embora Rivera estivesse bem marcado por Togneri, o Milan dominou o duelo. Com grande atuação de Sormani e Combin, os rossoneri venceram por 3 a 0, para delírio dos mais de 60 mil torcedores presentes.
Segundo o volante milanista Giovanni Lodetti, em uma entrevista concedida a uma TV regional italiana, em 1994, o time argentino era “talentoso, mas lento”. E o Diavolo se aproveitaria disso em San Siro. Logo aos 8 minutos, Prati recebeu na ponta esquerda, teve muito espaço para pensar e observou a corrida de Sormani nas costas da zaga, pelo lado oposto. Aí, bastou calibrar a inversão e lançar no ponto futuro, onde o ítalo-brasileiro chegou para testar com força e abrir o placar.
Perto do intervalo, o Milan acelerou o jogo novamente e pegou o Estudiantes de La Plata de calças curtas. Rivera passou para Roberto Rosato e o zagueiro mostrou sua qualidade ao encontrar Combin em profundidade. Ramón Aguirre Suárez se estatelou no chão ao tentar cortar a assistência e só pôde observar o atacante franco-argentino driblar o goleiro Alberto Poletti antes de ampliar. O terceiro, já na segunda etapa, foi um pouco similar. Aos 71 minutos, os pinchas se desligaram depois de uma falta, o Diavolo cobrou rapidamente a infração e Romano Fogli acionou Sormani, que se antecipou à zaga e já chegou na pelota girando e calibrando um forte chute, que morreria nas redes argentinas.
Importante no jogo de ida, Prati foi uma das vítimas da truculência dos jogadores do Estudiantes de La Plata, na Argentina (imago/Keystone)
Na volta, o Estudiantes precisaria vencer por três tentos para forçar um terceiro jogo ou por quatro para ficar com o título. Uma missão muito complicada, considerando a disparidade entre os times, que ficou evidente na partida de Milão. Zubeldía, técnico dos pinchas, quase jogou a toalha em entrevista após a ida. “Três gols é demais. Agora é difícil saber se iremos conseguir tirar essa desvantagem”, afirmou.
Assim como em 1968, contra o Manchester United, Os argentinos transferiram o mando de seu estádio, em La Plata, para a Bombonera, na capital Buenos Aires, buscando maior pressão da torcida. Apesar disso, o técnico Zubeldía garantiu que o seu time tentaria reverter o placar desfavorável na bola. “Não vamos bater. O Milan foi muito correto e nós também o seremos”, disse ao jornal Corriere dello Sport, logo após a derrota do Estudiantes.
Entretanto, o clima de guerra pairava no ar. Os argentinos, membros da imprensa inclusos, escolheram como alvo o atacante Combin, filho de uma indígena local com um francês, nascido na província de Santa Fe. Era chamado de “traidor da pátria” por defender a seleção da França, com a qual disputou a Copa do Mundo de 1966, e não ter se apresentado ao serviço militar – e o gol marcado na vitória do Milan em San Siro, que comemorou sem restrições, não caiu bem para os hermanos. O contexto político também inflamava o ambiente: a ditadura que comandou o país de 1966 a 1973 pressionava o Estudiantes de La Plata a vencer para projetar uma imagem vitoriosa da nação.
Os milanistas foram recebidos com hostilidade no estádio do Boca Juniors. Quando deixaram o túnel de acesso ao gramado, foram alvo dos habituais xingamentos, mas também de café fervente atirado das arquibancadas. Quando posavam para a tradicional foto de equipe, jogadores do Estudiantes entraram em campo com bolas nos pés e, com toda a força, as arremataram sobre os rossoneri. Claro, também aconteceram ameaças verbais dos próprios atletas pincharratas. O goleiro Poletti, por exemplo, disse a Combin: “Você é um porco traidor. Vamos quebrar suas pernas”. Este era o preâmbulo para o chamado “Massacre da Bombonera”.
Logo aos 8 minutos, Eduado Manera atropelou o goleiro Fabio Cudicini sem nenhuma justificativa. Era o prenúncio do caos. A cada jogada de ataque do Milan, os argentinos buscavam atingir as pernas dos italianos. Prati sofreu falta violenta de Aguirre Suárez e, quando estava caído no chão, ainda foi agredido por Poletti com um chute nas costas. O atacante sofreu uma concussão cerebral e foi obrigado a deixar o campo carregado, aos 37.
Mesmo em meio à brutalidade, foi o Milan que abriu o placar, ainda antes de Prati ser substituído por Giorgio Rognoni. Aos 30 minutos, após erro de Manera, Combin recuperou a bola e sofreu uma entrada criminosa. Ainda assim, foi capaz de servir Rivera, que driblou o goleiro e marcou um belo gol – e tranquilizador, pois os pincharratas teriam que fazer quatro para igualarem o confronto. Após pegar a pelota no fundo das redes, Poletti a chutou sobre o camisa 10 rossonero, que fingiu que não se importou para não dar trela para mais confusão. A torcida argentina, por um momento, se calou. Ainda assim, o Estudiantes de La Plata conseguiu a virada nos minutos finais da etapa inicial, com tentos de Marcos Conigliaro e Aguirre Suárez.
No segundo tempo, o cenário se agravou. Os pincharratas seguiram abusando da violência, mesmo com a necessidade de mais gols. No fim das contas, parecia que batiam nos adversários por divertimento. O Milan, mais técnico e experiente, administrava a vantagem. Sem tática definida, o Estudiantes insistia em chutões e entradas desleais. Aguirre Suárez passou a mirar especificamente Combin, a quem desferiu um soco no rosto, quebrando-lhe o nariz e o osso zigomático. O franco-argentino ficou coberto de sangue e seu uniforme, branco com detalhes em rossonero, ficou quase que completamente vermelho.
Prati foi o primeiro a precisar deixar o campo por conta da violência, mas Combin não demoraria a se juntar a ele (imago/Keystone)
Só depois daquele ato de selvageria, que se somava a muita brutalidade anterior, é que Domingo Massaro, árbitro chileno que apitava o confronto, decidiu excluir o zagueiro pincharrata do campo – e deixar os times em igualdade numérica, pois Combin não tinha mais condições de jogo e os rossoneri já haviam feito as duas substituições permitidas pelo regulamento da época. Cartões amarelos e vermelhos só foram introduzidos no futebol na Copa do Mundo de 1970, mas os juízes tinham o poder de expulsar do gramado atletas que tivessem comportamentos antidesportivos, caso julgassem necessário. Só após sérias consequências, o apitador sul-americano tomou uma atitude.
Nos minutos seguintes, disputados em 10 contra 10, o Milan clamava pelo apito final, temendo novas agressões. A conquista não valia apenas pelo futebol: era uma vitória pela honra e pela dignidade. Quando o árbitro encerrou a partida, os rossoneri enfim puderam comemorar seu primeiro título intercontinental — mas sequer houve festa. Poletti voltou a agredir jogadores italianos, e a entrega de medalhas foi cancelada por iniciativa da delegação do Diavolo, que queria deixar a Bombonera. A polícia interveio e levou Poletti, Aguirre Suárez e Manera presos. Mas não só: Combin, cheio de ataduras e algodões nas narinas, ainda grogue e com o rosto desfigurado, também havia recebido voz de prisão por deserção do serviço militar.
O Milan rapidamente se aprontou nos vestiários para passar no hotel e deixar Buenos Aires o mais rapidamente possível. Só no ônibus perceberam que Combin não estava no grupo. Foi necessário utilizar a diplomacia para que o atacante fosse liberado, mas não de imediato: ele foi interrogado, explicou que cumpriu suas obrigações militares como cidadão francês e ficou detido até a tarde do dia seguinte. Só a partir de então a delegação rossonera pôde embarcar de volta para a Itália. Anos mais tarde, Lodetti afirmou algo que realmente parece óbvio agora: o franco-argentino não precisava ter viajado para o país em que nasceu, considerando o resultado obtido pelos italianos na ida. A comissão técnica errou ao levá-lo para a decisão e isso acabou acirrando os ânimos.
A pancadaria protagonizada pelos jogadores do Estudiantes recebeu muita atenção da mídia portenha, que tratou o massacre com o mesmo tom: uma das páginas mais vexaminosas do futebol nacional, de acordo com a tradicional revista El Gráfico. A carnificina também não foi bem vista pela ditadura militar argentina – veja só –, que entendeu o ocorrido como má propaganda para o regime. Foi por isso que os atletas acabaram presos por alguns dias e sendo alvo de ganchos na esfera esportiva. Poletti foi banido do esporte, enquanto Aguirre Suárez e Manera foram suspensos por 30 partidas em solo nacional e por cinco anos em nível internacional. Todas as punições acabaram sendo abreviadas posteriormente – inclusive a do arqueiro, que ainda atuaria pelo Olympiacos, da Grécia.
“Eu disse para jogar, não para baterem”, se defendeu o técnico Zubeldía, numa frase que virou manchete estampada no jornal Gazzetta dello Sport. Os jogadores do seu time não o obedeciam, então? Quando já estava recuperado, Combin chegou a dar uma entrevista à Domenica del Corriere, suplemento ilustrado dominical do jornal Corriere della Sera, e foi duro ao analisar a alteração dos rivais. Para o atacante, os rivais haviam feito uso de drogas ilícitas.
“No primeiro tempo, só conseguiram me dar dois chutes e um golpe nas costas. No segundo, com a bola longe, Aguirre Suárez me xingou. Eu me virei, ele me empurrou e me fez perder o equilíbrio. Enquanto eu caía, ele me deu uma joelhada. Quase desmaiei. Continuava sangrando. Falava com os outros sem entender o que estava dizendo. Para mim, não tenho medo de dizer: os jogadores do Estudiantes estavam drogados. O que eles fizeram não era futebol, nem violência. Era delinquência”, disparou o franco-argentino. Giovanni “Ginko” Monti, médico do Milan, reforçou as palavras de Combin e disse acreditar que os adversários estavam mesmo dopados.
No desembarque dos rossoneri em solo italiano, Prati e Combin, maiores vítimas da violência do Estudiantes, desceram as escadas da aeronave lado a lado, segurando a taça da Copa Intercontinental, na melhor resposta possível à covardia dos atletas do Estudiantes de La Plata. Apesar da justa e heroica conquista do Milan, a imagem do torneio saiu arranhada: depois do revoltante Massacre da Bombonera, muitos clubes europeus passaram a boicotá-lo. Apenas em 1980 a competição foi reformulada e passou a ser disputada em jogo único em campo neutro, no Japão, sede da montadora de automóveis Toyota, que passou a patrociná-la e a chancelar o formato que vigorou até 2004. Desde então, o troféu pôde ser ambicionado em um cenário de desportividade – como deveria ter sido desde o início.
Milan: Cudicini; Malatrasi; Anquilletti, Rosato, Schnelliger; Fogli, Lodetti; Sormani, Rivera, Prati; Combin (Rognoni). Técnico: Nereo Rocco. Estudiantes de La Plata: Poletti; Aguirre Suárez; Malbernat, Madero, Medina; Echecopar (Ribaudo), Bilardo, Togneri; Flores; Conigliaro, Verón. Técnico: Osvaldo Zubeldía. Gols: Sormani (8′ e 71′) e Combin (45′) Árbitro: Roger Machin (França) Local e data: estádio San Siro, Milão (Itália), em 8 de outubro de 1969
Estudiantes de La Plata: Poletti; Aguirre Suárez; Malbernat, Madero, Manera; Romeo, Bilardo (Echecopar), Togneri; Taverna; Conigliaro, Verón. Técnico: Osvaldo Zubeldía. Milan: Cudicini; Malatrasi (Maldera); Anquilletti, Rosato, Schnelliger; Fogli, Lodetti; Sormani, Rivera, Prati (Rognoni); Combin. Técnico: Nereo Rocco. Gols: Conigliaro (43′) e Aguirre Suárez (44′); Rivera (30′) Expulsão: Manera Árbitro: Domingo Massaro (Chile) Local e data: La Bombonera, Buenos Aires (Argentina), em 22 de outubro de 1969